Beatles e Tarot: Uma Jornada Mágica e Misteriosa

“The Fool on the Hill”, composta por Lennon e McCartney, remete ao arcano O Louco, do Tarot

Isabella Lígia Moraes
revista Capitu
6 min readApr 17, 2015

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Paul passeava ao amanhecer com sua cachorra, quando, repentinamente, apareceu um senhor vestido com uma capa de chuva e um cinto, sem que Paul pudesse perceber de onde ele veio. Então, o senhor comentou com ele algo sobre a paisagem do local e despediu-se, desaparecendo de forma tão misteriosa quanto tinha aparecido. A importância do episódio seria perceptível na insistência com que Paul teria comentado sobre o acontecimento com seus companheiros naquele dia. Essa história é a explicação comumente aceita pelos estudiosos para a letra da canção “The Fool on the Hill”, a qual poderia se referir a essa experiência de Paul McCartney relatada na obra A Hard Day’s Write: The Stories Behind Every Beatles Song, de Steve Turner. Acreditamos, porém, que a mensagem da canção não seja redutível a esse episódio biográfico, pois revela o conhecimento da uma importante ferramenta mágica do ocultismo: o Tarot.

Um Caminho Mágico Iniciado em 1967

A relação dos Beatles com o ocultismo evidenciou-se em 1967, no período de declínio da beatlemania, com o lançamento de seu oitavo álbum, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. A própria capa revela essa aproximação, na medida em que apresenta uma colagem que traz diversas pessoas célebres, entre elas o ocultista inglês Aleister Crowley. A riqueza da capa merece ainda uma consideração, pois sugere que esse seja um momento de transformação da banda, já que remete a um enterro e temos, em primeiro plano, os Beatles vestidos como na referida época de beatlemania e olhando para a tumba com aspecto soturno. Ao lado dessa representação, há o quarteto em trajes de sargentos, renascido em sua nova fase musical caracterizada, sobretudo, pela psicodelia.

Capa do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967).

Alguns meses depois, ainda em 1967, o lançamento do álbum Magical Mystery Tour reiterou essa relação da banda com os estudos do ocultismo, como vemos no próprio título, que se refere a um passeio ou excursão — e também a uma turnê — mágica e misteriosa. Nessa mágica turnê temos uma canção que representa bem o simbolismo de fim de uma fase pessoal/musical e início de outra: “The Fool on the Hill”, composta por Lennon e McCartney. A melodia quase infantil presentifica um universo que pode ser o da infância ou da loucura, sendo que a palavra “fool, presente no título, possui a acepção de bobo, tolo ou louco.

Essa imagem do louco sobre a montanha ecoada na canção, considerando o conhecimento de ciências ocultas que possuíam os compositores, remete à imagem do arcano O Louco representado pelo Tarot, importante ferramenta mágica para o autoconhecimento. O Tarot é composto por um conjunto de cartas dividido em Arcanos Menores e Arcanos Maiores, sendo estes numerados de 0 a 21, ou de 1 a 22, a depender do baralho. Essas cartas, conforme já estudado por Jung, representam arquétipos, ou modelos do inconsciente coletivo. O Louco é representado em alguns baralhos como o Arcano 0 e, em outros, como o Arcano 22. Assim, ele traz em si essa ideia de início, potencial puro, ou de fim de uma fase para que outra se inicie. Nesse sentido, a presença dessa temática no álbum certamente não é gratuita.

O Louco na Montanha

A representação do Louco no Tarot de Rider-Waite aparece como Arcano 0. Retrata um homem à beira de um abismo, com um de seus pés pisando no chão e o outro suspenso no ar. Ele traz uma trouxa de roupas, um penacho vermelho na cabeça e um cachorro, enquanto brilha o sol sobre a cena.

Arcano 0 — O Louco, no tarot de Rider-Waite

Nos elementos presentes nessa carta, fica evidente a solidão do caminho para o autoconhecimento e a reação negativa que isso gera nas pessoas ao redor, representadas pelo cão que parece querer fazer o Louco desistir de se lançar ao abismo de si mesmo. Essa ideia da incompreensão das pessoas em relação ao adepto está representada no seguinte trecho da canção de McCartney:

Mas ninguém quer conhecê-lo
Pode-se ver que ele é só um louco
E ele nunca dá uma resposta

Apesar desse estranhamento gerado nas outras pessoas, percebe-se, na carta e na canção, que sua visão é diferente e mais ampla em comparação à dos outros:

Mas o louco na montanha
Vê o sol se pôr
E os olhos em sua cabeça
Veem o mundo girando ao redor

A pena na cabeça do Louco também é um símbolo importante, pois remete aos iniciados, que têm uma conexão com o divino. Essa ligação com a divindade também é evidenciada pela montanha onde ele se encontra, pois os grandes mestres sempre sobem metaforicamente a uma montanha para receber a lei ou a revelação e, posteriormente, transmiti-la aos homens comuns. Assim, o Louco sabe que é diferente da maioria das pessoas:

Ele nunca os ouve
Ele sabe que os loucos são eles

Esse simbolismo da pena também ecoa o mito de Maat, deusa egípcia cuja pena era utilizada por Anúbis para pesar os corações dos mortos: somente aqueles que tivessem o coração mais leve do que a pena de Maat é que poderiam continuar sua jornada pelo mundo dos mortos para, no fim, unir-se aos deuses. Esse mito reitera a relação da pena com a ingenuidade e pureza atribuídas ao Louco.

Reiterando nossa interpretação, no clipe oficial da canção “The Fool on the Hill”, Paul encena a representação do referido Arcano. Ele assume o papel de Louco, que dança na beira do abismo com seu sorriso ingênuo e tem a visão ampla das possibilidades que o aguardam em sua jornada.

O arquétipo do Louco encenado por Paul McCartney no clipe da música “The Fool on the Hill”.

Reiterando nossa interpretação, no clipe oficial da canção “The Fool on the Hill”, Paul encena a representação do referido Arcano. Ele assume o papel de Louco, que dança na beira do abismo com seu sorriso ingênuo e tem a visão ampla das possibilidades que o aguardam em sua jornada.

Clipe de "Fool on the Hill"

Um Inesperado Encontro

O Tarot apresenta a jornada do Louco em busca do autoconhecimento. Com seus pertences em sua trouxa, ele sai pelo mundo tendo à frente todas as possibilidades e encontra cada um dos outros 21 Arcanos para aprender uma lição. Essa é a história do próprio ser humano na busca de sentido para sua vida. Mas voltando à história da biografia de Paul que teria inspirado a canção… Consideramos que talvez ela não seja exatamente um acontecimento biográfico, mas sim uma representação alegórica.

Segundo a narrativa, Paul caminhava com sua cachorra ao amanhecer. Se atentarmos para o arcano O Louco, veremos que brilha o sol e um cão o acompanha. Se Paul assume a representação arquetípica do Louco, o seu mágico e misterioso encontro com um senhor de capa de chuva pode representar o encontro com um Arcano que possua essas características descritas por ele. Assim, a história narrada por Paul encena o encontro do Louco com o Eremita, nono Arcano maior do Tarot.

Arcano 9 — O Eremita, no tarot de Rider-Waite

O Eremita é uma carta que simboliza o isolamento necessário para o adepto conhecer o mundo que o rodeia e também para o autoconhecimento. É uma etapa necessária no caminho do Iniciado, que se retira do mundo para adquirir uma nova visão sobre as coisas e sobre si. Assim, o Louco traz a ideia do caos que motiva o despertar espiritual e a busca de si, enquanto o Eremita representa o iluminado, que percorreu o caminho espiritual e compartilha com aquele sua experiência, mostrando que as respostas para as angústias vêm de dentro do próprio ser. Podemos dizer, inclusive, que o Eremita é o próprio Louco que se iluminou após percorrer sua jornada.

Nesse sentido, o encontro narrado entre Paul e o misterioso senhor pode representar justamente uma experiência espiritual na jornada do compositor — vale lembrar que, no ano seguinte, o quarteto concretizaria sua viagem à Índia em busca de iluminação espiritual. Não por acaso, a canção que narra esse encontro do Arcano 0 com o Arcano 9 está no nono álbum dos Beatles.

Isabella Lígia Moares é mestre em literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel e licenciada em letras pela mesma instituição. Atua principalmente com os seguintes temas: mitologia, epopeia, poesia da modernidade, Cláudio Manuel da Costa, literatura e filosofia.

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