Temporada de arte em Sorocaba

Mostra Frestas–Trienal de Artes reúne mais de 60 artistas na cidade do interior paulista para discutir o conceito de pós-verdade

Mariana Tessitore
Revista Bravo!
7 min readAug 17, 2017

--

As Guerrilla Girls (Foto: Reprodução Facebook)

Em Sorocaba, um grafite chama atenção dos transeuntes, que interrompem seu trajeto para olhar a obra. Feita pela carioca Panmela Castro, a pintura faz parte da segunda edição da Frestas — Trienal de Artes, em cartaz no Sesc Sorocaba até 3/12. O painel, que ocupa a lateral do prédio da Secretaria de Cultura, retrata o rosto de duas mulheres entrelaçados por uma flor. A imagem também é vista, por alguns observadores, como uma representação da genitália feminina. Foi essa interpretação que motivou o vereador Pastor Luis Santos (PROS) a solicitar que a Prefeitura apague o trabalho, tido por ele como “um mau exemplo para as crianças”.

Por enquanto, a obra segue firme e forte, assim como a mostra que reúne mais de 160 trabalhos, feitos por artistas brasileiros e internacionais renomados como Daniel Senise, Thiago Honório, Guerrilla Girls e Hito Steyerl. Grande parte das obras está concentrada no espaço expositivo do próprio Sesc, que conta com uma área de 2.300 m². As outras produções estão espalhadas pela cidade, em uma tentativa de inserção da arte no cotidiano dos moradores.

O diretor regional do Sesc-SP, Danilo Miranda, reitera a importância da mostra ser organizada no interior paulista. “A ideia de deslocamento é essencial. Precisamos descentralizar a produção e facilitar o acesso das pessoas a eventos como esse”, afirma. Para a curadora do evento, Daniela Labra, o intuito é que a arte “penetre no tecido social da cidade”. “As reações e fricções fazem parte. Mas se trata, sobretudo, de convidar para o debate”, reitera ao comentar a polêmica com o vereador Pastor Luis Santos.

Outra artista que exibe seu trabalho na rua é Maria Thereza Alves. Em Vazio Pleno, ela apresenta o resultado de sua pesquisa pelos museus e arquivos de Sorocaba. Interessada na história indígena, Alves saiu em busca de documentos que tratassem da presença dos nativos na região. No entanto, encontrou pouquíssimos vestígios, entre eles, moringas e urnas funerárias guardadas no acervo do Museu Histórico Sorocabano. Em parceria com o ceramista guarani Maximino Rodrigues, a artista confeccionou várias réplicas desses artefatos, espalhando-as por 16 pontos da cidade, entre eles o monumento em homenagem a Baltasar Fernandes, bandeirante tido como o fundador de Sorocaba.

Nesse confronto de narrativas, a artista questiona os marcos e símbolos elegidos pela história oficial. Como parte de sua obra, Alves também convidou as educadoras guarani Eunice Martim e Poty Poran para uma conversa com o público. Em frente ao monumento de Baltasar, Poran relembrou as conexões entre passado e presente na luta indígena: “Se antigamente nós tínhamos os bandeirantes fazendo limpeza étnica, hoje é a bancada ruralista quem cumpre esse papel”, afirmou.

Ainda para reforçar o diálogo com a cidade, Labra convidou quatro artistas para uma residência de um mês em Sorocaba. O resultado desse processo é apresentado na exposição. O paulista Rafael RG, por exemplo, realizará um workshop, entre os dias 23 e 25/8, sobre o ofício artístico. Ele comenta o processo de concepção do trabalho: “Eu sempre me indago sobre o papel da arte contemporânea em um momento de crise como esse. Como fazer algo transformador? Mas, conforme fui convivendo na cidade, percebi como poderia desenvolver minhas ideias”.

Com grandes dreads, uma camisa colorida e unhas do pé pintadas, RG afirma que a sua simples presença no espaço já suscita questionamentos. “Em Sorocaba, ainda predomina um conservadorismo muito forte. Diante disso, a presença tanto da própria mostra quanto dos artistas já é algo impactante que cria micro- choques o tempo inteiro. Eu morava em um condomínio residencial e todos precisavam lidar comigo ali, do meu jeito, transitando entre os espaços”, afirma.

A grafiteira Panmela Castro também comenta a recepção do seu trabalho. “Já pintei em muitos países. Mas nunca havia acontecido, como aqui em Sorocaba, de uma obra suscitar tantas críticas violentas. E teve o caso do Pastor que ficou indignado por ter visto uma vagina. A ação dele me deixou triste, principalmente, por me lembrar que ainda existe tanto machismo no mundo. Ainda assim, a polêmica trouxe à tona o problema da misoginia que, muitas vezes, fica encoberto no dia-a-dia”, pondera.

“Femme Maison”, Panmela Castro (Foto: Adriano Sobral)

A pós-verdade no divã

Em sua nova edição, a Frestas também aborda um tema crucial no debate contemporâneo: a pós-verdade. Segundo a curadora, o conceito não é novo, já sendo conhecido antes de ser eleito como a palavra do ano pelo dicionário de Oxford. “No texto Verdade e Política, a filosofa Hannah Arendt já refletia sobre como o poder tende a distorcer os fatos”. Alguns trabalhos da mostra tratam dessa propagação de boatos e opiniões que prevalece na esfera pública.

Na obra O Dia da Mentira, por exemplo, o artista Matheus Rocha Pitta reúne fotografias, publicadas por diversos órgãos da imprensa brasileira, de protestos realizados em 2016. São 365 fotos que juntas formam um espécie de calendário. Em todas as imagens, o artista insere a data de 1º de abril, tida como o dia da mentira. Com essa inserção, Rocha Pitta faz uma alusão a multiplicidade de versões e a dificuldade de se ater aos fatos.

Por outro lado, a curadora pontua que a impossibilidade de definir verdade “traz várias discussões na roda, inclusive a de gênero e sexualidade”. Com a afirmação da pauta trans, surgiram novos pontos de vista que não reduzem mais o sexo a uma verdade única e binária. O tema aparece na performance Gordura Trans de Miro Spinelli. A ação é composta por quatro integrantes, todos trans, inclusive Miro. Nus, eles se posicionam dentro do espaço expositivo onde passam horas se banhando com gordura.

Na noite de abertura da exposição, o trabalho chamava atenção do público que não raro desviava da ação, em parte por conta do cheiro forte da gordura, mas também pelo desconforto de se deparar com imagens pouco convencionais. “A performance tem um grande impacto por apresentar esses corpos gordos e não binários que não se enquadram em um modelo de beleza que nos é imposto todos os dias”, reitera Labra.

Obra de Marko Lulic que integra a exposição

O tema da verdade também é discutido a partir da perspectiva da história da arte. A curadora defende que, desde o fim do século 19 com o surgimento de movimentos como o Expressionismo, os artistas passaram a questionar a sua própria prática. “As certezas sobre a natureza regrada da arte começaram a ruir. Hoje a grande questão já não é mais o que é arte ou não, mas sim por que se produz arte”, afirma. Várias obras presentes na exposição têm esse viés metalinguístico, questionando o papel das instituições culturais e do próprio artista no mundo contemporâneo.

Conhecido por suas críticas ao machismo nos museus, o coletivo Guerrilla Girls é um dos destaques. Criado em 1985, em Nova York, o grupo é formado por mulheres que se apresentam com máscaras de gorilas, nunca revelando a sua identidade. Em suas intervenções, elas advogam por uma presença maior das mulheres no meio cultural, seja como artistas ou no comando das instituições. No Sesc, o público pode conferir um dos cartazes mais famosos do grupo, feito em 1989, que questionava o fato de que, na época, só 5% dos artistas do Metropolitan Museum eram mulheres.

“Sem Título”, Yara Pina (Foto: Adriano Sobral)

Junto aos cartazes, o coletivo apresenta um espaço onde o público pode registrar suas críticas. No fim de semana de abertura da mostra, a obra era uma das mais cheias. Na lousa, onde as pessoas escreviam suas queixas, já era possível ler muitas frases provocantes como: “Nem toda mulher quer ser mãe”, “Não estamos prontas para sermos boazinhas” ou ainda “Quanta gente branca, rica e chata aqui dentro. Os funcionários do Sesc merecem mais champanhe do que quem foi convidado”.

Assim como as Guerrilla Girls, Hito Steyerl faz uma crítica bem-humorada ao sistema da arte. No vídeo Guards, ela entrevista dois seguranças de museus que discorrem sobre as suas funções anteriores como policiais ou militares. Em suas falas, eles revelam como os mecanismos de vigilância e controle, a chamada obsessão de segurança como diria o filósofo Giorgio Agamben, também perpassam a lógica das próprias instituições culturais. Em prol da salvaguarda do patrimônio, câmeras de monitoramento e detectores de metal são instalados e visitantes acuados. Assim, o mesmo discurso que justifica a prisão de supostos terroristas, também se encontra no ambiente do museu.

Com obras provocantes como a de Hito, essa nova edição da Frestas se consagra como uma mostra politizada. A curadora comenta que, diante do atual fortalecimento da direita no cenário político, não possui interesse em divulgar uma “arte fofinha”. “O tema da Bienal de Veneza desse ano é ´Viva Arte Viva’, há uma clara romantização do papel do artista, como se ele estivesse acima dos conflitos do mundo. Nessa exposição fazemos o oposto. O artista está dentro do debate, trazendo novas possibilidades de enxergarmos o mundo”.

*A jornalista viajou a convite do Sesc

____

Frestas — Trienal de Artes. De 12 de agosto a 3 de dezembro. Sesc Sorocaba
(R. Barão de Piratininga, 555 — Jardim Faculdade, Sorocaba)

--

--