Um voo na arte que bebe da vida como ela é

Helena Bagnoli
Revista Bravo!
Published in
3 min readMay 13, 2021

“Para Onde Voam as Feiticeiras” é cinema para gente grande, interessada em olhar o mundo por outras lentes

Foto: Divulgação

Meses depois da estreia, finalmente consegui assistir a Para Onde Voam as Feiticeiras, longa de Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral que, com a pandemia, tem sido apresentado em festivais virtuais. Fiquei na dúvida se deveria escrever sobre um filme que não tem um canal de exibição, mas foi tamanho o impacto que resolvi fazê-lo, para que os interessades anotem no caderninho e fiquem de olho.

O argumento é sobre um grupo de artistas performáticos que ocupam o centro da cidade de São Paulo, onde discutem — de forma figurada e real — temas fundamentais para os grupos identitários considerados não-hegemônicos a que pertencem, ao mesmo tempo em que levam para a cena os passantes da cidade que cruzam o set improvisado. Porém, esse é apenas e tão-somente o ponto de partida para a materialização de um cinema teatralizado — um manifesto sem falsa retórica, sem poesia e da melhor linhagem.

Desde Era o Hotel Cambridge que Eliane Caffé passou a fazer um cinema explicitamente colaborativo, com uma relação dialética entre roteiro e improvisação, ficção e documentário. Isso resulta num cinema engajado, pautado por mazelas sociais que precisam ser denunciadas. Carla Caffé já estava naquele barco, e Beto Amaral juntou-se às duas agora, formando uma tríade que escolheu usar o cinema como uma ferramenta política da pesada.

Para Onde Voam as Feiticeiras não tem uma linha narrativa linear, é antes uma colagem: de personagens, de temas, de gente real. É arte em estado puro, aquela que não teme o imprevisto, mas vale-se dele até a última gota. O que me deu a certeza de ter encontrado sua descrição perfeita num trecho do manifesto Sou a Favor de uma Arte (1961), do astro da pop arte Claes Oldenburg: “Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida, como a própria vida”. É para esse lugar que o filme nos leva.

Foto: Divulgação

Um enredo relativamente simples, que coloca na roda, a partir do lugar de fala dos artistas-personagens, questões prementes para os movimentos pelo direito à moradia, LGBTQIA+, negros, indígenas. Questões que se agigantam quando a direção escolhe, à semelhança do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, levar o elenco para a rua de uma cidade desesperançada, colocá-lo em figurinos e misturá-lo ao espectador-transeunte, dividindo com ele o protagonismo e a transformação radical da ação dramática. O resultado é de uma verdade estonteante, porque tudo vira teatro, tudo vira realidade — ao mesmo tempo em que tudo é essencialmente cinema, com o set escancarado, equipe, direção, espectador, todos testemunhas da história que acontece ali, naquele momento.

Isso, porém, apesar de forte, poderia ser simplista se esses caminhos não fossem intercalados por depoimentos dos atores, que, nesse caso, se travestem nas suas próprias pessoas, com suas crenças e causas, emoldurados por uma paleta, com cores quase infantis — rosa chiclete, azul vívido etc — , que fazem um contraponto quase surreal à falas pungentes.

Aos depoimentos, somam-se clipes com entrevistas (destaque para uma com Judith Butler), imagens de arquivos, documentos audiovisuais que ancoram a narrativa e ajudam a classificar melhor os desclassificados, como fala um dos atores-personagens.

Para Onde Voam As Feiticeiras é a criação destemida, aventuresca, feita por uma gente corajosa, atrás e à frente das câmeras, por microfones abertos até o talo para ouvir de fato. Uma construção feita em conjunto, por isso estão todos afinados, alinhados, igualmente potentes, nesse longa que não é exatamente um documentário, mas jamais uma ficção. Um naturalismo experimental que só é possível porque o projeto é coletivo. Por isso, como diria Gilles Deleuze, ele se converte numa “máquina de guerra”, que propicia uma experiência estética próxima à da vida.

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