Tornar Pelé real

Paradoxos da identidade negra enquanto falta

Acauam Oliveira
Revista Bravo!
9 min readNov 5, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Acauam Oliveira

O filósofo italiano Giogio Agamben, em sua série Homo Sacer, demonstra como o poder soberano ocupa uma posição paradoxal, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico. É sob essa posição contraditória que se fundamenta a normalidade social: o soberano é o ponto de exceção que confere possibilidade de existência à própria norma.

Talvez isso explique de alguma maneira porque os súditos brasileiros mantêm uma relação tão complicada com seus reis, ao mesmo tempo espelho e negação de si. Afinal, os soberanos nos traem no momento mesmo em que realizam nossas fantasias. Eis a razão de ser de sua soberania, e de nossa existência enquanto súditos.

Roberto Carlos é aqui um caso emblemático. Um dos maiores sucessos populares da história da música popular brasileira e de toda a América Latina, dono de algumas das mais impressionantes cifras de vendas da Indústria Fonográfica, responsável direto pela modernização da vertente romântica da canção popular pós anos 1960. Sua popularidade é tão grande que diversos programas de rádio distribuídos por todo território nacional dedicam ao menos uma hora de sua programação diária a transmitir suas canções. Em João Pessoa, por exemplo, o bar Cantinho do Rei só toca composições de Roberto Carlos.

Em suma, tudo em Roberto Carlos é superlativo, o que por si só já justificaria o merecimento de sua coroa. Ainda assim, ou por isso mesmo, sua soberania está longe de ser uma unanimidade. Desde o surgimento do super astro, parte considerável da crítica e da classe artística — sobretudo aquela ligada ao campo mais nacionalista da MPB — já denunciava a ilegitimidade de seu reinado. As acusações variavam, mas seguiam um mesmo mote: suas canções seriam pura cópia importada de modismos imperialistas e, portanto, pouco afeitas as verdadeiras questões nacionais, além de esteticamente frágeis e ideologicamente conservadoras. Dessa perspectiva, Roberto Carlos seria muito mais um usurpador do que um rei por direito, devendo ser substituído por alguém mais alinhado a valores progressistas e comprometido com um projeto de emancipação popular. Um déspota esclarecido, por assim dizer, de preferência de linhagem nobre. Um Buarque de Holanda, quiçá

Contudo, descontadas as preferências ideológicas, o que poderia ser mais brasileiro do que a fusão carlista entre o moralismo católico conservador e altas doses de sacanagem, mistura essa que é a cara da programação dominical da TV aberta, verdadeiro patrimônio da Família Tradicional Brasileira? Como não reconhecer de imediato o Brasil profundo que se inscreve na produção musical de Roberto Carlos e em seu tipo particular de conservadorismo? Afinal, nada mais tipicamente nacional do que usar o especial de Natal da Globo, com toda sua carga de simbolismo cristão, para cantar uma música tão sacana quanto Cavalgada. Diga-se de passagem, mesmo em relação ao cristianismo a contradição se resume apenas à superfície, caso consideremos o caráter erótico dos Cantares de Salomão, por exemplo.

Mas não é apenas a soberania carlista que sofre com o perigo de insurreição de seus súditos mais rebeldes. O rei do baião Luiz Gonzaga, atualmente uma unanimidade, sofreu anos com o ostracismo e ainda hoje é questionado em seu conservadorismo (embora com menos vigor do que as críticas feitas a Roberto Carlos). O reinado de Ayrton Senna também vem sofrendo baixas junto com o interesse decrescente do brasileiro pela fórmula I. E a rainha Xuxa , branquíssima, porém mulher, sempre foi olhada com desconfiança: ora santa angelical, ora demônio hiper sexualizado.

Em suma, amamos odiar nossos reis e rainhas porque, no limite, eles expõem algo daquilo que somos em profundidade — o que quase nunca é algo bonito de se ver.

Entretanto, é quando esse reinado é protagonizado por príncipes e rainhas negras que as coisas se tornam ainda mais complexas e densas, porque incide-se em um fator determinante de nossa constituição enquanto país: o racismo. Nesse caso a relação de amor e ódio estabelecida entre o soberano e seus súditos recebe um tempero particular, pois a ‘impropriedade’ da realeza negra é de outra ordem.

No caso do reinado branco, trata-se da impropriedade do sujeito em relação ao país: em alguma medida a conta não fecha, a síntese sempre deixa um resto. Roberto Carlos é espelho ou imposição? Xuxa Meneguel acolhe ou alicia? No caso da realeza negra, contudo, a impropriedade é antes de tudo em relação a sua própria identidade, que nunca encarna por completo a síntese nacional, posto não ser o lugar do universal. Pois, como nos lembra Fanon, a identidade humana é branca, enquanto o negro é puro corpo, não-ser que respira.

Machado de Assis é o caso mais emblemático desse limiar no campo literário. Um autor negro que conseguiu ser reconhecido como verdadeiro Imperador das Letras Nacionais, considerado um dos maiores nomes da literatura mundial. A identidade negra de Machado, entretanto, desde sempre foi uma questão deslocada de si própria.

A negritude machadiana às vezes era encarada como uma grande ausência, como nas famosas palavras de Joaquim Nabuco dirigidas a José Veríssimo, quando da morte do amigo: “O Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego”. Para elogiar Machado, Nabuco subtraia-lhe a negritude, como a lhe compor melhor figura ao eliminar o ‘sangue estranho’. ‘O alferes eliminou o homem’. Não eram poucos, contudo, os que o acusavam o bruxo do Cosme Velho de renegar sua condição étnica ‘pra ver branquinho aplaudir’, como um odioso traidor dos próprios pares. E não faltavam também aqueles que aludiam a condição mulata do escritor para atacá-lo, como fez por exemplo Silvio Romero. Nesse caso, a negritude é aquilo que excede o autor e impede sua obra de adquirir qualidade branca superior.

Jogando o jogo para ganhar, mas se posicionando a cada linha de sua obra contra a branquitude, a negritude de Machado é tida ora como excesso, ora como falta. De todo modo, nunca completamente coincidente com a identidade deste enquanto sujeito. A crítica à falta de posicionamento de Machado reconhece algo de insuficiente em sua negritude, cobrando dele um posicionamento mais claro e firme, como se a literatura fosse um espaço de comunicação mais direta com demandas populares, e não um violento sistema de dissociação e negação — e o episódio recente da não nomeação de Conceição Evaristo para a ABL o comprovou mais uma vez. De todo modo, o que se esquece nesse chamado às armas é que Machado foi o mais demolidor crítico da branquitude brasileira.

Por outro lado, é óbvio que submeter-se a essa demanda por engajamento é a suprema armadilha, e aqueles que porventura optem por esse caminho encontram as mais perversas formas de violência e marginalização, como nos casos de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus. A questão é que o negro nunca é coincidente consigo mesmo, a despeito de obedecer ou não aos mandatos da branquitude. Assuma a posição que assumir, seu lugar em relação a própria identidade será sempre de usurpação. De um jeito ou de outro, o negro está sempre em débito.

Negro demais, negro de menos, a realeza negra é um excesso em relação a si mesma, uma impossibilidade que caminha e estrutura todo o tecido social a partir de sua falta.

E chegamos, enfim, ao maior de todos, o rei do futebol, Pelé, considerado o maior atleta do século XX e que completou oitenta anos no dia 23 de outubro. Junto com o futebol, Pelé é (ou foi) o símbolo maior de tudo o que o Brasil sonhou realizar, a concretização de sua potência enquanto nação e a suprema demonstração da força da cultura popular em projetar para o mundo uma sociedade social e racialmente mais justa, capaz de transformar seus conflitos sociais em potência criativa e virtude humana. Pelé foi a encarnação em campo de um país mais decente, a partir do corpo negro afro reluzente.

Mas assim como todas as demais realezas, sua coroa foi colocada em cheque em diversas ocasiões. Não tanto por questionarem o fato dele ter sido o maior, mas pela crença silenciosa de que mesmo isso seria, em alguma medida, insuficiente.

Pelé é frequentemente acusado de branqueamento, de omitir-se politicamente e fazer pouco por seu povo. Reatualiza-se nele a mesma percepção da negritude enquanto falta, como se no futebol — ou mesmo em outros esportes, como vimos no caso da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg ao posicionar-se contra Bolsonaro — fosse possível chegar ao topo sem jogar o jogo comandado pelos donos da bola.

Nesse sentido é interessante lembrar aqui o posicionamento de Caetano Veloso em um debate promovido pela revista Homem em 1977, que rebate justamente as acusações de omissão do rei:

“Quando você cobra de Pelé uma atitude em relação a problemas sobre os quais você pensa de uma determinada maneira, você está se esquecendo de que Pelé é uma pessoa que já fez muito […] Não conheço nenhuma declaração importante de Pelé sobre a situação do negro no Brasil e no mundo, sobre a situação do homem pobre, sobre a situação do Brasil diante dos outros países, ou mesmo sobre a situação jurídica dos jogadores de futebol. No entanto, todos esses assuntos foram afetados por ele, Pelé, pelo simples fato de jogar o grande futebol que joga e de ter chegado ao ponto em que chegou, abrindo uma imensa gama de possibilidades. Pedir a ele mais que isso seria pedir energia demais a quem já dá energia em demasia. Sem que Pelé dissesse uma só palavra, o jogador de futebol no Brasil ganhou a possibilidade de dizer suas próprias palavras […] A gente tem de parar e ver a carga de informação cultural e a energia de liberdade e de verdade que emanam de Pelé, ao invés de desrespeitá-lo.”.

Reduzir a dimensão política inscrita nos gestos de Pelé a mera falta é um claro reducionismo que no limite busca responsabilizar Edson Arantes por ter se aproveitado de uma das poucas formas de driblar o racismo estrutural brasileiro e criar, pela simples excelência de sua arte, a possibilidade de que outros negros também o fizessem. O mundo seria objetivamente pior para os negros sem Pelé, pois ele deu corpo a um campo novo de possibilidades de ser, um modelo de inscrição dos marginalizados no mundo, pelo seu próprio meio de atuação específica, essencialmente negra, ainda que sem posicionar-se politicamente contra o racismo.

Pelé, ao não tratar diretamente de questões raciais (norma branca que garantiu sua coroa), investiu em sua imagem enquanto universal, buscando ser reconhecido por aquilo que é enquanto mestre maior em campo. Mas o universal é o branco, a disciplina, a tática, a razão. E Pelé é o preto, o gingado, a malandragem, o corpo. Sabendo disso, cindiu sua pessoa em duas: mágico em campo, ‘respeitável’ fora dele. E com isso criou a metáfora perfeita para a condição de dupla negação do negro na sociedade brasileira. Não é por acaso que Edson Arantes do Nascimento costuma tratar de Pelé em terceira pessoa, como um outro de si mesmo, de modo a melhor observar o mito. O melhor do mundo em campo, sujeito ‘neutro’ fora dele. Pelé é Deus. Edson, um homem negro. Chegou no topo, mas jamais tornou-se integralmente senhor de sua própria identidade — Edson e Pelé estavam condenados a não se conciliarem, expondo a falta um do outro.

O atleta do século já sofreu (muito) racismo, já silenciou sobre o racismo, já incorporou o racismo em seus gestos e em sua identidade. Foi identificado como a prova maior de que no Brasil não existe racismo, e como prova de que o negro no Brasil nunca acerta, mesmo quando ele por si só é dos maiores acertos que o planeta já produziu. As contradições de Pelé são as nossas contradições enquanto sociedade — daí o merecimento de sua coroa. Afinal, o soberano não é aquele que resolve os conflitos de seu povo, mas quem instaura o paradoxo performativo que dá origem aquilo que somos. E Pelé é a materialização de um outro modelo de vivência para o homem negro no interior de uma sociedade racista que se reconfigura a partir de sua existência, sem que se resolvam suas contradições: afinal, todo menino negro que já sonhou em ser Pelé algum dia também já se sentiu rebaixado por ser apelidado de Pelé, mesmo sem se interessar nem um pouco por futebol.

Pelé como desejo e castração: oitenta anos depois, a luta do negro brasileiro segue orientada pelo desejo de criar uma sociedade em que seja possível conciliar a magia de Pelé com a materialidade humana de Edson Arantes do Nascimento, apropriando-se enfim de sua própria identidade. Tornar Pelé real.

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Acauam Oliveira
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Enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha.