Todo caminho deu no mar

Galeria Almeida e Dale exibe as principais facetas de José Pancetti, pintor conhecido por suas marinhas essenciais

Andrei Reina
Revista Bravo!
7 min readOct 17, 2017

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“Mar Grande”, 1954 (Imagem: Divulgação)

Branca de cegar, a enorme caixa na Rua Caconde é iluminada por um sol de rachar paredes e miolos. Aos necessitados de um refresco — do sol, de São Paulo, da vida — a Galeria Almeida e Dale pode não parecer a melhor opção. Mas o cubo branco, típico da assepsia das casas de arte contemporânea, só se vê do lado de fora. No interior, o azul e o verde tomam as paredes em que estão penduradas algumas das principais telas de José Pancetti.

Apesar de realizada numa galeria, a exposição Pancetti — Navegar é preciso, que abre hoje (17), não tem caráter propriamente comercial. A grande maioria das telas, de diferentes coleções particulares, não está à venda. Juntas, elas compõem uma mostra representativa das principais facetas do pintor.

Lá estão, além de suas famosas marinhas, naturezas-mortas, retratos e cenas urbanas. Comum ao conjunto é o tamanho das telas, sempre modesto. Isto porque Pancetti preferia o ambiente externo à reclusão do ateliê e, portanto, precisava carregar as telas consigo. “Ele era um pintor do ar livre”, define Denise Mattar, curadora da exposição.

Junto das cores com as quais o filho de imigrantes italianos pintava o litoral brasileiro, o som do mar da Bahia, gravado no Solar do Unhão, e temas de Caymmi variados num violão fazem da mostra uma espécie de milagre ou miragem — o ar-condicionado, é claro, também ajuda.

O ar livre das praias brasileiras no ar-condicionado de uma galeria paulistana — talvez seja esta a natureza da miragem. Mas ainda que a atmosfera seja de suspensão e a promessa, de refúgio, vale ficar atento e não perder de vista a areia em que Pancetti esquentou os pés. Há ali trabalho e história.

O “pintor do ar livre” José Pancetti em Salvador, clicado por Pierre Verger em 1950 (Imagens: Divulgação)

Marinheiro só

José Pancetti foi pintor de parede na juventude, mas de 1922, quando tinha 20 anos, até 1946, quando se aposenta, trabalha na Marinha de Guerra brasileira. Antes disso, já havia trabalhado na marinha mercante durante uma passagem na Itália. Estes longos e constantes períodos no mar se refletem em sua pintura, cuja face mais conhecida é justamente a paisagem marítima.

O marinheiro Pancetti, 1945 (Imagem: Divulgação)

Durante toda a vida adulta, a arte teve de ser conciliada com a profissão de marinheiro, da qual Pancetti retirava seu sustento. Mas isto não significou um sacrifício. Denise Mattar diz que o artista encontrou na Marinha “um amor correspondido”.

“O Pancetti tinha o maior orgulho de ser marinheiro e a Marinha sempre teve um carinho especial pelo Pancetti”, conta a curadora. Além de receber com frequência licenças por motivos de saúde, o artista acumulou o posto de “moço das tintas” na Marinha, fazendo com capricho os serviços de pintura do navio. Além disso, testava seu traço no que via pela frente, de caixas de charuto a lonas descartadas.

Olhar fotográfico

Um marco no seu amadurecimento como pintor acontece em 1933. Durante uma missão em terra, Pancetti frequenta o Núcleo Bernardelli, com sede nos porões da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Espécie de primo carioca do Grupo Santa Helena, o núcleo reunia artistas sem dinheiro, muitos deles imigrantes, que compartilhavam o horizonte modernista e o desejo de se aprimorar no métier.

Pancetti teria achado “tudo uma chatura”, conta Denise, mas a experiência valeu pelo encontro com dois artistas: o então jovem Milton Dacosta e o já experiente Bruno Lechowski. A orientação recebida pelo pintor polonês radicado no Brasil foi decisiva para o seu trabalho. Além do gosto compartilhado pelas marinhas, Pancetti herda — e, em seguida, aprofunda — de Lechowski a escolha por ângulos específicos, que recortam a paisagem de modo característico.

“O Pancetti tem uma forma de olhar quase fotográfica”, diz Denise Mattar, tomando como exemplo uma paisagem que, nas extremidades, apresenta partes de duas casas. Ao centro e ao fundo, uma saída para o mar. Este enquadramento da realidade, além da incisão geométrica que os elementos operam na paisagem, são desdobramentos de lições tomadas com Lechowski.

O olhar fotográfico de Pancetti, 1945 (Imagem: Divulgação)

Gêneros fluidos

A construção desse olhar específico — alimentado pelas características de sua profissão, pelo autodidatismo e por encontros felizes — deságua numa produção sem par no modernismo brasileiro. “O Pancetti é um artista absolutamente original”, defende Denise Mattar. “Ele usa os gêneros clássicos da pintura — paisagem, retrato e natureza-morta — mas a cada uma dessas coisas ele dá um outro olhar.”

Nos retratos, e mais especificamente no número considerável de autorretratos que produziu, Pancetti “se reveste de várias personalidades diferentes”, aparecendo faceiro com um chapéu vermelho em uma tela, na outra como um almirante, naquela como camponês ou, ainda, como o marinheiro que de fato foi.

Nas naturezas-mortas, por sua vez, Pancetti revela “um olhar totalmente inusitado para as coisas do cotidiano”, segundo Denise. Nestas telas, o pintor hibridiza o gênero com elementos que lhe são alheios. Em uma das telas, um caranguejo passeia entre cajus. Em outra, um menino espreita uma mesa cheia de mangas. Na mais eloquente delas, maçãs e laranjas estão enfileiradas à janela de seu ateliê contra um fundo tipicamente pancettiano: uma paisagem de árvores, mar e barco, pintados em cores vivas, sem grande detalhe.

As naturezas-mortas híbridas de Pancetti, 1951–52 (Imagens: Divulgação)

De todos os gêneros, no entanto, é sem dúvida nas paisagens que José Pancetti tem seu ápice criativo, sobretudo a partir dos anos 40, quando tem baixa da Marinha (e portanto mais tempo para pintar), e dos anos 50, quando vai morar na Bahia.

Neste período, o olhar sobre a paisagem litorânea se torna cada vez mais depurado, os elementos da praia passam a minguar e aqueles que resistem na tela ganham contornos geométricos. As faixas de areia tomam cada vez mais espaço, o céu e o mar se estreitam, pessoas e árvores são reduzidas a traços mínimos.

Este percurso estético de Pancetti é marcado, além da progressiva geometrização, pela centralidade das cores, que vão se tornando mais vivas conforme seu amadurecimento. Nos últimos quadros a cor de fato rouba o protagonismo do contorno dos elementos representados, tornando-se decisiva para a forma.

O sol de Amaralina ou, nas paisagens urbanas, a luz de Campos do Jordão são tão ou mais importantes para o olhar de Pancetti do que as coisas flagradas no local. Este aspecto se radicaliza com a recusa do realismo praieiro: o vento não faz cantiga nas folhas no alto dos coqueirais nem ondula as águas. O mar tampouco quebra na praia — bonito para Pancetti é uma vastidão imóvel de azul.

A lagoa do Abaeté, de 1957, e marinhas do período baiano de Pancetti, 1954–56 (Imagens: Divulgação)

Na beira do mar

A viagem de Pancetti com destino na abstração, que lhe credencia à melhor embarcação moderna, encontra par na simplicidade que atravessou sua vida e seu ponto de vista. Como Volpi, Pancetti encontrou uma sofisticação que não se dá apesar mas em função da vida que levou — e que conferia possibilidades e restrições aos seus anseios artísticos. Nas praias que pintou, um ambiente democrático, popular e aberto (como as festas populares de seu par modernista) está representado de forma simples e depurada.

Além da política, as marinhas essenciais de Pancetti carregam um traço de sabedoria. “Há um grande cansaço de explicar o mar”, escreve Oswald de Andrade no canto que abre O Santeiro do Mangue. Teria o velho Pancetti cansaço de pintar o mar? Vai ver se trata da recusa a um esforço desnecessário, um convite a resolver as coisas com a lógica de uma canção de Caymmi — de estrutura “plena e simples”, como analisou Nuno Ramos.

O coqueiro, a areia, a morena e as águas de Itapoã — aqui sem vento ou saudade. Isto é, na pintura, porque para o espectador vale a máxima de outra canção praieira: quem vem para a beira do mar de Pancetti, nunca mais quer voltar.

Pancetti — Navegar é preciso

Abertura: hoje (17), às 17h30. Visitação: até 9/12, de segunda a sexta (10h/18h) e aos sábados (10h/13h). Grátis.

O lançamento do catálogo será no dia 11/11, a partir das 10h.

Galeria Almeida e Dale: Rua Caconde, 152 — Jardins — São Paulo.

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