Utopia e distopia de Garoto

Documentário sobre um dos maiores violonistas brasileiros flutua entre a faísca do inovador e o suor do trabalhador

Cacá Machado
Revista Bravo!
5 min readOct 15, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

Eu tive a sorte de acompanhar o Festival Internacional do Documentário Musical In-edit Brasil 2020 nesta pandemia, o que se revelou um verdadeiro acontecimento. Recomendo a todos. A diversidade e a riqueza da produção documentária audiovisual que se concentrou nesta edição é mais uma prova de que pela música podemos ler o Brasil e o mundo: das diferentes narrativas biográficas de Mateus Aleluia, Arto Lindsay, Dom Salvador, Dorival Caymmi, Elton Medeiros, Pitty, às leituras temáticas das Memórias Afro-Atlânticas, do Sambalanço — a bossa que dança, do projeto sociomusical Neojibá — Música que transforma, ou do Tempo Zawose, sobre ancestralidade e musicalidade do povo Wagogo da Tanzânia, os fazeres musicais destas experiências anunciam ao mesmo tempo sociabilidades utópicas e distópicas: alternativas para futuros possíveis em simultaneidade com a redundância de um presente reificado atrelado ao modo de produção capitalista.

Esta ambivalência entre o manter-se como forma de mercadoria redundante e forma livre com vocação anunciadora é uma característica constitutiva da própria música. A sua “imaterialidade” polissêmica propicia isso. Mais do que qualquer outra arte, a música convive na modernidade ao mesmo tempo como mercadoria e artesanato, como um produto vendido sob a forma de partituras, fonogramas (e mais recentemente de acesso a nuvens de dados — streaming) e como um território que propicia conexão com experiências ancestrais pré-modernas. Este argumento já foi desenvolvido em diferente contexto pelo economista francês Jacques Attali em seu livro Bruit: essai sur l’économie politique de la musique, de 1977, infelizmente não traduzido para o português apesar da sua grande circulação internacional nas traduções em inglês (Noise: a political economy of music, 1984) e espanhol (Ruidos. ensaio sobre la economía política de la música, 1995).

Trailer do documentário Garoto — vivo sonhando

Mas de toda a programação do in-edit Brasil 2020, para mim o filme Garoto — vivo sonhando, dirigido por Rafael Veríssimo e idealizado por Lucas Nobile, Henrique Gomide e o próprio Rafael, é o melhor exemplo das contradições utópicas e distópicas que a música carrega consigo visto sob uma perspectiva da micro-história, isto é, da trajetória de um personagem.

O paulista Garoto se criou no ambiente de invenção da indústria do disco e do rádio, em meados do século XX. Colaborou, junto com outros músicos, para a concepção da linguagem dos “regionais” que acompanhavam os cantores do rádio no Rio de Janeiro (acompanhou Carmen Miranda com o Bando da Lua na América do Norte e não ficou por lá fazendo carreira internacional como Laurindo de Almeida, voltou para o Brasil talvez por conflitos com seus colegas). Era um profissional da performance: tocava de manhã no rádio, a tarde nas gravações de discos e de noite nos cassinos, todos os dias. Inventou o violão tenor, além de dominar todos os instrumentos de corda. Interpretou como solista peças do repertório da música de concerto de Radamés Gnattali, além de Chopin e outros. Compôs pelo menos um clássico da música popular brasileira, “Gente humilde”, sem falar numa obra, relativamente pequena, mas que influenciou definitivamente a literatura do violão no Brasil. Sua abordagem harmônica e singularidade de escrita abriram caminhos para João Gilberto, Baden Powell e Raphael Rabello. Morreu de infarto fulminante com 39 anos num momento em que registrava em seus diários a angústia entre o desejo de ter tempo para compor e a necessidade de gerenciar a demanda da vida de instrumentista ultra requisitado. Sua imagem sempre conviveu com certa sombra e restrita à tribo dos violonistas — Aloysio de Oliveira, por exemplo, seu companheiro de Bando da Lua, que se tornou importante produtor musical da Bossa Nova, nunca fez referências a Garoto, como nota Paulo Bellinati no filme.

Tudo isso está na cinebiografia apresentada pelo documentário. Os realizadores poderiam apresentar uma narrativa tradicional, em torno da gestação do “mito”. Criada no ambiente da musicologia europeia do século XIX, a biografia musical, enquanto gênero literário, contribuiu para a construção do mito do gênio que consagrou a “linha evolutiva” da música ocidental baseada na “evolução” da linguagem do tonalismo — Bach (polifonia barroca), Mozart e Beethoven (tonalismo clássico), Chopin e Wagner (tonalismo cromático romântico), Schoenberg (atonalismo moderno), etc. No Brasil, as biografias da música popular também sofreram essa influência, mas, como não poderia deixar de ser, com singularidades. O compositor e radialista Almirante, autor da biografia No tempo de Noel Rosa (1963) foi, por exemplo, um grande articulador de narrativas históricas: seu interesse em estabelecer certa cronologia da música popular brasileira se concretizou em seus programas na Rádio Nacional que, posteriormente, ganhou reconhecimento institucional quando seu acervo de registros fonográficos serviu de base para a formação do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1965. Mas foi com o prêmio “Lúcio Rangel de monografias”, lançado pela Funarte na década de 1970, que as biografias tradicionais da música brasileira ganharam volume com livros sobre Pixinguinha, Assis Valente, Ismael Silva, Cartola, Garoto, Patápio Silva, João Pernambuco, entre outros.

Contudo, a trama narrativa construída no documentário Garoto — vivo sonhando vai no sentido oposto desta tradição. Garoto não é visto como um antecessor da Bossa Nova por conta da “modernidade” harmônica de seus temas e de sua “genialidade”, certas ideias que circulavam de maneira rasa por aí. Ele está além e aquém de gêneros e estilos. A dimensão humana de sua trajetória, como a de qualquer um, mesmo a dos gênios, é o xis do problema. E aí está a escolha acertada do filme em construir uma cinebiografia em torno da personagem em suas dimensões utópicas e distópicas. Embora todos estejam lá falando sobre Garoto, o pessoal da bossa nova (Roberto Menescal, João Donato, João Gilberto, Carlinhos Lira), do samba (Paulinho da viola), do choro (Henrique Cazes, Jacob do Bandolim), seus afetos ou contemporâneos (Radamés Gnatalli, Zé Menezes, Cecy, Aymoré, Fafá Lemos, Chiquinho do Acordeon), a voz condutora é sempre a do próprio Garoto que, aliás, não nunca fala, a não ser pelo seus diários (narrados em off pelo ator Antonio Miano) e pelo som de seus violões, gravados e guardados pelo colecionador Ronoel Simões.

Por fim, Garoto, como tantos outros, viveu a música simultaneamente em suas dimensões do artesanato e da mercadoria. Em sua humanidade utópica e distópica. E só sob esta perspectiva é possível entender quando João Gilberto diz: “Garoto é extraordinário e seu violão é o coração do Brasil”.

Garoto com Camem Miranda e o Bando da Lua

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