Brasil, 2022

Uma futurologia fajuta baseada num presente de desespero

N. Oliveira
revista Capitu
6 min readNov 1, 2015

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Nela, ainda é possível ler, mesmo desbotado, um slogan tão fora do tempo e de lugar: “BRASIL — UM PAÍS DE TODOS” | imagem: flickr de Antonio Thomás

Estamos em 2022. No bicentenário da independência, os brasileiros se vêem diante de um país transformado, embora em muitos aspectos ainda seja o mesmo de sempre. As ruas se colorem de verde e amarelo às vésperas da Copa do Mundo, mas apesar da decoração festiva, o ambiente geral é de opressão.

No Brasil de 2022, os bailes funk foram proibidos, o uso de drogas ilícitas é punido com prisão (mas dá pra negociar…) e os moradores de favelas precisam apresentar carteira de trabalho assinada ou pagar pedágio para circular pela cidade. Nas periferias, militares das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras, que se multiplicaram após a experiência do Rio de Janeiro) determinam toque de recolher, fecham bares e interrompem festas após as 9 da noite. A população carcerária dobrou em 10 anos, e as rebeliões e carnificinas em presídios superlotados são corriqueiras. O efetivo das políciais militares nas grandes cidades aumentou 50% no mesmo período. Apesar destas medidas restritivas, 80 mil brasileiros são assassinados por ano. Crimes bárbaros, com grande repercussão na imprensa, servem como plataforma política para ex-policiais, delegados e apresentadores de TV que formam a numerosa “bancada da bala” no Congresso.

Os últimos anos foram de avanços no Congresso… para a agenda conservadora. Mulheres são presas por fazerem aborto, que passou a ser proibido inclusive em casos de estupro. Também é proibido fazer apologia ao ateísmo, “feitiçaria” (definição que enquadra religiões de origem africana) ou “cristofobia”. Não há mais “beijo gay” em novelas, pois as emissoras não podem veicular “propaganda homossexual”. Por trás destas proibições, está a crescente influência do televangelismo na política brasileira. Com a aprovação do voto facultativo, somente 50% dos eleitores comparecem às urnas, mas este percentual chega a 90% nos bairros de maioria evangélica. Ninguém vence uma eleição sem a bênção dos telepastores. Algumas igrejas se aproveitaram das dificuldades financeiras dos meios de comunicação para ampliar seus negócios — até a orgulhosa Rede Globo vende uma hora diária de seu horário nobre para uma grande igreja.

As denúncias de violações dos direitos humanos são recebidas com desdém pelas autoridades brasileiras. Se antes os governantes procuravam desculpas para cada chacina numa periferia ou num presídio, hoje a resposta padrão é criminalizar as vítimas e elogiar a ação da polícia. A retórica da “guerra ao crime” se incorporou ao discurso oficial, e o governador de São Paulo, Coronel Telhada, ganha popularidade ao responder aos jornalistas: “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos”.

A liberdade de expressão é ilusória: reclama-se diariamente do governo nas redes sociais — acessadas por oito em cada dez brasileiros — mas a militância ostensiva pode render retaliações e ameaças de morte. Moradores de favelas desaparecem depois de postar denúncias contra policiais das UPPs. Os governos cooptam os grandes grupos de comunicação por meio das gordas verbas publicitárias de estatais, e cobram a demissão dos jornalistas que incomodam. Com a aprovação do novo Marco Civil da Internet, os provedores brasileiros negam acesso a blogs ou páginas identificadas como “petistas”.

O PT, por sinal, é apenas sombra da força política que chegou à Presidência 20 anos atrás. Contrariando as expectativas, Dilma Rousseff concluiu seu segundo mandato em meio a seguidas ameaças de impeachment e pacotes de austeridade fiscal. Para garantir uma governabilidade mínima, a Presidenta cedeu grandes nacos de poder aos partidos da base aliada e à política econômica ditada pelo mercado financeiro. Mesmo com pouquíssima participação na composição ou no programa do governo, o PT absorveu sozinho o ônus de defender este mandato e sofreu pesadas derrotas nas eleições de 2016 e 2018. Neste período, movimentos de oposição, organizados através das mídias sociais, ganharam espaço e radicalizaram suas ações, que iam de panelaços e flash mobs até ameaças de morte contra políticos e militantes petistas. Depois que a Presidenta escapou por pouco de ser atropelada por uma SUV enquanto pedalava em Brasília, passou a evitar aparições públicas e terminou seu mandato reclusa no Palácio ou fazendo longas viagens internacionais.

Uma ampla reforma político-partidária aprovada pelo Congresso no primeiro ano do novo governo, em 2019, incentivou a fusão das antigas legendas em dois grandes blocos, um de oposição e outro de situação, criando um bipartidarismo nos moldes americanos. Estes blocos garantiram para os anos seguintes o monopólio das doações empresariais, do fundo partidário e do horário eleitoral gratuito na TV. Partidos de esquerda como PT e PSOL ficaram de fora destas fusões e não atingiram a cláusula de barreira nas eleições municipais de 2020. Com isso, perderam o direito ao fundo partidário e às aparições na TV (inclusive nos debates eleitorais), ficando praticamente relegados à clandestinidade. Os partidos e movimentos comunistas passaram à ilegalidade, depois que uma nova lei tornou crime a divulgação de símbolos como a foice-e-martelo e Che Guevara, equiparados a símbolos nazistas.

A nova lei antiterrorismo, ironicamente aprovada no governo Dilma em 2015, passou a ser aplicada contra sem-terras, sem-teto e indígenas, e os batalhões de choque foram autorizados a reprimir estes movimentos com armas letais. Manifestações de rua passaram a ser permitidas somente aos domingos. Greves no serviço público são punidas com o imediato corte de salário, e em alguns casos, demissão. Nas empresas privadas, as greves são raríssimas, já que a terceirização e a precarização dos direitos trabalhistas se tornaram a norma vigente. As empresas foram inclusive liberadas para fechar acordos de trabalho prevendo salários inferiores ao mínimo e jornadas de trabalho de até 60 horas semanais.

No início, houve resistência por parte do STF, que julgou várias destas novas leis e medidas como anticonstitucionais. O novo governo respondeu com uma reforma do Judiciário que dobrou o número de ministros do Supremo, garantindo a maioria em todas as votações com os novos juízes identificados com o novo bipartidarismo. Alguns dos ministros mais antigos passaram a ser perseguidos pela imprensa e movimentos antipetistas. Ricardo Lewandowski sofreu um AVC e se aposentou precocemente. Sob a presidência de Gilmar Mendes, o novo STF reverteu várias decisões anteriores, legalizando o financiamento empresarial de campanhas eleitorais e proibindo o casamento gay e o porte de maconha. A nova jurisprudência do Supremo abriu caminho para o desmanche da Constituição de 1988, desprezada como “obsoleta para o novo milênio”.

A economia voltou a crescer após as sucessivas crises da década anterior. Porém, assim como observado no regime militar, este crescimento ficou nas mãos dos donos do País. Os assalariados assistem à queda do seu poder aquisitivo frente à inflação dos últimos sete anos. Programas sociais como o Bolsa Família perderam relevância devido à redução do valor dos benefícios e ao corte do número de famílias assistidas. O governo utilizou uma crise cambial efêmera para justificar esses cortes, afirmando que “todos devem fazer sacrifícios”, no que foi muito elogiado pela imprensa e setores da classe média.

Nas celebrações do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro, carros alegóricos desfilando pela Esplanada dos Ministérios remetem a símbolos da historiografia oficial: a Inconfidência Mineira, o Grito do Ipiranga, a Proclamação da República, a “Revolução” de 1964. O último carro do desfile é o mais aplaudido e leva o nome “Vem pra Rua!”. Nele, crianças nascidas em 2013, vestidas de verde e amarelo, carregam cartazes contra a corrupção, ladeadas por um gigantesco boneco inflável que simboliza um político em trajes de presidiário. Nos livros de História distribuídos na escola, atribui-se aos “protestos de 2013” o início da derrocada do petismo, considerado “o regime mais corrupto da História”, que tinha por objetivo “implementar o comunismo no Brasil”.

Em alguma rodovia perdida no interior, uma ponte inacabada, tomada pelo mato, aguarda há anos a retomada dos trabalhos. Próxima à cabeceira, uma velha placa de metal anuncia a obra do governo federal, jamais concluída. Nela, ainda é possível ler, mesmo desbotado, um slogan tão fora do tempo e de lugar:

“BRASIL — UM PAÍS DE TODOS”

Nikolas Spagnol de Oliveira é bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mineiro de Formiga, reside atualmente em Brasília. É atleticano.

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