Imagem: flickr de Carlos Ramalhete

15 de outubro além de flores e frases feitas

Seria o professor o profissional responsável pelo fracasso da relação escolar? Ouso responder que não

Letícia de Freitas
Published in
3 min readNov 2, 2014

--

Sou professora das redes públicas do município de São Paulo, há cinco anos, e do estado de São Paulo, há cerca de um ano. No último 15 de outubro, dia dos professores, fiquei a pensar sobre as homenagens feitas nas redes sociais a este “estimado e importante profissional” que é o professor, sobre como somos capazes de mudar vidas e semear mudanças. Tudo isso é verdade, mas estou inclinada a fugir do lugar-comum, dos clichês tão usados para se referir à nossa profissão. Ao refletirmos sobre a escola pública hoje, vemos que algo não vai bem. Há várias questões a se pensar sobre, mas vou me focar na qualidade da relação entre professores e alunos durante o momento — que deveria ser de troca e aprendizagem — e é por vezes tenso, problemático, agressivo, marcado pela incomunicabilidade, extrapolando limites em ambos os lados, justamente o contrário do que se deseja. Professores sentem na pele o peso do problema: doenças físicas e psicológicas, licenças médicas, afastamento permanente.

Sete horas da manhã: o expediente começa em grande parte das escolas do país. Alunos e professores entram em sala para mais um dia de troca e construção de conhecimentos, o que não é, de qualquer maneira, algo fácil e tranquilo. Pensar e construir conceitos não é simples. Ao contrário, exige dedicação e esforço. No contexto da sala de aula da escola pública, com quarenta alunos em média no estado de São Paulo, a tarefa se torna mais árdua: são muitos os interesses, muitos os protagonistas envolvidos. A tensão se coloca naturalmente: refém do modelo tradicionalista, esgotado mas largamente em vigor, que não serve a nenhum dos lados, a sala se mantém na corda bamba. Em diferentes relatos, meus colegas professores narram ser ignorados ao entrar em sala, como se ninguém estivesse ali. Tudo se torna mais importante ao aluno do que a proposta trazida pelo docente, a aula não é nunca atrativa ao aluno. Em meio à apatia e à falta de reconhecimento, a imposição pela força e pelo medo se coloca como prática cotidiana: gritos, advertências e brigas são repertório comum do dia a dia escolar. Uma fala corrente entre os professores é a de que se gasta mais tempo “controlando turmas” do que “tendo aula” — o “controlar” é verbo em voga. “O bom professor é aquele que controla seus alunos”. Cada cinquenta minutos é uma luta, como dizem alguns colegas. Só que esta luta tem um preço – e é caro.

Esse preço chega até mesmo à agressão física e psicológica. Será que eu deveria comemorar por (ainda) não ter passado por essa situação? Xingamentos, portadas na cara, chutes, socos e pontapés de alunos foram só alguns dos casos que me foram relatados por colegas de trabalho durante suas aulas. Uma crítica superficial diria que esses docentes deveriam mudar suas práticas, mas será essa a única resposta? Seria o professor o profissional responsável pelo próprio fracasso na relação escolar?

Ouso responder que não. O professor, em meio às adversidades – da falta de materiais pedagógicos, jornada dobrada, salário defasado, salas lotadas, problemas sociais da comunidade que reverberam em sala – trabalha com os meios que tem, e isso sistematicamente leva-o à estafa física e mental, prejudicando também por sua vez os alunos. Uma bola de neve, um ciclo sem fim de problemas.

Tendo apresentado um pouco do dia a dia do professor e dos problemas que enfrentamos sistematicamente, volto a perguntar: feliz dia dos professores? Talvez, se a sociedade de fato conhecesse a rotina de trabalho docente, o conteúdo dos textos e homenagens no 15 de outubro seria um pouco diferente: mais humanizado e crítico, político, para além de flores e frases feitas. A profissão docente ainda é, e pode ser mais, bonita, e isso se efetivará com o cuidado e cobrança de todos com a educação.

Letícia de Freitas é licenciada em letras e licencianda em pedagogia pela USP e pós-graduada em literatura pela PUC-SP. É professora efetiva de português da Prefeitura Municipal e do Estado de São Paulo, onde leciona em turmas de Ensino Fundamental e no Ensino Médio regular para adolescentes surdos e ouvintes.

--

--