Vambora Roque véio

Oito anos depois de sua morte, o cantor pernambucano Biu Roque tem seu primeiro álbum solo lançado

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
15 min readApr 27, 2018

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Integrante de grupos de maracatu de baque solto e cavalo marinho, membro da Fuloresta e dono de uma voz única, Biu Roque morreu em 2010 sem ter um disco solo lançado. Produzido por Alessandra Leão, Caçapa e Missionário José, A Noite Hoje É a Maior, primeiro e único álbum solo do pernambucano, sai agora de forma independente, nove anos depois de gravado.

Para conversar sobre esse processo que vai do encantamento de uma geração com o som tradicional de Pernambuco, passa pelo cuidado de produzir um disco que vá além do registro etnográfico e, no final, fala das próprias dificuldades de se fazer projetos como esse em um Brasil que tende a não valorizar sua cultura popular, a Bravo! encontrou dois dos produtores do disco, o casal Alessandra Leão e Rodrigo Caçapa.

Toda essa epopeia foi narrada em detalhes durante uma conversa de quase duas horas no bar Lira, em São Paulo, entre alguns copos de cerveja e de suco verde. O melhor da conversa está condensada nesta entrevista.

Como vocês conheceram o Biu Roque?

Alessandra Leão: Cada um conheceu Biu Roque em um tempo. Para mim foi com 16, 17 anos, quando conheci o pessoal do Mestre Ambrósio e a música da mata norte. Lembro muito da primeira vez em que ouvi a voz dele. Primeiro ouvi uma gravação, depois lembro da primeira vez que vi o banco [formação instrumental] do Cavalo Marinho. Era o mais esplendoroso: Luz Paixão, na rabeca, Mané Deodato no pandeiro — não tem ninguém que toque como ele tocava — , Biu Roque, Mané Roque, filho dele, Sidrak. O Cavalo Marinho de Mestre Batista, que foi um muito importante na mata norte. Logo depois comecei a tocar. E tinha isso de mulher não poder tocar. Nos grupos dele isso não acontecia.

Caçapa: As filhas dele tocavam.

Alessandra: Com ele era sempre esse lugar de falar: “Deixe a menina tocar…”

Caçapa: Conheci primeiro com o maracatu. Na metade dos anos 90 começou a aparecer Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre e logo depois o Mestre Ambrósio. Eu tinha acabado de entrar na faculdade e comecei a ir para a rua, ir para a periferia de Olinda, para a casa de Mestre Salustiano, do maracatu dele. Um lugar para onde vinha muita gente do interior se apresentar e de onde saía muita gente para o interior. Numa dessas viagens para o interior com meus amigos eu vi o Biu Roque tocando. Em 1998, estava indo com os amigos ao ensaio na sede do maracatu Estrela de Ouro, e vimos uma pessoa morta na beira da estrada.

Alessandra: No canavial.

Caçapa: Quando a gente chegou já estava rolando a festa, e junto chegou a notícia de que o caboclo morto estava indo para o maracatu também. Pensei que a festa ia acabar naquele momento. Mas aí o Zé Duda, o mestre de maracatu do Estrela de Ouro, não lembro se ele falou ou cantou, ou se foram as duas coisas, mas ele disse que a festa ia ficar a noite toda para o morto. Essa história de cantar para ele foi inesquecível. Foi também a primeira vez que vi Biu Roque tocando maracatu, com o filho dele, que tocava no terno. E aí até teve uma música que eu regravei com o filho de mestre Salustiano, lançada em 1999, que chama Chã de Camará, que é o lugar onde tinha a sede do maracatu, e o refrão fala: “O Zé Duda, estrela de ouro, o Biu Roque, estrela de ouro, Mané Roque, estrela de ouro, Batuté chama os caboclos”. Eles ouviram quando foi lançado, e a gente começou a tocar juntos.

Alessandra: E desde aquela época a gente dorme lá quando vai pro interior.

Caçapa: Cheguei a trabalhar vários anos fazendo arranjos de sopro para a Fuloresta, de Siba. Todo mundo ensaiava as partes de sopro no nosso apartamento.

Alessandra: Os vizinhos adoravam.

Caçapa: Era no segundo andar, tinha um pé direito alto.

Alessandra: Lembro de estar chegando, e da esquina já ouvir. Eita, tá alto.[risos]

Caçapa: O primeiro show da Fuloresta foi no casamento do irmão de Siba, estava Mané, Siba e Biu Roque. O cara do bombo faltou e eu toquei com eles. Então a gente ficou muito próximo.

Alessandra: Quando ia a Recife gravar o disco, dormia na nossa casa.

Caçapa: Tem a ver com a relação que a gente tem com mestre.

Que são mestres mesmo.

Alessandra: Tem uma distância e um deslumbramento quando você chega perto do mestre, mas não é essa a relação que a gente tem com a galera. É uma relação que passa mesmo pelo afeto.

E como foi organizar ao som do Biu Roque, dar um contorno para uma vida inteira de música?

Alessandra: A gente fez umas sessões de três dias em 2008 e, a gente já falava da nossa vontade de produzir discos que não fossem os nossos, mas de produzir esse tipo de música que é de onde a gente vem e que faz a gente ser o que é.

Caçapa: Em 2006, no primeiro disco de Alê, Biu Roque já participava.

Alessandra: A gente queria fazer o disco de fulano, de sicrano, mas já tinha Biu Roque sempre como o primeiro da fila, porque ele era incrível mesmo.

O que para vocês tinha de tão incrível, além dessa voz de arrepiar?

Alessandra: Além da voz, além de ele ser um percussionista fabuloso, muito virtuoso, mas sem esse lugar da virtuose que a gente está acostumado, era o domínio pleno do que estava fazendo. Como uma amiga diz: ele tinha uma graxa na mão e uma leveza para tocar não sei quantas mil horas. Mas além disso tudo, tinha algo dele, que é para além do que posso explicar de técnica, de questão musical. É um coisa da presença dele no mundo. Tinha um impulso de vida ao estar com ele. Lembro que, quando ele morreu, a gente tinha muito medo de esse ser um disco póstumo. E para a gente não foi, porque ele viu o disco pronto. O disco está como ele aprovou, como ele quis fazer. Ele foi em quase todas as sessões. Mas indo para o velório, indo para o enterro, a sensação era de “que bom que eu te conheci”, muito mais do que de “que merda que você se foi”.

Caçapa: E não era um cara super extrovertido, que se mexia, que falava demais. Ele estava na dele tocando. Mas a musicalidade dele era tão bonita, sem excesso, mas exuberante, que chamava a atenção. E ele era amigo de todo mundo. Não conheço ninguém que não gostasse dele. O jeito de ele fazer música era muito natural. Todas as vezes que toquei com ele, e já era um senhor de idade, ou que eu o vi tocando em carnaval ou festa na rua, ele era o último a parar. Na Quarta-feira de Cinzas tinha um boi de carnaval. Siba trazia o pessoal do interior. Os meninos de 25 anos estavam todos mortos e ele era o último a parar.

Sabe como foi a formação dele?

Caçapa: Ele tinha uma musicalidade que não pode desenvolver formalmente. Ele começou a cantar com oito anos de idade. Morava no engenho, e a mãe dele trabalhava para a dona do engenho, como cozinheira, caseira. E ele tinha uma voz muito aguda que encantava as pessoas.

Alessandra: A mãe dele cantava coco.

Caçapa: Coco de palma, não tinha nem instrumento. Coco no nordeste é música popular, quase um funk. Há cem anos era um funk, proibido, perseguido, era caso de polícia. E não precisava de nada, só bater palma e cantar. No máximo entrava uma percussão simples. Ele foi criado no meio disso e era um sucesso no lugar, porque tinha uma voz muito agudinha, muito afinada, muito musical. Ele contou para a gente de um cara que tocava sax, não lembro bem o instrumento...

Alessandra: Acho que era trumpete.

Caçapa: Na Zona da Mata tem muita banda de sopro, banda militar. O cara viu ele cantando quando era criança, e quis dar aula para ele. A dona do engenho descobriu e não deixou.

Alessandra: Ela era a madrinha, e tinha essa relação de propriedade.

Caçapa: Mesmo com ela proibindo, ele foi ter aula. Ela soube e disse que menino dela não era para aprender música não, era para colher fruto.

Alessandra: Só que não era aprender música só, ele ia estudar, ser alfabetizado e aprender a ler música. Porque essas bandas até hoje têm um papel importantíssimo na formação de instrumentistas.

Isso no Nordeste inteiro. Leitieres Leite me disse que boa parte de quem vai para Rumpilezz começa nessas bandas.

Caçapa: Claro que ele não é um músico menor porque não teve isso. Mas, pense: uma cara como Moacir Santos, que era do sertão, é um parelelo. Um cara negro, pobre, que aprendeu a estudar música, foi para Recife, depois para o Rio de Janeiro e aí para o mundo. O Biu Roque talvez tivesse trilhado um caminho parecido, porque ele era muito musical. Tinha um ouvido absoluto. Muita consciência do que estava fazendo. No disco eu não o vi desafinar.

Alessandra: Uma coisa que ele fazia quando foi gravar no meu primeiro disco, e mesmo quando ele foi fazer a pré, quando ficamos muito tempo no estúdio puxando músicas, ele achava os tons para cantar. Tem uma coisa para mim, que canto muito sem harmonia, que é a memória do tom.

Um encontro natural da tonalidade?

Alessandra: Pega uma música que você canta muito e você já vai no tom certo, pode ter uma variação, mas é muito pequenina. Ele várias vezes entrava assim ou, ao mudar de música, ele começava a assoviar até achar o tom para entrar.

Agora quando tem harmonia muda tudo. Como vocês fizeram? Começaram a arranjar a partir da voz ou ele colocava a voz e vocês criavam a harmonia?

Caçapa: Fizemos a pré em 2008 e a partir dela selecionamos as músicas, cantando e conversando muito. No ano seguinte começamos a gravar com ele, o filho, Mané Roque, Cosmo Antônio, que toca na Fuloresta até hoje e faz a base de percussão, tarol, bombo e ganzá. E ele cantava uma base, quem cantava era filha ou a Alessandra fazia uma guia de voz. Isso para a gente ter um andamento, um formato. Eu levava isso para casa e imaginava um arranjo de viola, de guitarra ou de sopro da Fuloresta. Levava de volta para o estúdio, trazia músicos ou eu mesmo gravava alguma coisa, depois ele ia botar a voz definitiva e os coros. Mas o tom era aquele mesmo que ele tinha definido. Tentava não interferir na estrutura que era normal para ele, no canto e resposta, numa ciranda. Eu tentava entrar naquilo. Esse é um processo interessante. Ele tinha 50 anos de música, mas esse disco como ele é talvez não pudesse ter sido feito antes, porque nasceu da união dessas pessoas. Chegar nesse formato de arranjo, com ele tocando à vontade, parece uma besteira, mas na configuração do mercado musical do nordeste do Brasil não é um negócio tão simples.

Por que não é tão simples?

Caçapa: Porque não é um registro do que ele fazia no terreiro, é uma celebração da música dele, com a família, com os amigos, com músicos jovens que eram fãs dele, e ao mesmo tempo com cada um trazendo a sua contribuição. Daí sai um som que conversa tanto com os músicos como nós quanto com a tradição.

Alessandra: E não tem essa questão de ter de modernizar o som. É uma questão de juntar forças no processo de criação. Como o conhecimento de cada um se soma. Desde o início a gente tinha claro que não queria fazer um registro etnográfico. Não é “senta e toca”. Mas mesmo com essa união de saberes, a gente sempre teve muito claro que o disco é dele. A gente só viabiliza a produção. O tempo todo a gente perguntava o que ele estava achando, se tal música ia ou não para o disco.

Caçapa: Tem uma melodia muito antiga, que acho que Biu canta desde criança, que a gente gravou como coco e chamou o Juliano Holanda, músico lá do Recife, para fazer umas camadas de guitarra. O Juliano foi gravar e eu nem sabia o que ele tinha pensado. Ele fez uma camada, fez outra. Biu lá calado e eu prestando atenção para ver qual era a reação dele. Afinal, estava colocando uma guitarra. Não é nada demais, mas é alienígena para aquela tradição. Quando o Juliano estava tocando o improviso, ele falou para mim: “Quem quiser botar falta que bote, mas tá bom demais”. [risos]. Quando Juliano parou de improvisar eu disse a Juliano: “Pare que Biu gostou, não enfeita mais não”.

Ele era aberto?

Caçapa: Muito. Às vezes a gente jovem ficava cheio de dedos de não atropelar ou fazer uma besteira com uma coisa tão importante. E ele não tinha isso. Mas não é que tudo valia. Ele tocava tarol muito bem. Foi gravar um coco com um amigo nosso de Olinda e lá eles tocam com um rufo. No meio da gravação ele pediu para parar porque, na tradição dele, coco não tem rufo. E ele fez mais retinho. Ou seja, ele sabia também onde não pode mexer que desaba a casa.

Alessandra: O próprio trabalho dele com a Fuloresta e com Mestre Ambrósio o colocou com outras pessoas e o abriu para outros processos.

Nos dois casos é a classe média chegando na tradição, vinda da universidade, com uma outra leitura do mundo, né?

Caçapa: Só essa frase já é matéria para uma revista inteira [risos]. Esse é um dos nós do Brasil. Para mim, Manguebit era um negócio fortíssimo, mas quando comecei a ir para o interior e tocar, esse som me pegou mais até do que Nação Zumbi. Muita gente torcia o nariz dizendo que por a gente ser de classe média não podia juntar. O que, na verdade, é um discurso conservador.

Exatamente, é uma coisa que, no samba, já está superada no anos 60. Pensa em quando o Marcus Pereira grava o Cartola, por exemplo. Mas também preservando a tradição, com cuidado. Essa é a graça do disco, justamente por que não está fazendo como Alan Lomax, indo para a África e simplesmente registrando in loco.

Alessandra: Essa era a nossa ideia para o disco de Biu.

Caçapa: A coisa desse encontro não foi simples. Por isso demorou 15 anos.

E como foi esse outro processo, o do lançamento. Vocês tinham o disco pronto em 2009, Biu Roque morre em 2010 e a gente está em 2018. O que aconteceu para demorar tanto?

Alessandra: É o tempo. Só posso responder assim.

Caçapa: A gente só conseguiu gravar porque ganhamos um projeto bem pequenininho no Banco do Nordeste, em 2007, 2008. Na mesma época, Alê aprovou o projeto para gravar o disco dela pela Petrobras e eu ganhei uma bolsa da Funarte. Biu Roque acabou sendo a primeira coisa que a gente fez. Mas era muito pouco dinheiro. A gente sentou para gravar, conseguia trazer o pessoal do interior, pagava um pouquinho para eles. A gente não ganhou nada. Nem a gente nem o Missionário José, que mixou o disco. E começou a faltar dinheiro. Daí a gente foi juntando dinheiro para ele estar masterizado até 2010. Como a gente queria que o disco fosse da família dele, tinha de ter um contrato, uma assessoria jurídica e a gente não tinha dinheiro nem para isso nem para lançar.

Alessandra: Porque quando ele morre a relação muda. Em vez de ter a interlocução com ele, agora a gente tem de falar com seis filhos, genros, noras, netos e bisnetos. Tem de parar para entender que relação é essa. Mas, enfim, tem muita água que passou debaixo da ponte.

Caçapa: Muita tentativa de conseguir recurso com o governo para aprovar, que nunca dava certo…

Alessandra: Projeto que se aprova num governo e demora dois anos de briga para tentar receber esse dinheiro em outro governo, e não recebe. O governo do Estado chegou me dizer que se o disco não existe fisicamente, não existe dívida. [risos] Existe uma dívida moral. Aí eu levantei e fui embora. Vou atrás da moral de quem? Depois de dois anos, tratando a memória dele dessa forma…

Caçapa: A impressão que tenho é de que as pessoas não tinham noção da importância dele e de que um disco desse tinha de estar no mundo. Talvez hoje tenham.

E o que mudou para o disco sair?

Alessandra e Caçapa em uníssono: A gente conseguiu bancar.

Alessandra: Nesse percurso tem esse tempo de cobrança, daí um tempo sem grana nenhuma em Recife, e aí tem a ver com a nossa mudança para São Paulo. Tem uma hora que depois de bater tanta cabeça você para um pouco e deixa o tempo trabalhar.

Caçapa: Aqui a gente conseguiu trabalhar mais e juntar uma grana para fazer. Em Recife estava impossível.

Agora com o disco sendo dele, para vocês não tem retorno nenhum além de ter feito o disco?

Alessandra: Agora a dívida moral era nossa. [risos] Isso tava ficando muito quente na mão da gente já. A gente sempre teve o compromisso de lançar. E resolve voltar a mexer.

E vocês remixaram?

Alessandra: Não, nós só remasterizamos. Agora ele não vai para as plataformas como Spotify ainda. Vai para o YouTube, aberto.

Por que não lançar nas plataformas?

Alessandra: Porque exige outra negociação com a família e é outro acordo. O disco físico tem uma praticidade. Tem uma cota que ficou com a família lá no interior e a gente tem outra para trabalhar aqui. E o disco está disponível para baixar no meu site e no de Caçapa.

Caçapa: E tinha uma coisa que a gente tinha pensado antes de o disco sair. Eu vejo que está num momento que este tipo de música tem um reconhecimento parecido com o que teve nos anos 1990. Depois parece que foi uma moda que passou e agora está voltando, mas menos como moda. Na época do manguebit tinha um interesse da geração da gente, e de um pessoal um pouco mais velho, por essa música de tradição oral, que já tinha sido valorizada nos anos 1970 e antes nos anos 1920, 1930, com as viagens do Mário de Andrade.

Mas no manguebit tinha uma chave da mistura, de trazer rock, até afrobeat para a mistura. A Fuloresta é que é um passo de voltar mais para a tradição, não?

Caçapa: Sim, um pouco depois e não teve o mesmo impacto. A gente viu o começo do manguebit, viu esse impacto lá e viu o momento em que isso virou uma música careta. Acho que hoje, por conta do força do movimento negro, da polarização política, isso se fortalece. Por que vem a pergunta: “Você está de que lado”? Das pessoas pobres ou da elite. E isso impacta na apreciação desse tipo de música.

Uma coisa que mudou também é que a gente vive numa espécie de restaurante por quilo quando pensa na distribuição de música, isso faz com que haja mais espaço para esse tipo de coisa. A música deixa de ser tão ditada pelo mercado e passa a ser mais regida pela vontade individual.

Alessandra: Acho que agora as pessoas que vão nesse quilo, que não é para todos, começam a olhar com um pouco menos de hierarquia, para a qualidade da música. E entende que essa música não serve só como registro etnográfico ou como referência, como algo que precisa ser modernizado. Por que ela também tem uma liberdade. É um pouco o que tem na geração do Mário de Andrade com a briga dos folcloristas para dizer quem achou aquela melodia. Não de se apropriar dela de maneira autoral, mas simplesmente de dizer “eu que achei”.

Caçapa: Interessante essa questão de quem colheu. Colheu já é um termo estranho. Parece que a música é uma fruta… Mas é curioso pensar que essa música serve para criar uma nova música brasileira.

E como vocês lidam com a questão da autoria com esse material? São músicas que têm uma ancestralidade?

Alessandra: A gente nunca teve a ilusão ou a pretensão de que os artistas ligados ao universo da música tradicional não são criadores, não são compositores.

Caçapa: É sempre a comunidade, né?

Alessandra: Mas a criação acontece o tempo inteiro. O mestre de maracatu está cantando, ele está criando na sua cara.

Caçapa: E todo ano no carnaval ele tem de vir com uma melodia nova.

Alessandra: E tem a poesia de quem improvisa a noite inteira. Nunca passou pela nossa cabeça que não tenha criação, que não tenha autoria. E a questão sempre foi o tratamento que eu gosto de receber: se você diz que é sua, é sua. Mas claro que também tem de entender que a noção de autoria é diferente da da classe média.

Do Ecad.

Alessandra: Exato. Claro, quando chega um mestre com uma melodia nova, a gente fica aperreando: “Ah, essa marcha aí é de fulano”. [risos] Porque sabe de quem é. Porque desde que existe possibilidade de gravar, a galera do interior grava. Faz vinte e tantos anos que vou pro interior e vejo a galera ouvir fita cassete. Levar os gravadores grandões para registar as festas. E depois ficava escutando. Se um mestre canta um verso que já existe a galera vai em cima. Mas a criação se dá o tempo todo.

Caçapa: E não é mais oral, tem outros suportes. E hoje em dia isso cresce com vídeo, com celular.

Alessandra: E eles estão se ouvindo e se reinventando. E o que a gente fez com o disco de Biu Roque? Quando a gente começou a fazer a pré-produção ele foi lembrando das músicas, dos cocos que a mãe cantava. Mas tem a transformação, ele coloca a melodia naquela letra. Então a saída jurídica foi colocar tradicional com autoria de fulano.

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