Coletivos, redes e ruas: uma realidade latino-americana

Jovens de regiões periféricas, com as próprias mãos e ideias, “autoconstroem” arte, cultura e conhecimento

Aluizio Marino
revista Capitu
4 min readOct 15, 2014

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Na última década, os coletivos culturais consolidaram sua atuação em muitas cidades latino-americanas. Em sua grande maioria são grupos formados por jovens residentes em regiões periféricas, que desenvolvem ações independentes e sem personalidade jurídica. Neste texto apresento de forma sintética uma apresentação deste movimento social, com base nas experiências e vivências como membro da rede de coletivos culturais São Mateus em Movimento e em uma pesquisa de mestrado em andamento que analisa essa dinâmica nas cidades de São Paulo e Bogotá, na Colômbia.

Foto: Toni William

A relação desses coletivos com o território é evidente. Existe uma efervescência de ações que buscam transformar o espaço público, ao estimular a apropriação e o sentido de "direito a cidade" (termo do filósofo francês Henri Lefebvre — saiba mais neste artigo da Fórum). Em São Mateus, exemplos de intervenção de cultura digital são as projeções de videomapping do coletivo Coletores, que projeta elementos diversos na arquitetura periférica, e ações que buscam ressignificar espaços estigmatizados, como a galeria a céu aberto do Grupo OPNI, que transformou a Vila Flávia em um grande “museu” de graffiti.

Frame de um vídeo do coletivo Coletores

Essa relação entre as ações culturais e o território podem ser entendidas como uma demonstração da “cidadania insurgente” (termo do antropólogo estadunidense James Holston — saiba mais nesta entrevista ao Globo), fenômeno presente nas periferias latino-americanas desde seu surgimento. Os avós e pais daqueles que hoje participam destes coletivos chegaram a esses territórios e tiveram de construir suas próprias casas, na maioria das vezes em situações precárias (em grande parte, as famílias eram obrigadas a construir suas casas aos finais de semana, no pouco tempo livre após longas jornadas de trabalho), originando um processo conhecido como “autoconstrução”. Atualmente, estes jovens, em um cenário onde a periferia se consolida, dão continuidade a essa modalidade de cidadania: com as próprias mãos e ideias, “autoconstroem” arte, cultura, conhecimento…

É importante destacar que essas relações são pautadas por uma perspectiva em rede: coletivos e agentes culturais se conectam e estabelecem vínculos de complementaridade e solidariedade. Observo essas redes como um conjunto de processos cotidianos, tão inerentes à prática destes atores (às suas relações no dia a dia) que muitos destes coletivos, mesmo claramente inseridos nessa dinâmica, não se identificam como uma rede instituída.

Esta forma pela qual os coletivos se organizam mostra também um forte respeito à autonomia de cada componente, ou seja, a complementaridade não se configura como interferência.

Para evitar leituras errôneas, elucido que essas ações não podem ser interpretadas como bairrismo ou até mesmo – como muitas das críticas a esses movimentos – forma de segregação. A relação territorial e principalmente, a identidade periférica, são fruto de um processo de resistência a uma segregação sistêmica, que envolve toda a cidade em processos de acumulação e especulação que privilegiam alguns espaços específicos, em detrimento de outros. Ou seja, lutar pela periferia é questionar: quem manda nas cidades?

Entretanto, a ação destes coletivos ainda encontra muitas dificuldades para se desenvolver em sua plenitude. Tais dificuldades são, em sua maioria, de âmbito financeiro, muitos coletivos ainda não têm acesso a recursos.

Mesmo na cidade de São Paulo — conhecida como referência em políticas públicas que apoiam o protagonismo destes grupos, através de programas como o Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) I e II e os Agentes Comunitários de Cultura — é necessário avançar, buscando políticas públicas alternativas que ultrapassem a barreira dos "projetos culturais" (uma grande dificuldade para a juventude periférica). Para tanto, é interessante que sejam elaboradas práticas inovadoras, que estimulem a democracia radical, por exemplo a partir de apoios financeiros diretos e contínuos, na perspectiva da ação cultural, ou da gestão compartilhada de equipamentos culturais

Buscar exemplos e incentivar o intercâmbio de práticas latino-americanas podem ser caminhos para garantir essa inovação. Em Bogotá, por exemplo, existe um programa intitulado "Armemos Parche" (gíria da juventude colombiana que remete a "turma", "galera", "coletivo"), onde são identificadas lideranças juvenis, estes recebem um apoio da prefeitura, através de recursos financeiros (uma espécie de salário), capacitação e estrutura, que visa o aperfeiçoamento de ações previamente desenvolvidas.

Fica claro que os coletivos culturais possuem um grande potencial, são um ator social muito importante na garantia de uma sociedade mais justa. Suas ações culturais são também políticas, e podem contribuir com o desenvolvimento de uma nova governança, pautada por uma perspectiva de “baixo para cima”, (termo utilizado, entre outros autores, pelo historiador brasileiro Célio Turino). Tal contribuição não se limita apenas a pasta da cultura, já que, pelo conhecimento e capacidade de articulação em seus territórios, estes coletivos poderiam contribuir efetivamente, por exemplo, com as práticas de planejamento da cidade de forma integral.

Aluízio Marino é mestrando em gestão e planejamento do território pela Universidade Federal do ABC (UFABC), especialista em gestão de projetos culturais pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela USP. Ativista cultural, é membro do Grupo OPNI (coletivo cultural atuante desde 1997), gestor do Ponto de Cultura São Mateus em Movimento e um dos idealizadores da Incubadora de Projetos e Iniciativas Culturais (IPIC), por meio da qual realiza ações de formação para trabalhadores da cultura.

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