Tropicalismo futurista tardio
Crítica: “Acrílico”, de Nina Becker, filtra pelo seu prisma translúcido o som da virada dos anos 60 para os 70 e aponta o feixe de luz para hoje
Existe uma atmosfera muito familiar em Acrílico, algo reconfortante, um útero translúcido que carrega um pouco de uma bolha sonora que faz muito sentido para quem cresceu nos anos 70 e aprendeu intuitivamente, de ouvido, que o rock popular brasileiro era iê-iê-iê e bossa nova, psicodelia e samba do morro, forró e jazz, conforto e confronto, desbunde e protesto, metafísica e dor-de-cotovelo.
Ao mesmo tempo em que o álbum dialoga com todos esses duplos paradoxais e que se insere numa tradição — uma linhagem muito clara vinda dos discos tropicalistas de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal, dos flertes de Elis com os baianos, de Rita Lee do Tutti Frutti, da guitarra do Lanny Gordin, de Jards Macalé, Jorge Mautner e Luiz Melodia — , ele consegue captar todas essas inspirações e, como num prisma, canalizar toda a energia para que faça sentido hoje. Faz isso por meio das letras, leituras do Brasil atual por meio do afeto com uma pitada política, e da voz deslumbrante de Nina Becker, que definitivamente tem força própria, não é a de uma diluidora.
Acrílico não poderia ser um nome mais apropriado. Pode ser uma viagem muito particular, mas, embora tenha sido criado nos anos 1920, o acrílico remete a um momento estético dos anos 1970 em que essa espécie de vidro inquebrável carregava uma ideia de futuro, com seus desenhos curvilíneos e o uso de cores fortes.
Cores de um futuro menos sombrio que o da realidade da ditadura, em que um certo grau de alienação do real servia tanto para imaginar uma sociedade mais evoluída esteticamente quanto para afirmar escolhas afetivas libertárias.
De maneira discreta, inteligente, o disco insinua que estamos precisando vestir novamente essas lentes coloridas, nem que seja para nos proteger desse momento em que tantos fantasmas que acreditávamos despachados para o além voltam a nos rondar.
Ainda que de forma oblíqua, Acrílico recupera nas entrelinhas uma possibilidade de utopia, essa senhora caprichosa que parecia enterrada pela glutonice do mundo em que tudo é acessível instantaneamente, numa suspensão da cronologia histórica. Faz isso menos por meio do discurso político e mais ao falar de coisas do dia-a-dia, do amor com uma perspectiva feminina, de um romantismo poético. Exemplo dessa sutileza é esse trecho da letra de Despertador, que no meio de uma cena ultra prosaica, saca: “o vento bate na janela/ os burros batem as panelas”. O resto a gente intui.
Numa análise menos viajante, a letra da canção Acrílico dá a medida desse poético reconfortante, do inanimado cheio de alma, da beleza dos paradoxos que permeia todo o disco: “Se poderia/ essa matéria clara/ aos olhos/ invisível/ ser tão próxima/ de não existir/ ora ao tato/ rígida// se poderia/ essa matéria rara/ indizível/ ser translúcida/ mas não confluir/ ora ao canto/ tímida// intransponível/ oblíqua/ em sua estrutura/ química// irreconhecível/ esquisita/ em sua natureza/ inquebrável”.
Essa canção dá um pouco da tônica do disco porque é a única composição criada por toda a banda. Responsáveis por todos os arranjos, Pedro Sá (guitarra), Alberto Continentino (baixo), Rafael Vernet (piano) e o gigante Tutty Moreno (bateria) conseguem fazer essa ponte de 50 anos de tropicalismo com grande naturalidade.
Para além do núcleo duro, Acrílico é recheado de participações especiais: Moreno Veloso divide os vocais em Karwaii, Negro Leo toca violão em Caramelo da Nostalgia, Luca Raele toca clarinete em Na Quebrada e Hammond em Olinhos, Everson Moraes leva seu trombine para Acrílico, Kassin toca synths em Despertador e Eduardo Manso em O que eu Não Sei.
Com esse time, acrescido de novos e velhos parceiros nas composições — Kassin, Moreno Veloso, Rubinho Jacobina, Pedro Sá, Romulo Fróes se juntam a Laura Erber, Natércia Pontes, Negro Leo — , Nina Becker cria um dos discos mais líricos, íntimos e ao mesmo tempo universais do ano.