A Narrativa dos Games — parte 1

Uma história de como uma nova mídia começou a construir histórias e possibilitou um novo meio de contá-las

Jonathan Biz Medina
revista Capitu
9 min readFeb 25, 2016

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Introdução

Desde os primórdios da humanidade temos a necessidade de nos expressar, de criar narrativas, o que levou ao surgimento das primeiras mídias: a fogueira e as pinturas nas cavernas. Ao longo de nossa história, esses recursos foram evoluindo conosco: hieróglifos, escrituras, livros, jornais, pinturas, rádio, fotografia, cinema e, mais recentemente, os videogames.

Pela primeira vez, temos uma mídia que nos permite moldar, pelas nossas escolhas, o desenvolvimento da enredo; que nos faz imergir em outro universo de uma forma inédita; que possibilita que a história a ser contada seja um reflexo direto da nossa personalidade. Muito além de uma simples atividade lúdica, os videogames possuem uma linguagem única, capaz de nos dar o controle da narrativa, de nos entreter e de nos emocionar.

Exploraremos aqui os principais pontos da evolução da narrativa dos games, assim como as principais características que os tornam tão peculiares em comparação a qualquer outra mídia. Prepare sua poltrona favorita, assopre bem o seu cartucho e vamos começar!

O Nascimento dos Videogames e o Surgimento da Narrativa

Fotografia de Tennis for Two | imagem: Wikipedia

Os primeiro jogos de videogame nasceram na década de 1950, após o final da 2ª Guerra Mundial, um período de forte evolução na computação. Muitos desses jogos tinham o objetivo de demonstrar as capacidades operacionais dos computadores da época. Tratavam-se de inteligências artificiais para coisas como xadrez, treinamentos, simulações de guerra e pesquisas científicas. OXO, de 1952 (jogue uma versão atual), foi uma dessas primeiras produções, e consistia em partidas de jogo da velha entre humano e máquina.

Mas o primeiro jogo criado exclusivamente com o intuito de entretenimento foi Tennis for Two (jogue uma versão atual), desenvolvido no Laboratório Nacional de Brookhaven, nos Estados Unidos, em 1958. Usando um osciloscópio, William Higinbotham, físico experiente que trabalhou no desenvolvimento eletrônico do Projeto Manhattan, e o técnico Robert Dvorak criaram um sistema que simulava uma partida de tênis.

Fotografia de um fliperama de Pong | Imagem: This Day in History

Na década de 1960, os videogames seguiam ainda com passos de formiga, principalmente pelas limitações técnicas para o desenvolvimento de um jogo, afinal, os computadores da época ocupavam salas inteiras e só se podia desenvolver algo com um especialista em computação.

Foi na década de 1970 que ocorreu a grande transformação. Com a invenção do microchip tornou-se muito mais fácil e barato desenvolver um computador, o que possibilitou a criação de fliperamas e consoles domésticos, como o Magnavox e, posteriormente, o Atari. Devido às capacidades de hardware da época, o gráfico dos jogos não iam muito além de grandes pixels, dificultando a representação de cenários ou personagens. Mas isso não impediu os produtos da época de fazerem sucesso: jogos como o Pong (1972; conheça um site dedicado ao jogo, com a versão tradicional e outras) foram os grandes responsáveis pela popularização dos games.

Cena de Gun Fight | imagem: Tom Sound Blog

A chegada do Atari, o console caseiro mais popular na época, levou os games a novos patamares gráficos. Em 1975, com o lançamento de Gun Fight, shooter de Velho Oeste produzido pelo japonês Tomohiro Nishikado, os videogames tiveram sua primeira experiência cênica — além da mecânica, das suas regras internas, se criou para o jogo uma narrativa. Até então, as únicas histórias dos jogos vinham escritas nos seus manuais.

Cena de um MUD | Imagem: Wikipedia

Nesse mesmo período foram lançados os primeiros computadores domésticos. Não demorou muito para surgirem os primeiros jogos de role playing game (RPG) baseados em texto, os Multi-User Dungeon (MUD). Originalmente, o RPG é um jogo de mesa em que os participantes interpretam personagens e avançam na história narrada por um “mestre”. Os MUD trouxeram para o mundo digital essa lógica, apresentando ao jogador problemáticas com resultados diferentes, de acordo com a sua escolha. Este foi o nascimento de um gênero que mais tarde se tornou a base para os jogos multiplayer online (MMO, na sigla em inglês) e role plays eletrônicos mais elaborados, como os que compõem as séries The Elder Scrolls e The Witcher.

Cena de Donkey Kong | Imagem: 8-Bit Central

Após o Gun Fight, diversos jogos começaram a explorar o desenvolvimento de enredos, construindo caminho para um jovem desenvolvedor chamado Shigeru Miyamoto criar Donkey Kong em 1981, trazendo pela primeira vez um personagem carismático aos games (jogue). Esse personagem viria a se tornar o maior ícone dos games de todos os tempos, o JumpMan, atualmente conhecido como Mario. O jogo também foi o primeiro a ter toda a narrativa explicitada em si próprio: nos apresenta os personagens, os motivos da trama, quem é o protagonista. Outros jogos do período possuíam alguns desses elementos, mas não combinavam todos juntos.

Em 1986, Myiamoto criou The Legend of Zelda para o NES (chamado por aqui de Nintendinho), outro jogo que seria um importante marco para o storytelling dos videogames (jogue). Aqui o jogador tem a oportunidade de explorar todo um mundo e ser protagonista de uma história de aventura com elementos básicos de RPG. A franquia Zelda se mantém até hoje, com produções para várias plataformas.

Tela de abertura de Zelda
Cena de Final Fantasy | imagem: Contém Games

No ano seguinte é lançado o Final Fantasy, uma aventura de RPG muito mais complexa, que permitia ao jogador montar e evoluir seu personagem, também sendo livre explorar um mundo (jogue). Este era o início de uma nova era para os jogos de RPG digitais. A série se consolidou e está para receber um novo jogo em 2016, o Final Fantasy 15, para a nova geração de consoles.

Na década de 1990, um novo gênero tomava forma: os adventure games, também conhecidos como point-and-click. Esses jogos foram os primeiros a terem a mecânica pensada a partir da história e não o contrário. Como disse John Carmack, co-fundador da id Software, no livro Masters of Doom: “História em um jogo é como uma história em um filme pornô. É esperado que ela esteja lá, mas não é tão importante”. Essa frase ilustra bem as primeiras décadas dos videogames, quando, por limitações técnicas, as narrativas eram deixadas de fora e a mecânica dos jogos era prioritária.

The Secret of Monkey Island (1990), point-and-click desenvolvido pela Lucasfilm Games

Mas isso veio a mudar com os adventure games. Neles, o jogador interage com elementos que tecem a narrativa, como se cada interação contasse um pedaço diferente de uma história muito maior. Cada quebra-cabeça era um elemento direto da história, não uma mera atividade lúdica para entreter o jogador. Não há vitória ou perda aqui, apenas o começo e o fim do enredo. Em algumas partidas, o jogador poderia fracassar e ver seu personagem morrer, mas imediatamente voltava ao ponto que parou para prosseguir a narrativa.

O gênero deu uma esfriada depois de 2000, principalmente por causa da chegada de jogos com gráficos e mecânicas diferentes, mas em 2013 retornou com jogos extremamente bem conceituados, como o da série The Walking Dead e remakes de títulos antigos pela DoubleFine.

Em 1998, Half-Life inovou o gênero de tiro em primeira pessoa. Até então essa categoria bebia da fonte da violência e do gameplay dinâmico, praticamente ignorando qualquer narrativa. Jogos como Doom, Quake e Duke Nukem já exploravam o storytelling, mas o deixavam de lado. Seguindo John Carmack, encaravam a história como um complemento, não o foco principal — o que deixava de fato os jogos muito divertidos, mas extremamente rasos…

Cena de Half-Life | Imagem: Atlântida

Half-Life mudou isso. Permitia não só ao jogador explorar um ambiente completamente em 3D, riquíssimo de detalhes, como também interagir com outros personagens e elementos para descobrir a história do jogo. Diferente de outros títulos, Half-Life não possuía nenhuma animação (cut scenes), interface ou manual que contasse sua história, toda ela deveria ser descoberta através do gameplay, o que imergia ainda mais o jogador, estimulando-o a ser parte daquele universo de alienígenas e conspirações.

Cena de The Sims | Imagem: Praquenexo

Nos anos 2000, outro fenômeno: a série The Sims. Embora não seja considerado tecnicamente um jogo, The Sims dava todas as ferramentas ao jogador para que ele montasse a narrativa que desejasse. Um simulador de pessoas, no qual era possível personalizar os moradores do seu lar, a mobília, a casa e até mesmo toda a vizinhança. Sem um objetivo definido, ficava ao critério do player decidir o que fazer com cada personagem. Devo estudar e trabalhar para ser um astronauta? Talvez um Chef? Dona de casa? Ou devo matá-los na piscina para que virem fantasmas e voltem para puxar o pé dos outros moradores? Esse controle sobre a vida dos seus Sims garantiram ao game o título de “simulador de Deus”.

Cena de World of Warcraft | Imagem: Hack Consoles

Em 2003, World of Warcraft (Wow) chegava às prateleiras para mudar de vez os jogos online e a maneira como experimentamos narrativas coletivamente. Trata-se de um jogo Massive Multiplayer Online (MMO) que mistura elementos de RPG clássicos — como o imaginário medieval fantástico tolkeniano e seus elfos, anões e magos — permitindo criar a aparência do seu personagem e personalizar armaduras e habilidades. Mais do que um simples avatar, o jogo gera uma identidade única para cada participante.

Os jogadores são livres para explorar o mundo do WoW, podendo desempenhar funções que criam narrativas dentro da narrativa principal, como montar um clã de anões para lutar contra um clã de elfos.

Cena de Heavy Rain | Imagem: Uce Gamers

Em 2010, Heavy Rain trouxe realimentou a abordagem aprofundada da narrativa nos games. Muito semelhante aos adventure games, nele o jogador deve interagir com elementos do cenário para descobrir a história, porém aqui ela se divide em diversos ramos, — cada ação pode alterar o rumo e a conclusão do enredo. São 22 finais diferentes. Por exemplo, se em uma cena de ação o jogador erra o botão que deve apertar, seu personagem pode morrer, mas a história prossegue sem ele.

O jogo trouxe à tona uma discussão popular nos games, a respeito do seu desenvolvimento cinematográfico. Tudo aqui parece ter sido dirigido com maestria, porém é o jogador quem dirige o jogo. Uma obra prima dos games modernos e que redefiniu a categoria.

Cena de Skyrim

Por fim, em 2011 foi lançado Skyrim, quinto jogo da série de jogos de RPG The Elder Scrolls. É muito semelhante a um MMO, só que como uma experiência completamente single player. O jogo ilustra bem o início de uma nova era de jogos de exploração e RPG, com infinitas combinações de customização de personagem, equipamentos, habilidades e pertences como casas ou cavalos. Nesse jogo, o jogador se descobre como um grande guerreiro capaz de falar a língua dos dragões, o que lhe garante poderes excepcionais. Além de ter centenas de horas de gameplay, o jogo expande extraordinariamente o uso de narrativas: por se tratar de um jogo medieval, há muitas escrituras e livros espalhados pelo mundo, livros estes que não possuem efeito algum na história principal, mas que o jogador pode parar para ler e aprender sobre a mitologia e lendas do universo The Elders Scrolls, histórias paralelas e segredos de outros jogos da série.

Agora resta saber o que o futuro nos reserva. Tendências cada vez mais fortes de imersão, que fazem uso de tecnologias de realidade virtual, começam a se consolidar e a trazer novas possibilidades para a interação e a narrativa.

Jonathan Biz Medina é graduado em design de games e empreendedor na área de jogos e tecnologias de realidade virtual. Conheça seu site e acompanhe sua página sobre desenvolvedores brasileiros de games e seu grupo de portfólios de game designers.

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