Uma ópera encharcada de História

“Liquid Voices”, de Jocy de Oliveira, recupera desastre da Segunda Guerra Mundial para abordar crise atual dos refugiados

Andrei Reina
Revista Bravo!
7 min readOct 20, 2017

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Gabriela Geluda no vídeo “Noturno para um piano”, de Jocy de Oliveira (Foto: Jocy de Oliveira / Divulgação)

Em 1942, um navio com quase 800 refugiados judeus com destino à Palestina foi bombardeado. Dos naufrágios da Segunda Guerra Mundial, o do Struma foi aquele que mais vitimou passageiros civis. Ao longo de 2016, mais de 5 mil pessoas vindas do Oriente Médio e do norte da África se afogaram no Mediterrâneo sem completar a jornada prevista até a Europa.

É como num retrovisor invertido, falando do desastre histórico do navio Struma, que a compositora Jocy de Oliveira olha a crise contemporânea dos refugiados para imaginar uma ópera. Liquid Voices, que insere a personagem ficcional Mathilda Segalescu no episódio, tem a sua estreia mundial hoje (20) no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, onde também será apresentado nos dias 21 e 22.

“A temática de minha história é a destruição, o naufrágio, a perseguição das minorias, os refugiados de agora e de sempre”, explica Jocy. Para transformá-la em ópera, a compositora se vale de recursos multimídia, como é característico de sua trajetória desde os anos 60. A ópera tem, além de música e texto de Jocy, vídeo de Bernardo Palmeiro, instalação cenográfica de Fernando Mello da Costa e coreografia de Toni Rodrigues.

A composição de Liquid Voices combina instrumentos tradicionais, executados pelos músicos do Ensemble Jocy de Oliveira, e eletroacústicos, a cargo de Marcelo Carneiro. A soprano Geluda Oliveira, que interpreta Mathilda Segalescu, e o tenor Luciano Botelho protagonizam o espetáculo, que no fim do mês será gravado durante apresentação sem público nas ruínas do teatro do Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. O objetivo é transformar a ópera num longa-metragem, segundo Jocy.

Instalação cenográfica de “Liquid Voices” (Foto: Divulgação)

Encontrando Berio

A estreia em São Paulo também marca o lançamento de Meu Encontro com Luciano Berio, DVD que apresenta extratos de sua ópera anterior, a também multimídia Berio sem censura, gravados no Theatro Municipal do Rio.

O registro conta ainda com depoimentos da própria compositora e da atriz Fernanda Montenegro, que integrou a montagem histórica de Apague meu spot light. Realizada em 1961, a peça com roteiro de Jocy de Oliveira e trilha composta em parceria com Luciano Berio é considerada uma das primeiras experiências com música eletrônica no Brasil.

Sua relação com o compositor italiano foi um momento decisivo em sua trajetória. Além dos projetos em conjunto, Berio também compôs peças para Jocy de Oliveira executar, algumas vezes pela primeira vez, ao piano — um tipo de parceria que a intérprete também manteve com outros compositores de vanguarda, como John Cage.

Personagem central de sua história, o piano aparece em Liquid Voices pendurado no teto e envolvido numa rede, como se tivesse acabado de ser resgatado. No enredo da ópera, o piano “é o único sobrevivente de um naufrágio e, como uma caixa preta, é encontrado por um pescador que ouve sua história”, explica a compositora. De volta à superfície, pode emprestar sua poesia encharcada pelos mares da História para narrar os dramas sociais de ontem e de hoje.

Trailer do DVD “Meu Encontro com Luciano Berio”

Para saber mais sobre o processo de composição e montagem de Liquid Voices, a Bravo! conversou por e-mail com Jocy de Oliveira. A compositora e pianista também destacou a importância dos registros presentes no DVD Meu encontro com Luciano Berio. Leia a seguir.

Como começou o processo de composição de Liquid Voices?

O piano tem ocupado minha vida desde muito cedo na infância. Um objeto icônico ao qual eu me senti presa como intérprete por anos e anos. Em 2005, recebi um prêmio da Guggenheim para um vídeo/evento/instalação — Noturno de um piano — questionando códigos culturais marcantes na sociedade ocidental que estavam submergindo. Este foi meu primeiro movimento para liberar-me deste destino traçado tão cedo.

Hoje, no roteiro ficcional para minha ópera Liquid Voices enfoco o piano em seu próprio destino. Ele é o único sobrevivente de um naufrágio e, como uma caixa preta, é encontrado na costa de Siles [cidade do sul da Espanha] por um pescador que ouve sua história. Recebi um prêmio de residência na Fundação Bogliasco, na Itália. Lá, da janela de meu estúdio avistava o Mediterrâneo e minhas vozes líquidas começaram a emergir. Esta é a gênese da história.

“Noturno de um piano”, música e vídeo de Jocy de Oliveira interpretados por Gabriela Geluda

E como foi a montagem?

Sinto-me gratificada de ter como intérpretes de meus personagens dois extraordinários cantores e atores — a soprano Gabriela Geluda e o tenor Luciano Botelho. É muito raro, numa ópera contemporânea, poder contar com intérpretes tão sensíveis. Gabriela Geluda trabalha comigo há 25 anos. Luciano Botelho, pela primeira vez, mas é como se ele tivesse incorporado meus anseios para o personagem. O trabalho de ambos é notável por se tratar de partes difíceis, musical e cenicamente.

Os músicos que compõem meu Ensemble Jocy de Oliveira são solistas impecáveis. E todos os demais integrantes da ficha técnica nos acompanham perfeitamente. No dia 29 de outubro, iniciaremos a filmagem de um longa-metragem da ópera, no emblemático teatro do Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. É o primeiro passo para um elaborado filme.

Assim como outros trabalhos, este novo é multimídia. Quais possibilidades poéticas se abrem quando uma forma tão antiga como a ópera entra em contato com outras linguagens?

Em contato com outras linguagens, a forma antiga de uma ópera evidentemente tem de ser re-pensada, re-estruturada. O formato de uma ópera hoje já não pode ser o de ontem. Para mim, tudo nasce concomitantemente: música, roteiro, texto, imagem. Hoje não se concebe um libretista escrever um libretto e um compositor colocar a música. Pra quê?

O que a inspirou a resgatar o episódio do navio Struma?

O navio Struma é que se juntou à minha história. O evento ficcional da personagem Mathilda Segalescu foi situado no evento factual da Segunda Guerra Mundial. A temática de minha história é a destruição, o naufrágio, a perseguição das minorias, os refugiados de agora e de sempre. Posteriormente pesquisei onde e quando poderia situar esta história e encontrei o naufrágio do Struma, o último navio a deixar a Europa em 1941, com quase 800 passageiros, refugiados judeus com destino à Palestina.

A personagem Mathilda Segalescu é, então, uma forma retrospectiva de vocalizar a tragédia e os anseios dos refugiados de hoje?

Totalmente. Esta é realmente a temática da ópera.

Nem sempre a música de concerto aborda questões sociais. Alguns falam do meio como sendo uma “bolha”. Você concorda com quem separa música e política?

Como? Me enclausurar numa bolha? Minha obra sempre teve uma preocupação com questões políticas, como, por exemplo, questões de gênero.

Lendo a ficha técnica da ópera, salvo pela guitarra, parece haver o predomínio de instrumentos tradicionais. Por que esta opção?

A questão é tratar instrumentos tradicionais com novas técnicas estendidas, ampliá-los por meio da eletrônica. Um violoncelo não será substituído. Ele tomará uma nova dimensão.

Como tem sido o resgate de seu diálogo com Luciano Berio — em 2012, com a ópera Berio sem censura, e agora, com o DVD? Foi este um encontro decisivo na sua vida?

Sim. Foi uma relação pessoal e artística que marcou. A ópera Berio sem censura conta este recorte da vida dele e foi criada a partir do capítulo “Meu encontro com Luciano Berio”, em meu livro Diálogo com cartas. Infelizmente o editor censurou a dramatização da vida e obra dele, e tivemos que reeditar o DVD unicamente com segmentos musicais. Não podíamos deixar de fazer.

Por que?

Porque este DVD traz momentos históricos e inéditos, como a minha execução da Sequenza IV para piano, que foi escrita para mim e somente tinha sido executada por mim uma vez, na primeira audição mundial em 1966, nos Estados Unidos. Depois disto ele compôs uma segunda e uma terceira versão — esta a que hoje é editada e a única conhecida.

Outra gravação inédita é o resgate de um segmento de Apague meu spot light, drama eletrônico de minha autoria em parceria com Luciano Berio, com a interpretação do Teatro dos 7 (Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Ítalo Rossi, entre outros) e que foi dirigido por Gianni Ratto. Esta obra representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil (nos Theatros Municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro).

Jocy de Oliveira interpreta “Sequenza IV”, de Luciano Berio

Em uma entrevista recente, você disse que sempre teve de lutar para produzir de forma independente suas óperas. O fato de compor uma música experimental e a questão de gênero atravessam esse problema?

A questão de gênero é sem dúvida o ponto em referência a certas profissões, como compositora num universo predominantemente masculino. Quanto à música experimental, não acredito que ainda exista. Minha música já foi ouvida e testada por anos. Logo, isto não é nenhum experimento. Mas a linguagem sem dúvida reflete os dias de hoje e muita coisa escrita hoje repete os dias do passado…

Liquid Voices — A história de Mathilda Segalescu

Hoje (20) e sábado (21) às 21h, e no domingo (22) às 18h. Ingressos: R$ 12 a R$ 40.

Sesc 24 de Maio: Rua 24 de Maio, 109 — Centro — São Paulo.

DVD Meu Encontro com Luciano Berio, de Jocy de Oliveira. Selo Sesc, R$ 30. Mais informações no site.

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