Cartilha do Operário: a educação do trabalhador brasileiro no início do século XX

Patriotismo, família, higiene, o prazer de cumprir sua função: valores necessários ao operário ideal, que é obediente e não se rebela

Letícia de Freitas
revista Capitu
6 min readJun 16, 2015

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Registro de 1908 da Escola Normal Caetano de Campos, atividade com torno. Veja mais no site da escola.

A Cartilha do Operário, escrita por Theodoro de Moraes em 1924 e destinada à alfabetização do trabalhador da crescente indústria brasileira do começo da década de 1920 é importante instrumento de análise do contexto social e da ação do Estado no que se refere à educação no início do século XX.

É necessário que voltemos a um período anterior para que possamos entender o processo que deu luz à elaboração de cartilhas como essa, voltada a adolescentes e adultos operários, utilizada em cursos noturnos destinados à alfabetização do trabalhador e à transmissão de valores morais condizentes ao projeto de país e de homem idealizado por sua época: o progresso republicano e industrial aliado à capacitação do operariado.

A Educação da classe popular brasileira no nascimento da República

No Brasil, em 1882, entrou em vigor a Lei Saraiva (Lei 3029/1881), que restringia o voto do analfabeto — poderiam ser eleitores apenas aqueles que dominassem leitura e escrita. O republicano Rui Barbosa acreditava que a medida estimularia a instrução das classes populares. O que aconteceu, contudo, foi o contrário, o preconceito contra o analfabeto aumentou: trabalhadores, camponeses e ex-escravos permaneceram sem direito ao voto. Como o ensino básico era tarefa atribuída à esfera municipal e estadual, a educação das classes populares estava vinculada a interesses políticos e conveniências.

Com o advento da República em 1889, pouca coisa efetivamente mudou: coronéis latifundiários, que também faziam parte deste regime nascente, ainda detinham força. O interesse deste grupo ainda permanecia na estrutura das relações políticas. O voto, no período, era exercido por poucos, aberto e ligado diretamente ao interesse da elite agrária.

Entender o sistema eleitoral no início da Primeira República é entender o valor atribuído à instrução na sociedade: apenas o alfabetizado tem o direito ao voto, ou seja, está apto a construir — de acordo com o pensamento positivista em vigor na época — um país moderno, democrático, progressista. É necessário educar cívica e moralmente o cidadão neste novo regime e para a construção de um novo país, que neste momento passa de uma economia calcada no espaço rural e no comércio para se tornar urbana e industrializada (da virada do século XX até a década de 1920). Nesta chave, podemos entender a Reforma Educacional de 1892 idealizada por Rangel Pestana e comandada por Caetano de Campos, que alterou a legislação escolar, a Escola Normal, criou a Escola Modelo, reestruturou a instrução pública — com a divisão do ensino em três níveis (primário, secundário e superior) — e criou e regulamentou cursos noturnos dedicados à instrução do operariado.

O início do século XX: mudança de perspectiva

Datada de 1924, a Cartilha visava a formar uma nova classe de operários: a massa camponesa brasileira e também imigrante que veio para a cidade em razão da decadência do café.

Datada de 1924, a Cartilha visava a formar uma nova classe de operários: a massa camponesa brasileira e também imigrante que veio para a cidade em razão da decadência do café.

Durante o final do século XIX até o final da década de 1920, é grande a imigração europeia para o Brasil, fato que influenciou diretamente a mudança nas relações de trabalho no país. Antes, a força trabalhadora era formada por camponeses pobres e por escravos, em um regime patriarcal voltado ao trabalho no campo. Agora, os imigrantes trouxeram outra lógica: os trabalhadores da indústria eram citadinos, acostumados à relação capitalista de trabalho e à grande produtividade. Eles trouxeram e difundiram, igualmente, o pensamento voltado à consciência de classe e os movimentos sindicais. Esta mudança em curso na sociedade brasileira (de um país rural para um país urbano e industrializado) acarreta a especialização de funções e o aparecimento de diferentes classes: dos latifundiários e dos grandes industriais; do proletariado (composto por ex-escravos, por imigrantes e a população pobre em geral); de profissionais liberais e militares (que configuram a classe média).

Na educação, é importante destacar, neste período, a figura do diretor de instrução pública paulista Oscar Thompson, gestor de 1909 a 1911 e de 1917 a 1920. Ele definiu instrumentos que visavam à uniformização do ensino no estado de São Paulo e, dentre outras questões, oficializou o método analítico para o ensino de leitura, assim como propunha o ensino de desenho e caligrafia. No período da primeira gestão de Thompson, Theodoro de Moraes era um de seus inspetores de ensino, sendo um dos que orientavam os professores sobre o uso do método analítico em suas aulas. O método foi sugerido pelo Abade de Randonvilliers em em 1768 e primeiramente exercido por Nicolas Adam em 1767, sendo composto pelo estudo de palavras, sem decompô-las, inicialmente, em sílabas; pela formação de orações de acordo com o tema proposto (depois de apresentada a oração, esta será decomposta em palavras e sílabas; pela decomposição de pequenas histórias em partes menores: orações, expressões, palavras e sílabas). Esta será a diretriz utilizada pela Cartilha do Operário.

O proletariado industrial paulista, em sua maioria imigrantes de origem italiana, era composto por indivíduos já conheciam o sistema de trabalho na indústria e tinham formação sindical. Entre o início do século e a década de 1920 muitas greves ocorreram e os sindicatos (muitos deles de cunho anarquista) se fortaleceram, o que motivou um uma política voltada ao controle dessa classe imigrante rebelde que não mais satisfazia aos desejos dos grandes industriais. Neste momento, chegamos à Cartilha: escrita por Theodoro de Moraes e datada de 1924, ela visava a formar uma nova classe de operários: não mais os imigrantes italianos citadinos, mas a massa camponesa brasileira e também imigrante que veio para a cidade em razão da decadência das lavouras de café. Oscar Thompson acreditava ser possível solucionar os problemas sociais e regenerar a população por meio da educação. Era necessário a esta nova classe compreender o valor do trabalho e da instrução — entendidas, novamente, dentro de um pensamento positivista voltado ao progresso e à ordem, à higiene e à produção.

A Cartilha objetivava o conhecimento prático, imediato, as necessidades do trabalhador de fábrica, os conhecimentos relativos à sua função. Da mesma forma, era necessário educá-lo nos moldes de valores morais como: o patriotismo, a família, a higiene, o valor ao trabalho, o cumprimento de sua função (e o prazer de cumpri-la). Tais valores serviam à formação moral do operário ideal: aquele que cumpre suas funções com prazer e orgulho, é obediente e, principalmente, não se rebela.

A estratégia utilizada pela Cartilha do Operário corresponde ao que foi construído por Caetano de Campos e Oscar Thompson assim como ao ideal republicano condizente com a reforma proposta por Sampaio Dória em 1920. Dória era entusiasta da instrução popular. Por meio de uma população instruída era possível alcançar o sucesso na democracia. Era necessário erradicar o mais rápido possível o analfabetismo, sendo implantada a escola primária obrigatória de dois anos. Fazia-se urgente educar o trabalhador e habilitá-lo profissionalmente para o progresso industrial do país.

A Cartilha do Operário respondeu aos anseios de sua época e é fundamental para o entendimento do caráter da educação e da instrução pública em um momento de transição na história do Brasil. Por meio dela, vislumbra-se o projeto republicano e os anseios de um país que procurava pelo progresso industrial e, para tal, necessitava de um modelo de trabalhador que respondesse a este projeto.

Letícia de Freitas é licenciada em letras e licencianda em pedagogia pela USP e pós-graduada em literatura pela PUC-SP, na qual realizou uma pesquisa sobre O Ateneu, de Raul Pompeia. É professora efetiva de português da Prefeitura Municipal de São Paulo, onde leciona para turmas dos ensinos fundamental e médio, e do Colégio Objetivo, para alunos do médio.

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