A Noite Escura da Alma: Misticismo e Cegueira em John Milton e Jorge Luis Borges

A cegueira entre dom e punição, ignorância e transcendência — e como experiência dos limites da linguagem

Isabella Lígia Moraes
revista Capitu
9 min readMar 13, 2016

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Healing of the Man Born Blind, quadro de Edouard Edy-Legrand

A cegueira atingiu seis gerações da família do Jorge Luís Borges. Do seu pai, ele herdou a doença, assim como o ofício de escritor. Em seu Ensaio Autobiográfico, ele diz que, desde sua infância, quando o pai foi acometido da enfermidade, considerava-se de modo tácito que ele cumpriria o destino literário que as circunstâncias haviam negado a seu progenitor. Essa condição de escritor cego afigurou-se para ele como algo realmente fatídico, ao perceber que, ao ser nomeado diretor da Biblioteca Nacional, em 1955, Groussac e José Mármol, antigos diretores, também foram cegos. Em suas palavras, “se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação — e confirmação de ordem ternária, quer dizer, divina ou teológica”.

Na literatura, a cegueira é figurada como uma experiência introspectiva, mística e fatídica, e é associada a preocupações teológicas ou metafísicas. No campo literário ocidental, esse símbolo é interpretado segundo duas vertentes principais, a bíblica e a clássica. Na perspectiva bíblica, representa a tendência a ignorar a realidade e as evidências, denota insensibilidade espiritual, incapacidade de reconhecer e compreender a vontade divina. No campo da literatura clássica, o cego é aquele que não se volta para as aparências enganosas da existência, aquele que precisou abandonar a luz do mundo dos fenômenos para enxergar a luz divina, que se desapegou da imagem ilusória para buscar a essência — por isso, tem a possibilidade de conhecer a realidade secreta e oculta ao comum dos mortais. Assim, a perda da capacidade física é compensada pela compreensão do divino. Essa tensão entre ignorância e transcendência aparece na obra de Borges, com destaque para os poemas que escreveu em diálogo com o inglês John Milton.

Uma anedota que ilustra essa profunda relação entre o artista e a cegueira é a angústia do poeta Augusto dos Anjos, contada em A Última Quimera, de Ana Miranda. O escritor era constantemente assombrado pelo medo de ficar cego por causa de uma conjuntivite granulosa que tivera. Ele sempre dizia que um dia deixaria de ver e, antecipando-se ao momento esperado, caminhava pela casa com os olhos vendados, tateando pelas paredes, treinando para quando o dia chegasse e tudo ficasse para ele muito escuro.

Essa escuridão experienciada pelo escritor cego é referida por Borges na conferência "A Cegueira", ministrada no Teatro Coliseo de Buenos Aires em 1977, a partir do soneto "On His Blindness", do poeta inglês John Milton (1608–1674). Tendo ficado cego por volta dos trinta anos de idade, Milton considera "como sua luz já está gasta em metade da sua vida", ou seja, a outra metade será vivida na penumbra. Quando descreve o mundo, ele diz: In this dark world and wide — “neste mundo escuro e vasto”. Segundo Borges, esse é exatamente o mundo dos cegos, quando estão sozinhos e andam com as mãos estendidas, procurando apoio.

On His Blindness

When I consider how my light is spent
Ere half my days in the dark world and wide,
And that one talent which is death to hide
Lodg’d with me useless, tough my soul more bent
To serve therewith my maker, and present
My true account, lest he returning chide,
“Doth God exact day-labour, light denied?”
I fondly ask. (…)

O poeta, então, pergunta se Deus cobraria "um exato dia de trabalho" daquele a quem a luz foi negada, e a Paciência personificada impede essas lamentações. De acordo com ela, Deus não precisa do trabalho humano ou dos seus presentes e conquistas; o que melhor serve a Deus é aquele que suporta sua provação. Há a perspectiva do retorno e do momento de prestar contas, ou seja, do Juízo Universal.

(…) But Pacience, to prevent
That murmur, soon replies: “God doth not need
Either man`s work or his own gifts: who best
Bear his mild yoke, they serve him best. His state
Is kingly; thousands at his bidding speed
Ans post o’er land and ocean without rest:
They also serve who only stand and wait”.

Pode-se dizer que o poema dialoga com a Parábola dos Talentos, texto bíblico de Mateus 25, versículos 14 a 30. Trata-se da história de um senhor viaja para longe e, antes de partir, confia talentos (moeda grega) a três servos seus. Ao retornar sem ser esperado, pede satisfações do dinheiro. Enquanto os dois primeiros haviam investido e trabalhado, fazendo com que os talentos rendessem, o terceiro servo, por medo de perder os talentos, os enterrou. O senhor, então, amaldiçoa esse mau servo, para que seja lançado às "trevas exteriores", onde haverá "pranto e ranger de dentes". O conto funciona como uma alegoria do Juízo Universal: como não é sabido pelos humanos quando virá, eles devem estar sempre preparados. Essas “trevas exteriores”, evidentemente, são significativas, na medida em que associam a punição à cegueira e o seu mundo escuro e vasto.

Por sua vez, "On His Blindness" trata do criador que deu o dom ao poeta, que não o aproveitou ou não o pôde fazer. Seu talento foi escondido, como o do mau servo da parábola bíblica, pois ficou estagnado com ele, sem uso devido às circunstâncias. Sua alma, então, se curva ao criador, temendo a repreensão por ser um mau servo.

Seguindo o nosso raciocínio de que a cegueira bíblica tem um sentido negativo de punição ou ignorância da palavra de Deus, enquanto na vertente clássica ela seria um dom, vejamos o que diz Borges na conferência "A Cegueira" sobre esse desafio do escritor cego:

“Não apenas o escritor mas todo homem deve se lembrar de que os fatos da vida são um instrumento. Todas as coisas que lhe são dadas têm um sentido, ainda mais no caso do artista; tudo o que lhe acontece — inclusive humilhações, mágoas e infortúnios — funciona como argila, como material que deve ser aproveitado para sua arte. Lembrei disso num poema, onde falo do antigo alimento dos heróis: a humilhação, a infelicidade, a contradição. Essas coisas nos foram dadas para serem transformadas: fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade.”

O poema a que Borges se refere é “Mateo, XXV, 30”, publicado em El Otro, el Mismo (1964). O título do poema corresponde à localização na Bíblia do último versículo da Parábola dos Talentos. Vemos aqui, mais uma vez, portanto, a associação entre a cegueira e a referência bíblica, entre dom, punição e motivação para a escrita.

A relação dos escritos de Borges sobre a cegueira com o soneto escrito por Milton é reiterada ao observarmos que poeta argentino tem dois poemas com o mesmo título do que analisamos anteriormente, “On His Blindness”. Assim mesmo, em inglês, dos quais trataremos por ordem da publicação.

O primeiro “On His Blindness” de Borges está no livro El Oro de Los Tigres (1972). É um fluxo contínuo, um desabafo. O poeta se considera indigno de aproveitar as belezas do universo, pois foi privado de vê-las, retomando, portanto, a ideia bíblica da cegueira como punição. Usa inclusive uma expressão semelhante a de Milton, quando diz que seus já “gastos olhos” perdem algo na penumbra — lembremos, Milton falava da sua “luz gasta”.

On his blindness

Indigno de los astros y del ave
que surca el hondo azul, ahora secreto,
de esas líneas que son el alfabeto
que ordenan otros y del mármol grave
cuyo dintel mis ya gastados ojos
pierden en su penumbra, de las rosas
invisibles y de las silenciosas
multitudes de oros y de rojos
soy, pero no de las Mil Noches y Una
que abren mares y auroras en mi sombra
ni de Walt Whitman, ese Adán que nombra
las criaturas que son bajo la luna,
ni de los blancos dones del olvido
ni del amor que espero y que no pido.

Nesses versos, o poeta fala sobre tudo de que foi privado devido à cegueira, e dentre esses elementos destacamos especialmente "as rosas invisíveis" e as cores — o branco do mármore, o dourado e o vermelho.

Essas rosas invisíveis aparecem também em outro poema de Borges, dedicado justamente a John Milton, intitulado “Una Rosa y Milton” e publicado em El Otro, El Mismo. Nesses versos, o poeta destaca uma rosa entre todas as existentes nos tempos, para que se salve do esquecimento. Essa rosa que o poeta pretende eternizar seria aquela que Milton aproximou de seu rosto, sem vê-la. A rosa é caracterizada como amarela, vermelha ou branca, as duas últimas sendo justamente as cores que Borges não mais enxerga, pois “quando não desaparece, o branco se confunde com o cinza”.

Em Sete Noites, Borges fala sobre as cores que distingue em sua cegueira, pois apesar do que muitos poderiam pensar, ele diz que a cegueira não seria escuridão total. Ele diz ser capaz de distinguir, por exemplo, o verde, o azul e o amarelo. Quanto ao vermelho, também referido no poema, havia sumido completamente, e o poeta atesta que esperava “poder ver de novo essa incrível cor, essa cor que resplandece na poesia”.

As cores que caracterizam a rosa invisível se relacionam, não por acaso, aos estados da Alquimia. Na prática alquímica, a evolução espiritual humana é associada à transmutação dos metais, sendo o primeiro estado o nigredo, que em latim significa “escuro”. Esse estado representa a morte espiritual, sucedida pelo albedo (branco), equivalente à purificação; citrinitas (amarelo), que traz o despertar; e rubedo (vermelho), a iluminação.

O trabalho do nigredo foi chamado pelo poeta místico espanhol São João da Cruz de “noite escura da alma”. Seu poema homônimo narra a jornada da alma até sua união com Deus em amor místico. Essa jornada é referida como noite escura, em que a escuridão representa as dificuldades da alma em se desapegar do mundo e chegar à iluminação, a dolorosa experiência do crescimento espiritual. Haveria dois estágios dessa escuridão: o primeiro seria a purificação dos sentidos, e o segundo e mais difícil seria a purificação do espírito. Essa noite escura nos remete ao símbolo da cegueira, em que o poeta precisa se desapegar do mundo no difícil trabalho de purificação para dar continuidade ao ofício de escrever.

Como apontamos, Borges, curiosamente, tem um outro poema com o mesmo título, “On His Blindness”, que está na obra Los Conjurados (1985). Neste, ele expõe que, enquanto os anos se passam, é rodeado por uma neblina que reduz todas as coisas a uma coisa sem forma ou cor. Segundo o poeta, “esse lento crepúsculo (lenta perda da visão) teve início quando comecei a ver. Na verdade, ele foi se ampliando desde 1899, sem momentos dramáticos. Um lento crepúsculo que durou mais de meio século”.

Ele cita a vasta noite elemental, noite vivida na escuridão do poeta e que nos remete ao caos primitivo. E realmente, no fim do poema, o poeta diz que aos outros lhes fica o universo, e a ele, o hábito do verso, pois é a escuridão do caos que possibilitaria a criação. Tanto a noite como o dia são essa neblina, indiferenciáveis. Ao contrário do primeiro “On His Blindness”, que trata daquilo de que o poeta é privado para, depois, ressaltar aquilo que ele possui, este poema possui um tom mais melancólico:

On his blindness

Al cabo de los años me rodea
una terca neblina luminosa
que reduce las cosas a una cosa
sin forma ni color. Casi a una idea.
La vasta noche elemental y el día
lleno de gente son esa neblina
de luz dudosa y fiel que no declina
y que acecha en el alba. Yo querría
ver una cara alguna vez. Ignoro
la inexplorada enciclopedia, el goce
de libros que mi mano reconoce,
las altas aves y las lunas de oro.
A los otros les queda el universo;
a mi penumbra, el hábito del verso.

Vimos, portanto, que Borges escreve dois poemas com o mesmo título, “On his Blindness”, cujo título nos remete ao poema de mesmo nome do mestre John Milton. O poema do inglês associa a cegueira à Parábola dos Talentos, como se a cegueira fosse uma punição para o servo que não fez render o talento da visão. Na mesma ideia da cegueira como punição por não ter sido bem aproveitada, Borges escreve seus poemas, dialogando com os de Milton. Em Borges, entretanto, a cegueira é mais considerada como um dom, do qual também deve se aproveitar e transformar em criação.

Em sua obra, Borges considera a linguagem como insuficiente para expressar as ideias, e questiona a possibilidade de captação do real pelos sentidos. Assim, a cegueira foi uma experiência prática dessa crença de Borges. Talvez isso justifique a recorrência da metalinguagem nesses poemas que falam da cegueira, em que, segundo Eneida Maria de Souza, os temas da noite, da biblioteca, do livro e do ofício de escrever se reduplicam na figura do escritor cego, aguçados por uma prática autobiográfica.

Isabella Lígia Moraes é mestre em literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel e licenciada em letras pela mesma instituição. Atua principalmente com os seguintes temas: mitologia, epopeia, poesia da modernidade, Cláudio Manuel da Costa, literatura e filosofia.

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