Rulfo e as cores da sombra e da morte fotográficas

Os temas de Juan Rulfo atravessam sua fotografia e sua literatura — e revelam a história de seu país

Adriana Bezerra da Silva
revista Capitu

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A exposição En los Ferrocarriles: Juan Rulfo, Fotografías, em cartaz no Centro Cultural Tlatelolco, Cidade Do México, de maio a junho deste ano, traz mais uma vez as obras visuais do também escritor Juan Rulfo para o público mexicano e o posiciona entre os grandes fotógrafos do país, mesmo que seu nome ainda seja referido especialmente em relação à sua produção literária. Daqui do Brasil, sem poder visitar a exposição, percebo como essa vertente de Rulfo tarda por cruzar os hemisférios e chegar ao público brasileiro.

Ainda que muitos literatos mexicanos não concordem, Juan Rulfo é um nome pouco conhecido entre os leitores do Brasil. De fato, por aqui, ficamos mais com Julio Cortázar, Jorge Luís Borges e Gabriel García Márquez quando lemos literatura hispano-americana. José María Arguedas, Alejo Carpentier e até mesmo Carlos Fuentes, ainda que também rotulados pelo êxito editorial do boom latino-americano, muitas vezes são do conhecimento de quem se volta para as letras hispânicas de forma menos espontânea, mais crítica e, talvez, profissional. São vários os textos introdutórios à obra de Rulfo em português, sempre destacando sua preferência pelas regiões desérticas do centro-norte mexicano, onde nasceu, e por colocar como protagonista o povo humilde da região. Vale adicionar a isso algo sobre o processo de criação de seus dois únicos livros — O chão em chamas (1953) e Pedro Páramo (1955) —, do qual pode-se aferir certos dados a partir das anotações de Rulfo. Sabe-se, por exemplo, que alguns personagens são reais, como Pedro Zamora do conto “O chão em chamas”, e que alguns episódios se referem a dados biográficos transferidos para os personagens. É 0 caso do anúncio da morte do pai de Pedro Páramo, no romance homônimo, que lembra o falecimento do pai do escritor, quando era criança. Para construir as falas de seus personagens, Rulfo ouvia com atenção aqueles com quem convivia em Sayula, estado de Jalisco. Frases e gírias da região foram anotadas em seus cadernos de rascunhos.

Quando se menciona para os já poucos conhecedores dos dois livros de Rulfo que o escritor também se expressou em fotografia, tendo sido considerado pela escritora e crítica de arte Susan Sontag como o melhor fotógrafo latino-americano, o fato causa espanto frequentemente. Em 2010, a editora Cosac Naify aproximou o leitor brasileiro à sua obra fotográfica com o lançamento de 100 Fotografias: Juan Rulfo. Também foi a oportunidade para que especialistas brasileiros em imagem visual tivessem contato com as fotografias do mexicano. Essas fotografias retratam ruínas pré-hispânicas e espanholas, paisagens do interior mexicano, edifícios, indígenas, dançarinos, músicos e amigos pessoais de Rulfo. Algumas fotografias foram realizadas nos passeios do escritor, agora fotógrafo, pelo interior do país, em suas aventuras como alpinista, ou foram encomendadas a trabalho, tendo sido publicadas em revistas de turismo e geografia. Outras tantas realizou durante os seus serviços para o Instituto Nacional Indigenista do México. Como não podia deixar de ser, as relações entre as duas expressões artísticas do escritor-fotógrafo se esparramaram nas resenhas do livro das fotografias recentemente publicado. Em oposição à essa associação fácil entre escrita e fotografia rulfianas, muitos estudiosos do autor, lá no México, insistem em afirmar a independência entre uma e outra arte. E nisso não se equivocam.

Imagem do livro 100 Fotografias: Juan Rulfo | imagem: Juan Rulfo/divulgação Cosac Naify

Essa independência existe, ainda que as fotografias de Rulfo possam, sim, dialogar com a sua literatura. E afirmar isso não significa dizer que umas são ilustrações da outra ou, ao revés, que uma é a descrição literária das outras. Se aceitarmos a fotografia como passível de um discurso narrativo (há controvérsia sobre essa questão; o teórico francês Roland Barthes, contudo, afirma que toda fotografia é uma narrativa), percebemos que temáticas presentes nas obras literárias de Rulfo também estão representadas visualmente em algumas de suas fotografias. É o caso da morte, tema do romance Pedro Páramo, em que o personagem Juan Preciado, ao se dirigir à cidade de Comala em busca de seu pai, se depara com uma cidade habitada por mortos. Barthes também associa o ato de fotografar ao ato da morte. A representação da câmera como arma fatal é bastante comum em obras cinematográficas, como Peeping Tom e Blow up, além de obras literárias como o conto “As Babas do Diabo”, de Cortázar, ou o poema “Sonho de um Curioso”, de Charles Baudelaire, dedicado ao fotógrafo Felix Nadar. As fotografias de Rulfo dialogam com essa representação dada de antemão e acrescentam elementos que reforçam sua aproximação à temática da morte, ainda que não explicitamente como ocorre em seu romance. O pesquisador de estética e imagem Philippe Dubois afirma que qualquer fotografia remete o seu objeto para o reino das sombras. As sombras são elementos presentes em um número considerável de fotografias de Rulfo. Contrapostas à luz com que são iluminados alguns objetos nas fotografias, encenam a morte simbólica dada no momento do clique do fotógrafo.

Outra referência à morte nas fotografias de Rulfo é a presença das ruínas que representam uma morte material e cultural. Em algumas de suas fotos, as ruínas pré-hispânicas ganham dimensões eloquentes, enquanto que seu deterioro é focalizado. A fotografia de um chacmool, escultura pré-hispânica utilizada em sacrifícios, de Tula, no estado de Hidalgo, é um exemplo. A figura é focalizada debaixo para cima, sob um céu repleto de nuvens leves que se contrapõem à rigidez da pedra de séculos de história indígena. O repouso silencioso dessa figura entra em diálogo com o mistério que envolve a aparição de vários chacmooles em diferentes regiões da Mesoamérica. Representando uma figura antropomórfica deitada, com o peito erguido, a cabeça sempre virada, para a direita ou para a esquerda, pernas recolhidas com joelhos dobrados em 90º, os chacmooles têm oferecido um grande desafio aos arqueólogos. Rulfo põe em cena o mistério pré-hispânico e a morte dessa história para sempre diluída na nova cultura ocidental, ainda que suas especificidades ainda hoje sejam notáveis pelos descendentes das tribos originárias.

Igrejas espanholas também são fotografadas em ruínas. Ainda que os enquadramentos recobrem dignidade às suas imagens, as ruínas remetem a certo estado de nostalgia e melancolia, sentimentos asssociados à morte. Um dos melhores exemplos dessa associação é a fotografia de Rulfo da torre da igreja de Parangaricutiro, estado de Michoacán, emergida das lavas petrificadas do vulcão Paricutín que, em 1943, destruiu a cidade de San Juan Parangaricutiro, deixando sua população desolada. Ao fundo dessa fotografia, é possível ver o vulcão em atividade, soltando nuvens de fumaça negra e espessa para o céu. As ruínas das ferrovias que cortavam a Cidade do México e suas proximidades, também fotografadas por Rulfo, da mesma forma que essas imagens aqui referidas, estão embebidas nas cores da sombra e da morte fotográficas.

Junto à exposição do Centro Cultural Tlatelolco, foi lançado o livro En los ferrocarriles. A publicação apresenta uma série de fotos que Rulfo fez das malhas ferroviárias mexicanas em crescente desuso e desaparecimento (com efeito, o jornal espanhol El País, em reportagem sobre a mostra, usou o título "Rulfo y la muerte del tren"). Interessante notar que, além da morte representada pelas últimas marias fumaças da capital mexicana, muitas das fotografias foram feitas em Tlatelolco, mesma região do centro cultural, durante as filmagens de um documentário sobre as ferrovias. Nesse local, anos depois de tomadas as fotos, ocorreu o famoso e desastroso massacre de estudantes de 1968, em que militares cercaram a praça central e atiraram contra o grupo que protestava ali. Certamente, os temas de Rulfo atravessam suas linguagens artísticas e revelam, ainda que de maneira escusa, a história de seu país — em que os temas da morte e da violência são tão caros.

Adriana Silva é mestranda em literatura hispano-americana pela USP, com estância na Universidad Nacional Autónoma de México. Escreve.

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Adriana Bezerra da Silva
revista Capitu

Pesquisadora de Literatura (USP/UNAM/Dickinson College). Membra do Coletivo Infâmia. "Todos somos perigosos" (Hecatombe, 2021). Tradutora, revisora, professora.