Tiganá Santana: "Desconheço adjetivos para a tragédia que estamos a viver"

Compositor baiano lança o seu quarto disco, "Vida Código"

Paula Carvalho
Revista Bravo!
5 min readMar 26, 2020

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Foto: José de Holanda/Divulgação

Tiganá Santana é professor, músico, compositor, produtor, tradutor e pesquisador da cultura bantu. Traduziu um dos principais livros do filósofo congolês Bunseki Fu-Kiau, então inédito no país, além de ter trabalhado recentemente como diretor musical de Cada Voz Uma Mulher, disco de Virgínia Rodrigues e ter composto, em parceria com Alzira E, algumas das músicas do projeto Corte, estrelado por ela.

Agora, o baiano lança o seu quarto álbum, Vida Código, produzido em parceria com Sebastian Notini. Bastante suave — perfeito para uma quarentena — o disco é um respiro cheio de poesia e composições conduzidas por um modo de escrever bastante original. De Paris, em meio aos acontecimentos malucos das últimas semanas, Santana respondeu à Bravo! algumas perguntas sobre o trabalho e sua atuação — também como um pensador da cultura e da construção de narrativas no Brasil. "Não podemos mais pensar a cultura, a economia, a saúde, a educação, a ciência, o meio ambiente enquanto blocos estanques que têm avanços ou retrocessos de modo compartimentado. O Brasil inteiro, as pessoas, as coisas, os sentimentos, a natureza, as relações, tudo está em colapso".

Uma das novidades do seu novo disco é o uso de instrumentos como guitarra, baixo, teclados e outros elementos eletrônicos. Por que incluir essa sonoridade ao seu violão?
Os trabalhos vão desenhando e solicitando propostas que não haviam ainda sido enunciadas por cada artista. Eis a razão por que se fazem outros trabalhos, navegam-se por outras águas. Senti necessidade estética de construir um novo álbum com instrumentos com os quais não havia lidado no nível do registro.

“Vida-Código” tem, como em todos os seus discos, achados poéticos notáveis (“Meu blues é o vermelho que errou de cor”; “E a vida codifica o nó”, etc). Como você pensa a construção dessa poesia em relação às línguas que você domina? Você transita entre diversas formas de pensar, a partir dessas línguas, para compor?
A partir de uma melodia e/ou ritmo, como ocorre usualmente comigo, à escuta do que se coloca, vou encontrando palavras, assuntos, modos de pensar que traduzem a música que emana. As poéticas são e utilizam-se, como expressão, do que somos, das substâncias existenciais de que somos feitos e feitas. A construção das composições é tão dependente quanto independente de mim.

Há um cosmopolitismo no seu trabalho — cantado em diversas línguas, lançado por um selo sueco, com grande intercâmbio com países como a França. Como começou a levar sua música para fora e qual a importância disso para o trabalho, hoje?
Não havia pensado ou previsto a internacionalização do trabalho. No entanto, vejo com satisfação a possibilidade de dialogar com outras aldeias, com outros pertencimentos culturais. É fundamental, a meu ver, estar diante de alteridades dessa monta, que nos situam, que não pediram a nossa anuência para existir ou ser de um determinado modo. Isso é extremamente estimulante para a criação, e, embora esteja também presente nos vetores culturais a que pertencemos, não conseguimos acessar e reconhecer, muitas vezes, por lá. O contato entre o que faço e outras partes do mundo foi acontecendo de modo paulatino e sem que eu focasse em estratégias para tal.

Se não estou enganada, você é de uma geração e de um grupo — como também a Luedji Luna — que foi educado para ocupar espaços de poder e ter uma atuação política a partir do movimento negro baiano. Como foi romper com essas expectativas e se tornar um intelectual e artista? Há uma influência da vivência musical, que é tão forte em Salvador, nessa escolha?
É, de algum modo, sempre difícil romper com expectativas. No meu caso, não seria diferente. Decidi, quando tinha 19 anos, seguir, sobretudo, o curso da vida que fazia o coração pulsar com vontade de pulsar (claro que tive um ambiente propício para isso, ao qual sou grato e que me foi formador). Fui entrando em territórios da vida que pintavam os seus sentidos para mim. Sem dúvida, a música, o criar, o pensar, os afetos, o mistério, estimulavam-me e estimulam-me como um menino inaugurando a possibilidade de viver. Não me lembro de, conscientemente, associar o meu fazer musical à minha cidade, embora sejamos tudo o que está dentro e fora do corpo. Para mim, não há o porquê de fazer o que faço, não sei a razão pela qual esse chamado é tão visceral… ele é tão próximo que não sou capaz de abstrai-lo… então, faço, sem perguntar ou responder.

O seu trabalho tem um perfil bastante crítico e você é um dos líderes, por exemplo, da série Diálogos Ausentes, que refletiu sobre a desigualdade racial em eventos do Itaú Cultural e na cultura brasileira em geral. Como avalia essa série de encontros com artistas negros brasileiros?
A convite do Itaú Cultural, pude, com a intervenção da querida Diane Lima, tratar da centralidade suprimida de pessoas e criações negras, especificamente, na música, com ponte para outras linguagens naturalmente. O racismo e a desigualdade são os reis do Brasil, que têm as rédeas inclusive das subjetividades. É inegociável: temos que falar, agir, guerrear, pensar, amar e poetar em nome, pelo menos, da desidratação das ações racistas e contra-comunitárias. Nesse sentido, ainda que modestamente, a série “Diálogos Ausentes” cumpriu algum papel, em algum lugar, sim.

Se de um lado há essa disposição ao diálogo por parte de um setor privado da cultura, temos visto o tamanho retrocesso em relação aos rumos da cultura nacionalmente e aos incentivos estatais. Como avalia essa nova configuração da cultura no Brasil?
Não podemos mais pensar a cultura, a economia, a saúde, a educação, a ciência, o meio ambiente enquanto blocos estanques que têm avanços ou retrocessos de modo compartimentado. O Brasil inteiro, as pessoas, as coisas, os sentimentos, a natureza, as relações, tudo está em colapso, em termos gerais, e, claro, agora, mais do que nunca, com o evidente apoio institucional. Embora o Brasil, sobretudo, o oficial (mas não só esse) seja escravista, excludente e abjeto desde o seu início, agora temos a reunião de todos os horrores que se puderam acumular ao longo de um fio histórico. Com isso, percebemos a profundidade e o quão endógeno é tudo o que se instalou oficialmente, a despeito de sua aparência rasa e sem sustentação. Precisamos atentar ao fato de que o bolsonarismo não está somente no âmbito institucional. O Brasil é também terrível, em termos estruturais, ainda que não seja apenas terrível. E numa democracia (até onde podemos propor), o terrível que acondiciona setores da sociedade na desgraça deve ser, no mínimo, contido. Em termos práticos: não deveria estar no poder com ações e discursos desenfreados. É mais do que, simplesmente, dizer que o que se passa no Brasil é grave. Desconheço adjetivos que correspondam à tragédia que, holisticamente, estamos a viver neste minuto.

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Paula Carvalho
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jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com