Treva e luz convivem em Besta Fera

Crítica: disco de Jards Macalé é contundente sobre as torpezas do Brasil, mas enxerga algumas saídas a partir da situação da canção

Paula Carvalho
Revista Bravo!
6 min readFeb 21, 2019

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Foto: Leo Aversa

É, sem dúvida, um privilégio ouvir um novo trabalho de Jards Macalé. No caso deste último Besta Fera, lançado no começo de fevereiro, são 12 músicas que até então não haviam sido registradas, ainda que algumas tenham sido compostas nos anos 70 e 80. Nesse sentido, o disco é um pouco diferente do último de inéditas O Que Faço É Música, de 99, que tem algumas regravações de canções já conhecidas, como Movimento dos Barcos e Vapor Barato. Mas o que apimenta ainda mais o álbum é vê-lo lançado à beira do caos político e social do país em 2019, e a produção em parceria com o "pessoal do experimental", como chama Macalé, para se referir aos músicos Kiko Dinucci, Thomas Harres, Thiago França, Ava Rocha, Romulo Fróes, Ariane Molina, entre outros.

Besta Fera tem, é claro, um mote político no seu contorno. Trevas, vampiros, bombas agás e as próprias bestas sem cabeça permeiam sua atmosfera — cheia de pausas que precedem precipícios sonoros da guitarra de Guilherme Held, herdeiro da tradição lannygordiniana de que Jards é contemporâneo. Mas, apesar da parceria com músicos de extrema marca pessoal (alguns deles, responsáveis pelos dois últimos discos de Elza Soares, que representam um marco na carreira da sambista), ainda sobressai o estilo e a cosmologia Macalé.

A comparação pode parecer um pouco simplista, mas digamos que no último disco de Chico Buarque, Caravanas (de 2017), a maior experimentação dos arranjos de Luiz Cláudio Ramos são os beat-boxes de Rafael Mike na música que dá título ao disco. No mais, o disco trabalha no limite das orquestrações, melodia e dos arranjos do violão (que está sempre levando às últimas consequências a estrutura da canção, claro) de Chico.

Em Besta Fera, o processo é bem diferente. A base melódica, em boa parte das músicas, está no violão, mas em dois estilos. O de Jards, mais na escola de Nelson Cavaquinho e Maurício Tapajós, tem tensões e respiros, enquanto o de Dinucci é mais rítmico e mais notadamente afro-brasileiro, próximo dos estilos de Baden Powell, João Bosco, Douglas Germano. Além deles, a rabeca de Luê dá outros coloridos a Pacto de Sangue e Limite, por exemplo. Dinucci, fora o violão, opera samples, sintetizadores e até um batuque com fita cassete em Besta Fera. A interpretação — sempre caso à parte quando se fala em Macalé — também ganha ares experimentais como quando ele canta debaixo d’água em Trevas. Assim, por mais que se guie pelas construções de melodia sempre particulares — que também fazem referência a outros mestres como Dorival, Gil, Donato e João Gilberto — , o disco ganha ares mais contemporâneos com a produção de Dinucci e Harres.

Quanto à cosmologia, o retorno à temática vampiresca, por exemplo, expande alguns dos conceitos elaborados desde 69, quando ele apresentou Gotham City no 4º Festival Internacional da Canção. Leitor assíduo de quadrinhos — assim como o seu parceiro, José Carlos Capinam — Macalé revelou, naquele ano, a ambiguidade do morcego/vampiro Batman, que ao mesmo tempo em que é pintado como herói, é um caçador de bruxas — e é claro que eventualmente a bruxa pode ser você. Agora, na inédita Pacto de Sangue, dos anos 70, a poesia certeira de Capinam nos lembra que, na verdade, estamos todos mancomunados nesta lógica do sangue que corre pela cidade. Sangue esse — ou lama — que é terrivelmente atual quando pensamos em tragédias como a de Brumadinho.

Jards volta também à fina sátira de Gregório de Mattos — a música que dá título ao disco, Besta Fera, é uma adaptação do poema Aos Vícios — para fazer o seu comentário sobre o estado atual das coisas. “Todos somos ruins, todos perversos / Só nos distingue o vício e a virtude / De que uns são comensais, outros adversos / Quem maior a tiver do que eu ter pude / Esse só me censure, esse me note / Calem-se os mais e haja saúde”.

As duas canções não deixam de mostrar mais do que Patricia Palumbo chama de "existencialismo brasileiro" de Jards. Os fatos estão dados, a responsabilidade é nossa, estamos no mesmo barco, embora alguns com mais vícios ou virtudes. Heróis, só há mesmo nos quadrinhos. Lidemos com nossos demônios.

Foto: Cafi

Novas e velhas gerações

A socióloga Vanessa Gatti chama de "súditos da rebelião" a geração ligada à música independente dos anos 2010 que se volta para os nomes menos consagrados dos anos 70 e 80 — Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio, Walter Franco, para ficar em alguns exemplos — em uma operação que tanto se reconhece "herdeira" dessa tradição à margem da grande indústria da música como faz esses artistas chegarem às novas gerações, renovando o público. Não é diferente neste caso de Jards, que tem Buraco da Consolação em parceria com Tim Bernardes (também filho de outro "à margem", Maurício Pereira) e Limite, com Ava Rocha.

Artista que vem da linhagem de Severino Araujo — da Orquestra Tabajara, onde trabalhou como copista — e seguidor da tradição da canção de João Gilberto, Jards é personagem fundamental para diversas inovações na música brasileira, como a estreia de Bethânia no Teatro Opinião, Gal Costa com Fa-Tal, o Transa de Caetano Veloso e a absorção do reggae no nosso violão, para ficar em alguns exemplos. Sem falar em todo o diálogo com o cinema novo, em especial Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, e com os concretos e neoconcretos.

O "re-conhecimento", como chama Fred Coelho, de Macalé pelas gerações mais novas vem se desenrolando desde o começo dos anos 2010 com a produção do documentário Jards, de Erik Rocha, a gravação da coletânea E Volto Pra Curtir, organizada pelo blog Banda Desenhada com participações do Metá Metá, Letuce, Leo Cavalcanti, entre outros músicos jovens.

Nessa chave, é possível entender a joia Valor, que fecha o disco, como uma celebração desse encontro. De 81, quando Macalé vivia um período conturbado desde sua saída da CBS após Contrastes, de 77, ele canta: “Não quero que saibam / O valor de minhas canções / Se boas ou más, pouco me importam / Elaborei com meu calor / E nesse trabalho eu levo a flor / Ninguém me bate / E posso prová-lo assim que for / Dado o remate”. A versão de Besta Fera traz a gravação original, em cassete, daquela época. É um prenúncio de tudo o que viria: liberdade para fazer parcerias com quem se deseja, mercados menores, porém consistentes e de público fiel, possibilidade de gravar e viver de música sem precisar ceder à toda a lógica comercial do mainstream.

Treva e luz, portanto, convivem em Besta Fera — mesmo que esta última seja bem mais difícil de enxergar. Como em Tempo e Contratempo (que o artista ser uma metáfora de morte e vida), há, também, uma reflexão sobre a sua própria história e sobre a canção no Brasil, que pode até ter sofrido seus contratempos, mas definitivamente não parou no tempo.

Jards Macalé — Besta Fera (Natura Musical e Lei de Incentivo à Cultura)
Direção Musical: Jards Macalé
Produção Musical: Kiko Dinucci e Thomas Harres
Direção Artística: Romulo Fróes
Direção Geral: Rejane Zilles

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com