Uma ópera encharcada de História
“Liquid Voices”, de Jocy de Oliveira, recupera desastre da Segunda Guerra Mundial para abordar crise atual dos refugiados
Em 1942, um navio com quase 800 refugiados judeus com destino à Palestina foi bombardeado. Dos naufrágios da Segunda Guerra Mundial, o do Struma foi aquele que mais vitimou passageiros civis. Ao longo de 2016, mais de 5 mil pessoas vindas do Oriente Médio e do norte da África se afogaram no Mediterrâneo sem completar a jornada prevista até a Europa.
É como num retrovisor invertido, falando do desastre histórico do navio Struma, que a compositora Jocy de Oliveira olha a crise contemporânea dos refugiados para imaginar uma ópera. Liquid Voices, que insere a personagem ficcional Mathilda Segalescu no episódio, tem a sua estreia mundial hoje (20) no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, onde também será apresentado nos dias 21 e 22.
“A temática de minha história é a destruição, o naufrágio, a perseguição das minorias, os refugiados de agora e de sempre”, explica Jocy. Para transformá-la em ópera, a compositora se vale de recursos multimídia, como é característico de sua trajetória desde os anos 60. A ópera tem, além de música e texto de Jocy, vídeo de Bernardo Palmeiro, instalação cenográfica de Fernando Mello da Costa e coreografia de Toni Rodrigues.
A composição de Liquid Voices combina instrumentos tradicionais, executados pelos músicos do Ensemble Jocy de Oliveira, e eletroacústicos, a cargo de Marcelo Carneiro. A soprano Geluda Oliveira, que interpreta Mathilda Segalescu, e o tenor Luciano Botelho protagonizam o espetáculo, que no fim do mês será gravado durante apresentação sem público nas ruínas do teatro do Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. O objetivo é transformar a ópera num longa-metragem, segundo Jocy.
Encontrando Berio
A estreia em São Paulo também marca o lançamento de Meu Encontro com Luciano Berio, DVD que apresenta extratos de sua ópera anterior, a também multimídia Berio sem censura, gravados no Theatro Municipal do Rio.
O registro conta ainda com depoimentos da própria compositora e da atriz Fernanda Montenegro, que integrou a montagem histórica de Apague meu spot light. Realizada em 1961, a peça com roteiro de Jocy de Oliveira e trilha composta em parceria com Luciano Berio é considerada uma das primeiras experiências com música eletrônica no Brasil.
Sua relação com o compositor italiano foi um momento decisivo em sua trajetória. Além dos projetos em conjunto, Berio também compôs peças para Jocy de Oliveira executar, algumas vezes pela primeira vez, ao piano — um tipo de parceria que a intérprete também manteve com outros compositores de vanguarda, como John Cage.
Personagem central de sua história, o piano aparece em Liquid Voices pendurado no teto e envolvido numa rede, como se tivesse acabado de ser resgatado. No enredo da ópera, o piano “é o único sobrevivente de um naufrágio e, como uma caixa preta, é encontrado por um pescador que ouve sua história”, explica a compositora. De volta à superfície, pode emprestar sua poesia encharcada pelos mares da História para narrar os dramas sociais de ontem e de hoje.
Para saber mais sobre o processo de composição e montagem de Liquid Voices, a Bravo! conversou por e-mail com Jocy de Oliveira. A compositora e pianista também destacou a importância dos registros presentes no DVD Meu encontro com Luciano Berio. Leia a seguir.
Como começou o processo de composição de Liquid Voices?
O piano tem ocupado minha vida desde muito cedo na infância. Um objeto icônico ao qual eu me senti presa como intérprete por anos e anos. Em 2005, recebi um prêmio da Guggenheim para um vídeo/evento/instalação — Noturno de um piano — questionando códigos culturais marcantes na sociedade ocidental que estavam submergindo. Este foi meu primeiro movimento para liberar-me deste destino traçado tão cedo.
Hoje, no roteiro ficcional para minha ópera Liquid Voices enfoco o piano em seu próprio destino. Ele é o único sobrevivente de um naufrágio e, como uma caixa preta, é encontrado na costa de Siles [cidade do sul da Espanha] por um pescador que ouve sua história. Recebi um prêmio de residência na Fundação Bogliasco, na Itália. Lá, da janela de meu estúdio avistava o Mediterrâneo e minhas vozes líquidas começaram a emergir. Esta é a gênese da história.
E como foi a montagem?
Sinto-me gratificada de ter como intérpretes de meus personagens dois extraordinários cantores e atores — a soprano Gabriela Geluda e o tenor Luciano Botelho. É muito raro, numa ópera contemporânea, poder contar com intérpretes tão sensíveis. Gabriela Geluda trabalha comigo há 25 anos. Luciano Botelho, pela primeira vez, mas é como se ele tivesse incorporado meus anseios para o personagem. O trabalho de ambos é notável por se tratar de partes difíceis, musical e cenicamente.
Os músicos que compõem meu Ensemble Jocy de Oliveira são solistas impecáveis. E todos os demais integrantes da ficha técnica nos acompanham perfeitamente. No dia 29 de outubro, iniciaremos a filmagem de um longa-metragem da ópera, no emblemático teatro do Cassino da Urca, no Rio de Janeiro. É o primeiro passo para um elaborado filme.
Assim como outros trabalhos, este novo é multimídia. Quais possibilidades poéticas se abrem quando uma forma tão antiga como a ópera entra em contato com outras linguagens?
Em contato com outras linguagens, a forma antiga de uma ópera evidentemente tem de ser re-pensada, re-estruturada. O formato de uma ópera hoje já não pode ser o de ontem. Para mim, tudo nasce concomitantemente: música, roteiro, texto, imagem. Hoje não se concebe um libretista escrever um libretto e um compositor colocar a música. Pra quê?
O que a inspirou a resgatar o episódio do navio Struma?
O navio Struma é que se juntou à minha história. O evento ficcional da personagem Mathilda Segalescu foi situado no evento factual da Segunda Guerra Mundial. A temática de minha história é a destruição, o naufrágio, a perseguição das minorias, os refugiados de agora e de sempre. Posteriormente pesquisei onde e quando poderia situar esta história e encontrei o naufrágio do Struma, o último navio a deixar a Europa em 1941, com quase 800 passageiros, refugiados judeus com destino à Palestina.
A personagem Mathilda Segalescu é, então, uma forma retrospectiva de vocalizar a tragédia e os anseios dos refugiados de hoje?
Totalmente. Esta é realmente a temática da ópera.
Nem sempre a música de concerto aborda questões sociais. Alguns falam do meio como sendo uma “bolha”. Você concorda com quem separa música e política?
Como? Me enclausurar numa bolha? Minha obra sempre teve uma preocupação com questões políticas, como, por exemplo, questões de gênero.
Lendo a ficha técnica da ópera, salvo pela guitarra, parece haver o predomínio de instrumentos tradicionais. Por que esta opção?
A questão é tratar instrumentos tradicionais com novas técnicas estendidas, ampliá-los por meio da eletrônica. Um violoncelo não será substituído. Ele tomará uma nova dimensão.
Como tem sido o resgate de seu diálogo com Luciano Berio — em 2012, com a ópera Berio sem censura, e agora, com o DVD? Foi este um encontro decisivo na sua vida?
Sim. Foi uma relação pessoal e artística que marcou. A ópera Berio sem censura conta este recorte da vida dele e foi criada a partir do capítulo “Meu encontro com Luciano Berio”, em meu livro Diálogo com cartas. Infelizmente o editor censurou a dramatização da vida e obra dele, e tivemos que reeditar o DVD unicamente com segmentos musicais. Não podíamos deixar de fazer.
Por que?
Porque este DVD traz momentos históricos e inéditos, como a minha execução da Sequenza IV para piano, que foi escrita para mim e somente tinha sido executada por mim uma vez, na primeira audição mundial em 1966, nos Estados Unidos. Depois disto ele compôs uma segunda e uma terceira versão — esta a que hoje é editada e a única conhecida.
Outra gravação inédita é o resgate de um segmento de Apague meu spot light, drama eletrônico de minha autoria em parceria com Luciano Berio, com a interpretação do Teatro dos 7 (Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Ítalo Rossi, entre outros) e que foi dirigido por Gianni Ratto. Esta obra representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil (nos Theatros Municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro).
Em uma entrevista recente, você disse que sempre teve de lutar para produzir de forma independente suas óperas. O fato de compor uma música experimental e a questão de gênero atravessam esse problema?
A questão de gênero é sem dúvida o ponto em referência a certas profissões, como compositora num universo predominantemente masculino. Quanto à música experimental, não acredito que ainda exista. Minha música já foi ouvida e testada por anos. Logo, isto não é nenhum experimento. Mas a linguagem sem dúvida reflete os dias de hoje e muita coisa escrita hoje repete os dias do passado…
Liquid Voices — A história de Mathilda Segalescu
Hoje (20) e sábado (21) às 21h, e no domingo (22) às 18h. Ingressos: R$ 12 a R$ 40.
Sesc 24 de Maio: Rua 24 de Maio, 109 — Centro — São Paulo.
DVD Meu Encontro com Luciano Berio, de Jocy de Oliveira. Selo Sesc, R$ 30. Mais informações no site.