Uma festa para Exu

Grupo Corpo estreia “Gira”, nova coreografia com trilha do Metá Metá

Andrei Reina
Revista Bravo!
7 min readAug 4, 2017

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“Gira”, do Grupo Corpo (Foto: José Luiz Pederneiras / Divulgação)

O Grupo Corpo estreia hoje em São Paulo novo espetáculo inspirado no universo das religiões afro-brasileiras. Gira se baseia na movimentação de entidades observadas em terreiros de umbanda e de candomblé que Rodrigo Pederneiras visitou para conceber a coreografia. O espetáculo tem trilha original do Metá Metá, que propôs um trabalho dedicado a Exu.

As apresentações no Teatro Alfa nesta e na próxima semana já estão com os ingressos esgotados. Após a estreia na capital paulista, a companhia segue para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de 23 a 27 de agosto; ocupa o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, do dia 2 ao 6 de setembro; e termina a turnê em Porto Alegre, onde se apresenta no Teatro do Sesi nos dias 7 e 8 de outubro.

O programa apresentado pelo Corpo é duplo e, digamos, afro-barroco, uma vez que Gira é precedido por Bach. No espetáculo de 1996, que também tem coreografia assinada por Rodrigo Pederneiras, o corpo de baile dança contra um fundo azul e sob um conjunto de tubos suspensos na vertical, assemelhados aos de um órgão de igreja — instrumento que atravessa a trilha composta por Marco Antônio Guimarães a partir da obra de Johann Sebastian Bach.

Na gira de Exu

Com 40 anos completos em 2015, o grupo mineiro é um dos corpos estáveis brasileiros de maior reconhecimento internacional, tendo se tornado há muito referência incontornável da dança contemporânea no país. Uma das características que marca a trajetória da companhia dos irmãos Pederneiras é o uso de trilhas sonoras originalmente compostas para seus espetáculos — e que na maioria das vezes chega antes de qualquer coreografia. Assim, músicos como Milton Nascimento, Tom Zé, Caetano Veloso, José Miguel Wisnik e Arnaldo Antunes, entre outros, tiveram a liberdade de criar, em alguns casos pela primeira vez, música para corpos em movimento.

Para Gira, Paulo Pederneiras convidou os membros do trio Metá Metá — formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França — depois de assistir a um show em Belo Horizonte. Ele conta que foram os músicos que sugeriram um trabalho voltado à figura de Exu. “Eu chamei os Metá Metá pra fazer a trilha e dei total liberdade pra eles, como sempre, e eles então propuseram esse tema e a gente aceitou”, diz o diretor artístico do grupo.

“Pra gente, a associação [entre Exu e o Grupo Corpo] foi inevitável”, diz Thiago França. “Exu é o orixá mais próximo ao nosso plano, sintetiza o movimento, representa a dança”, completa o saxofonista. Juçara Marçal lembra que outras músicas da banda já remetiam à “potência de Exu”, como “Cobra Rasteira”, “Corpo Vão” e “Mano Légua”. “Como Exu é o orixá mensageiro entre o plano dos humanos e o plano das divindades, ele está associado à ideia de encontro, uma força catalisadora que não pode ser aprisionada, domada”, explica a cantora. “Isso sempre nos inspirou muito.”

“Gira”, do Grupo Corpo (Foto: José Luiz Pederneiras / Divulgação)

Ostinatos e riffs

A música composta pelo grupo para o espetáculo difere em alguns aspectos da que se ouve em seus discos, ainda que a identidade sonora do conjunto — a guitarra ruidosa de Kiko, os ataques do saxofone de Thiago e a voz inteiriça de Juçara — seja imediatamente reconhecível. As canções são mais longas e nuançadas, o que permite respiros para os dançarinos, e se valem muito da repetição — que enseja a reiteração dos gestos, quase sempre circulares.

Segundo Thiago França, a diferença de compor para a dança está em “pensar na música como fio condutor e não como protagonista. A gente pensa mais em ostinatos (repetições rítmicas) e riffs do que em melodias que se desenrolam como uma historinha”, explica. “Um ciclo que numa canção se resolve em oito compassos, para a dança precisa durar muito mais”, diz Juçara Marçal, enfatizando a necessidade de músicas mais longas. “Quando vimos o ensaio, isso fez o maior sentido”, completa.

Kiko Dinucci define uma dessas visitas à sala de ensaio como “uma experiência muito louca”. O guitarrista conta que “durante o processo de criação, tivemos que compor de outro jeito, com outra perspectiva de espaço e com mais brechas para que outros elementos entrassem, como dança, luz, cenário. Quando vimos o ensaio, vimos esses espaços serem preenchidos”.

A trilha contou ainda com as participações de Nuno Ramos, que fez a letra de “Pé”, e de Elza Soares, que canta em duas faixas — o disco A Mulher do Fim do Mundo, diga-se, estava na cabeça de Paulo Pederneiras quando da concepção do projeto. O trio lança no domingo que vem o EP 3que tem duas músicas que não entraram na versão final da trilha — em show no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Festa

Propostos tema e música, Rodrigo Pederneiras se viu diante de um problema. “Eu era um ignorante total a respeito do assunto“, confessa o coreógrafo, que nunca tinha ido a um terreiro antes do projeto. A questão passou pelos livros mas só se resolveu in loco. “Comecei a frequentar o terreiro, tanto de candomblé quanto de umbanda, buscando que tipo de movimentação cada entidade tem”, afirma o mineiro, que hoje se define como um “frequentador de terreiro de umbanda”.

Para a coreografia, Pederneiras diz que fugiu “completamente do que se chama de dança afro“, porque, segundo ele, “seria o óbvio” para um espetáculo sobre Exu e os terreiros. A solução foi buscar elementos da movimentação das entidades e misturá-los com a dança contemporânea. “Eu não quis entrar muito no lado religioso, ritualístico”, explica. Em oposição a isto, o coreógrafo define Gira como “uma peça de dança contemporânea inspirada em Exu”. Mas, como ele mesmo acrescenta, uma peça festiva. “A ideia era fazer uma festa, uma festa em homenagem a Exu. A gira é uma festa — daí o nome.”

Já a cenografia, concebida por Paulo Pederneiras, e o figurino, de Freusa Zechmeister, são mínimos. Ambos tomam da organização espacial dos terreiros elementos que são reduzidos ao essencial. Três fileiras de cadeiras são dispostas ao fundo e nas laterais do palco. Quando não estão dançando, os bailarinos — vestidos com uma saia branca, alguns pintados de vermelho no pescoço — se sentam e se cobrem com um véu preto. Sobre cada um deles há uma lâmpada.

“A lâmpada acesa está ali pra iluminar, mas também para marcar a presença de uma entidade, de um espírito”, explica Paulo Pederneiras. “E essa entidade é convidada a participar da gira, a participar dessa festa. Ela se descobre e vem participar e depois volta para a escuridão, onde coloca o véu”, continua o cenógrafo. “Isso fica como uma instalação no palco, [onde] há sempre esse jogo do claro-escuro, mostra-esconde e essa questão da necessidade que temos de nos comunicarmos com uma outra dimensão”, conclui.

O Grupo Corpo divulgou uma série de vídeos com o processo de criação de “Gira”

Mensageiro

Exu é uma das figuras mais controversas das religiões afro-brasileiras. Refratário ao maniqueísmo, ele é descrito por Pierre Verger como “o mais humano dos orixás, nem completamente mau, nem completamente bom”, uma vez que possui “múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil defini-lo de maneira coerente”. Verger assim escreve no livro Orixás:

De caráter irascível, ele gosta de suscitar dissensões e disputas, de provocar acidentes e calamidades públicas e privadas. É astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente, a tal ponto que os primeiros missionários, assustados com essas características, comparam-no ao diabo, dele fazendo o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção, ódio, em oposição à bondade, à pureza, à elevação e ao amor de Deus.

O professor da USP e sociólogo da religião Reginaldo Prandi localiza o início desse processo de demonização no século XVIII e XIX, a partir de relatos de missionários e observadores de cultura cristã que estiveram em território iorubá, na África, e “atribuíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Príapo e a do diabo dos judeus e cristãos”.

Esses viajantes ressaltavam em Exu, segundo Prandi, “aqueles aspectos que o mostravam, aos olhos ocidentais, como entidade destacadamente sexualizada e demoníaca”. Impingido com este binômio pecaminoso — “sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade” — “nunca mais Exu se livraria da imputação dessa dupla pecha, condenado a ser o orixá mais incompreendido e caluniado do panteão afro-brasileiro”, afirma o sociólogo.

Mais do que uma figura contraditória — o que dá a ele dimensão terrena e feição humana — Exu era entendido pelos antigos iorubás como um elo entre Aiê, a terra dos homens, e Orum, a morada dos orixás, como explica Prandi em um artigo:

As oferendas dos homens aos orixás devem ser transportadas até o mundo dos deuses. Exu tem este encargo, de transportador. (…) Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o trabalho de intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. Sua presença está consignada até mesmo no primeiro ato da Criação: sem Exu, nada é possível. O poder de Exu, portanto, é incomensurável.

No momento em que o Brasil e o mundo vivem um período de divisões aparentemente intransponíveis, clivado por polarizações e ameaçado pelo autoritarismo, o Grupo Corpo encontra no mensageiro Exu a força da comunicação. Entre nós e os orixás, sem dúvida. Mas, uma vez que estamos no teatro, também entre os homens. Afinal, aquele que porta e vive as contradições é também capaz de superá-las.

Grupo Corpo apresenta Bach e Gira

De 4 a 13/8. Quarta e quinta (21h), sextas (21h30), sábados (20h) e domingos (18h). Ingressos: R$ 50 a R$ 160 (esgotados).

Teatro Alfa: Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722 — Santo Amaro — São Paulo.

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