Um destino irrefreável

A trajetória do imigrante italiano Eddie Carbonne e de sua família, instalados em Nova York nas primeiras décadas do século 20, é o norte do espetáculo “Um Panorama Visto da Ponte” em cartaz no Teatro Raul Cortez em São Paulo

Helena Bagnoli
Revista Bravo!
5 min readSep 26, 2018

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Foto: Ale Catan (Divulgação)

Os Estados Unidos da década de 50 eram vistos como a terra da abundância. A Itália no mesmo período estava destroçada, com o desemprego grassando em todas as camadas da população. Partindo desse recorte histórico, o norte-americano Arthur Miller escreveu em 1955 o texto dramatúrgico Um Panorama Visto da Ponte. A ação da peça se passa no Brooklyn, em Nova York, subúrbio concorrido pela classe trabalhadora — especificamente no cais, onde trabalha o estivador Eddie Carbonne, que vive no bairro com sua mulher e Catherine, a sobrinha que criaram juntos e que agora está atingindo a maioridade.

O prólogo nos conta dessa família, que enuncia certa inquietude da tia em relação à superproteção do marido com a sobrinha: ele a adora, e Beatrice, a esposa, percebe a possessividade dessa adoração e a coloca, inclusive, na conta da falta de sexo entre o casal. Em um diálogo inicial ela deixa claro que a intimidade entre eles anda escassa e que ele está cada vez mais distante. Aqui há a primeira sinalização de que muito da força do texto advém do vácuo doloroso entre palavras corriqueiras, o silêncio entre elas e os vestígios de sentimentos vastos e complexos.

O olhar assombrado de Beatrice a cada vez que a sobrinha Catherine se lança animadamente nos braços de seu marido, como fez por toda a infância, deixa claro que ela percebe, agora, como o gesto agita os sentimentos dele e suscita elementos de tensão pelo espaço, uma ponta de um iceberg — há muito de não dito entre os três.

O coroamento da certeza acontece com a chegada dos primos sicilianos de Beatrice, Marco e Rodolpho, que vão a Nova York ilegalmente para encontrar trabalho, prática comum naquele momento em que a América era uma promessa e a Itália apenas sobrevivia. A sobrinha e um dos primos têm uma atração imediata, deixando Eddie visivelmente incomodado. Aqui fica estabelecido o prenúncio da tragédia.

A história é contada por Alfieri, um advogado local que, assim como o coro grego, revela parte significativa dos fatos e deixa claro que ele não poderá auxiliar na trajetória de Eddie.

Esses são os eixos da narrativa, que toma corpo nessa montagem do diretor Zé Henrique de Paula, em cartaz no Teatro Raul Cortez, em São Paulo. O elenco é liderado por Rodrigo Lombardi, num vigoroso Eddi Carbone e por Sérgio Mamberti, que de maneira sólida dá vida ao advogado Alfieri.

O cenário de Bruno Anselmo, com placas de contêineres, remete às docas, ou à casas empobrecidas de seus trabalhadores, ao mesmo tempo que tantas e tantas vezes sugere um ringue e abriga a coreografia dos personagens, contribuindo com o clima áspero da trama. Os figurinos, de autoria do diretor, são discretos e chamam a atenção os pés descalços dos personagens — à exceção do advogado, todos desprovidos de poder ou riqueza, como são os imigrantes, e têm a mesma sobriedade da cenografia. Assim, eles compõem um dueto que contribui para que o foco esteja em cada uma das palavras pronunciadas.

Foto: Ale Catan/Divulgação

Tragédia grega

O ponto alto do espetáculo é o texto, que resiste ao tempo e o põe em xeque, discutindo questões tão familiares a esse século 21: a delação. Ali também premiada e também consciente: Eddie Carbone conhecia as regras que tornam a traição o pior de todos os crimes. Ele conhece muito bem todos os códigos de justiça e vingança que se aplicam à sua comunidade. As questões da imigração ilegal, discutidas em primeiro plano, eram endurecidas pela lei americana Johnson-Reed de 1924 e resultava em deportação drástica, como ainda acontece hoje e em escala global. Os imigrantes indesejados — ou seja, aqueles vindos de economias pobres — continuam caçados sem piedade por autoridades furiosas. A dor imigrante está em cada espaço da cena.

À medida que a ação transcorre vai se constatando que ali estão todos os ingredientes de uma tragédia grega. Apesar de um homem comum, o protagonista, Eddie Carbone, carrega a ideia de um herói, que assim como um semideus tem uma fisicalidade poderosa, pleno de qualidades, protetor, ao mesmo tempo em que encapsulado em fúria, como um autêntico herói trágico, que aqui vai do bom marido a um homem tomado pelo ciúmes doentio. Rodrigo Lombardi consegue levar adiante o desafio, carregando esse personagem por toda a trama como quem vai para um altar construído para o sacrifício.

Sérgio Mamberti, o narrador-coro, escrutinador da verdade, conduz a história com uma serenidade que só os grandes atores adquirem, intervém aqui e ali, e deixa claro que sabe que ele e sua lei (e quiçá até a lei de Deus), não podem fazer nada contra o destino de Eddie. Ainda que ele tente evitar o inevitável, sabe que é impotente para pará-lo.

Alfieri começa a peça narrando os fatos subliminares e compartilhando alguns pensamentos esparsos. No final, ele entra no ringue e se junta à luta sangrenta que se desenrola. O advogado torna-se o arauto de um mundo onde paixões irracionais e dionisíacas, superam até mesmo o instinto de sobrevivência, um outro tema caro ao texto de Miller.

A direção de Zé Henrique de Paula tem apuro e segue o rigor pedido pelo texto, conseguindo com que o restante do elenco desempenhe seus papéis com eficiência, ainda que lhes falte por vezes nuances e a cólera, necessárias para um texto de tanta complexidade.

O autor escolheu o título pensando na comunidade que ele via quando atravessava a ponte do Brooklyn em direção à Nova York poderosa, terra das oportunidades, uma janela do sonho americano, que nunca levou em conta a colisão de alta velocidade que essa promessa poderia causar aos milhares de desvalidos que chegavam na tentativa de conquistá-la ou de ao menos, remanescer.

Um Panorama Visto da Ponte — Teatro Raul Cortez (rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, São Paulo, telefone 3254–1631). Sexta às 21h30; sáb. às 21h; dom., às 18h. Até 25 de novembro. Ingressos: R$ 80,00 (vendas no site www.ingressorapido.com.br)

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