Como é fácil ser forte neste mundo!

O conto ‘Pamonha’ do russo Anton Tchekhov, na tradução de Tatiana Belinky

Chapéu
revista Capitu
3 min readJun 25, 2017

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Dia desses, convoquei ao meu escritório a governante dos meus filhos, Iúlia Vassílievna. Precisava acertar as contas.

— Sente-se, Iúlia Vassílievna, disse-lhe eu. Vamos acertar nossas contas. A senhorita decerto precisa de dinheiro, mas é tão cerimoniosa que não vai tomar a iniciativa… Bem… Nós combinamos que seriam trinta rublos por mês…

— Quarenta rublos…

— Não, trinta… Está marcado aqui comigo… Eu sempre paguei trinta às governantas… Então, a senhorita morou aqui dois meses…

— Dois meses e cinco dias…

— Dois meses exatos… Está marcado aqui comigo. Portanto, a senhorita tem a receber sessenta rublos… Descontando nove domingos… a senhorita não estudava com o Kótia aos domingos, não é mesmo, mas só passeava… e três feriados…

Iúlia Vassílievna ruborizou-se e começou a torcer o lencinho, mas… Nem uma palavra!

— Três feriados… São, portanto, doze rublos fora… Quatro dias Kólia passou doente e não houve aulas… A senhorita só estudou com a Vária… Três dias a senhorita teve dor de dentes, e minha mulher permitiu-lhe não trabalhar depois do almoço… Doze mais sete, dezenove… Descontar… Restam… hum… quarenta e um rublos. Certo?

O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e encheu-se de umidade. Seu queixo começou a tremer. Ela começou a tossir e a se assoar nervosamente, mas… Nem uma palavra!

— No ano novo, a senhorita quebrou uma xícara de chá com o pires… Descontar dois rublos… a xícara vale mais, é um bem de família, mas… que seja! Tanta coisa que a gente perde! Depois, por falta de atenção sua, Kólia subiu numa árvore e rasgou o casaquinho… São menos outros dez… A criada, também por falta de atenção sua, furtou um par de sapatos de Vária. A senhorita tem a obrigação de tomar conta de tudo. Para isso recebe ordenado. De modo que são mais cinco descontados. No dia dez de janeiro, a senhorita tomou de mim dez rublos adiantados.

— Eu não tomei! Sussurrou Iúlia Vassílievna.

— Mas está marcado aqui comigo!

— Então, que seja… Está bem.

— Descontar vinte e sete de quarenta e um restam catorze…

Ambos os olhos encheram-se de lágrimas… Gotinhas de suor surgiram no bonito narizinho pontudo. Pobre mocinha!

— Eu só tomei adiantado uma vez, disse ela com voz trêmula. Pedi à sua senhora três rublos… não tomei mais nada adiantado…

— É mesmo? Veja só, e nem está marcado aqui comigo. Então, são menos três de quatorze, restam onze. Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três… três… três…, um e um. Receba!

E eu lhe entreguei onze rublos… Ela os pegou e, com dedinhos trêmulos, os enfiou no bolso.

— ‘Merci’, sussurrou ela.

Levantei-me de um pulo e comecei a andar pela sala. Estava tomado de raiva.

— E por que esse ‘merci’?! perguntei.

— Pelo dinheiro…

— Mas se o que eu fiz foi esbugá-lha, com os diabos, eu a assaltei. Então, a troco de que esse ‘merci’?

— Em outros empregos não me pagavam de todo…

— Não lhe pagavam? Pois não é de espantar! Eu fiz uma pilhéria consigo, eu lhe dei uma lição cruel… Eu lhe darei os seus oitenta todos! Olhe, estão aqui, dentro do envelope, prontos para lhe serem entregues. Mas como é possível ser tão molenga? Por que não protesta? Por que fica calada? Então é possível viver neste mundo sem arreganhar os dentes? É possível ser tão pamonha?

Ela esboçou um sorriso azedo, e eu li no seu rosto: ‘É possível…’.

Eu lhe pedi desculpas pela cruel lição e entreguei-lhe, para seu grande espanto, os oitenta rublos inteiros. Ela murmurou uns tímidos ‘mercis’ e saiu.

Eu a segui com os olhos e pensei: ‘Como é fácil ser forte neste mundo!’.

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