Beatles e Tarot: Uma Jornada Mágica e Misteriosa
“The Fool on the Hill”, composta por Lennon e McCartney, remete ao arcano O Louco, do Tarot
Paul passeava ao amanhecer com sua cachorra, quando, repentinamente, apareceu um senhor vestido com uma capa de chuva e um cinto, sem que Paul pudesse perceber de onde ele veio. Então, o senhor comentou com ele algo sobre a paisagem do local e despediu-se, desaparecendo de forma tão misteriosa quanto tinha aparecido. A importância do episódio seria perceptível na insistência com que Paul teria comentado sobre o acontecimento com seus companheiros naquele dia. Essa história é a explicação comumente aceita pelos estudiosos para a letra da canção “The Fool on the Hill”, a qual poderia se referir a essa experiência de Paul McCartney relatada na obra A Hard Day’s Write: The Stories Behind Every Beatles Song, de Steve Turner. Acreditamos, porém, que a mensagem da canção não seja redutível a esse episódio biográfico, pois revela o conhecimento da uma importante ferramenta mágica do ocultismo: o Tarot.
Um Caminho Mágico Iniciado em 1967
A relação dos Beatles com o ocultismo evidenciou-se em 1967, no período de declínio da beatlemania, com o lançamento de seu oitavo álbum, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. A própria capa revela essa aproximação, na medida em que apresenta uma colagem que traz diversas pessoas célebres, entre elas o ocultista inglês Aleister Crowley. A riqueza da capa merece ainda uma consideração, pois sugere que esse seja um momento de transformação da banda, já que remete a um enterro e temos, em primeiro plano, os Beatles vestidos como na referida época de beatlemania e olhando para a tumba com aspecto soturno. Ao lado dessa representação, há o quarteto em trajes de sargentos, renascido em sua nova fase musical caracterizada, sobretudo, pela psicodelia.
Alguns meses depois, ainda em 1967, o lançamento do álbum Magical Mystery Tour reiterou essa relação da banda com os estudos do ocultismo, como vemos no próprio título, que se refere a um passeio ou excursão — e também a uma turnê — mágica e misteriosa. Nessa mágica turnê temos uma canção que representa bem o simbolismo de fim de uma fase pessoal/musical e início de outra: “The Fool on the Hill”, composta por Lennon e McCartney. A melodia quase infantil presentifica um universo que pode ser o da infância ou da loucura, sendo que a palavra “fool”, presente no título, possui a acepção de bobo, tolo ou louco.
Essa imagem do louco sobre a montanha ecoada na canção, considerando o conhecimento de ciências ocultas que possuíam os compositores, remete à imagem do arcano O Louco representado pelo Tarot, importante ferramenta mágica para o autoconhecimento. O Tarot é composto por um conjunto de cartas dividido em Arcanos Menores e Arcanos Maiores, sendo estes numerados de 0 a 21, ou de 1 a 22, a depender do baralho. Essas cartas, conforme já estudado por Jung, representam arquétipos, ou modelos do inconsciente coletivo. O Louco é representado em alguns baralhos como o Arcano 0 e, em outros, como o Arcano 22. Assim, ele traz em si essa ideia de início, potencial puro, ou de fim de uma fase para que outra se inicie. Nesse sentido, a presença dessa temática no álbum certamente não é gratuita.
O Louco na Montanha
A representação do Louco no Tarot de Rider-Waite aparece como Arcano 0. Retrata um homem à beira de um abismo, com um de seus pés pisando no chão e o outro suspenso no ar. Ele traz uma trouxa de roupas, um penacho vermelho na cabeça e um cachorro, enquanto brilha o sol sobre a cena.
Nos elementos presentes nessa carta, fica evidente a solidão do caminho para o autoconhecimento e a reação negativa que isso gera nas pessoas ao redor, representadas pelo cão que parece querer fazer o Louco desistir de se lançar ao abismo de si mesmo. Essa ideia da incompreensão das pessoas em relação ao adepto está representada no seguinte trecho da canção de McCartney:
Mas ninguém quer conhecê-lo
Pode-se ver que ele é só um louco
E ele nunca dá uma resposta
Apesar desse estranhamento gerado nas outras pessoas, percebe-se, na carta e na canção, que sua visão é diferente e mais ampla em comparação à dos outros:
Mas o louco na montanha
Vê o sol se pôr
E os olhos em sua cabeça
Veem o mundo girando ao redor
A pena na cabeça do Louco também é um símbolo importante, pois remete aos iniciados, que têm uma conexão com o divino. Essa ligação com a divindade também é evidenciada pela montanha onde ele se encontra, pois os grandes mestres sempre sobem metaforicamente a uma montanha para receber a lei ou a revelação e, posteriormente, transmiti-la aos homens comuns. Assim, o Louco sabe que é diferente da maioria das pessoas:
Ele nunca os ouve
Ele sabe que os loucos são eles
Esse simbolismo da pena também ecoa o mito de Maat, deusa egípcia cuja pena era utilizada por Anúbis para pesar os corações dos mortos: somente aqueles que tivessem o coração mais leve do que a pena de Maat é que poderiam continuar sua jornada pelo mundo dos mortos para, no fim, unir-se aos deuses. Esse mito reitera a relação da pena com a ingenuidade e pureza atribuídas ao Louco.
Reiterando nossa interpretação, no clipe oficial da canção “The Fool on the Hill”, Paul encena a representação do referido Arcano. Ele assume o papel de Louco, que dança na beira do abismo com seu sorriso ingênuo e tem a visão ampla das possibilidades que o aguardam em sua jornada.
Reiterando nossa interpretação, no clipe oficial da canção “The Fool on the Hill”, Paul encena a representação do referido Arcano. Ele assume o papel de Louco, que dança na beira do abismo com seu sorriso ingênuo e tem a visão ampla das possibilidades que o aguardam em sua jornada.
Um Inesperado Encontro
O Tarot apresenta a jornada do Louco em busca do autoconhecimento. Com seus pertences em sua trouxa, ele sai pelo mundo tendo à frente todas as possibilidades e encontra cada um dos outros 21 Arcanos para aprender uma lição. Essa é a história do próprio ser humano na busca de sentido para sua vida. Mas voltando à história da biografia de Paul que teria inspirado a canção… Consideramos que talvez ela não seja exatamente um acontecimento biográfico, mas sim uma representação alegórica.
Segundo a narrativa, Paul caminhava com sua cachorra ao amanhecer. Se atentarmos para o arcano O Louco, veremos que brilha o sol e um cão o acompanha. Se Paul assume a representação arquetípica do Louco, o seu mágico e misterioso encontro com um senhor de capa de chuva pode representar o encontro com um Arcano que possua essas características descritas por ele. Assim, a história narrada por Paul encena o encontro do Louco com o Eremita, nono Arcano maior do Tarot.
O Eremita é uma carta que simboliza o isolamento necessário para o adepto conhecer o mundo que o rodeia e também para o autoconhecimento. É uma etapa necessária no caminho do Iniciado, que se retira do mundo para adquirir uma nova visão sobre as coisas e sobre si. Assim, o Louco traz a ideia do caos que motiva o despertar espiritual e a busca de si, enquanto o Eremita representa o iluminado, que percorreu o caminho espiritual e compartilha com aquele sua experiência, mostrando que as respostas para as angústias vêm de dentro do próprio ser. Podemos dizer, inclusive, que o Eremita é o próprio Louco que se iluminou após percorrer sua jornada.
Nesse sentido, o encontro narrado entre Paul e o misterioso senhor pode representar justamente uma experiência espiritual na jornada do compositor — vale lembrar que, no ano seguinte, o quarteto concretizaria sua viagem à Índia em busca de iluminação espiritual. Não por acaso, a canção que narra esse encontro do Arcano 0 com o Arcano 9 está no nono álbum dos Beatles.
Isabella Lígia Moares é mestre em literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel e licenciada em letras pela mesma instituição. Atua principalmente com os seguintes temas: mitologia, epopeia, poesia da modernidade, Cláudio Manuel da Costa, literatura e filosofia.