disco de partida #1
João Roquer, "Cancioneira"

O álbum, materializado no vinil, ainda que não cumpra aquela existência como mercadoria, faz-se poema sem palavra

João Roquer
revista Capitu
5 min readMay 16, 2016

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Do começo

Gravar o primeiro disco, álbum, CD ou trabalho representa em geral duas situações na vida do músico. A primeira é que o disco poderá coincidir com a estreia em quase tudo: palco, rotina de ensaios, contas a pagar, primeiras apresentações, primeiras canções e, claro, com a incrível experiência de compor em grupo. Então, o primeiro disco é como uma aventura e talvez, por isso, seja a hora perfeita para experimentar e cometer todos os “erros” possíveis. Na outra situação, quando o primeiro disco é uma espécie de coroação da carreira de um músico experiente, com “bagagem”, a aventura ainda existe, mas inevitavelmente a tensão pelo êxito é bem maior. Esse disco será uma coletânea e não um debut. Nas duas situações, de todo modo, o disco pode ser visto como um destemor. Explicarei o meu caso.

O Cancioneira, disco (vinil) que acabo de lançar, se encaixa na segunda situação e é a respeito dele que farei alguns comentários. Preciso dizer que não tratarei do seu resultado estético, mas do contexto em que ele está inserido enquanto produto especial. Farei isso tentando responder a uma pergunta que esteve comigo até o momento em que lancei a agulha sob vinil: por que gravar um disco? Essa pergunta, contudo, deve ser precedida por outras duas. Ora, se você é um músico que tem uma trajetória, conseguiu sobreviver em certo circuito, qual o sentido de gravar um disco justamente numa época em que o single ou vídeo no Youtube parecem ser o modo de fazer? Além disso, por que gravar um disco se não conseguirá vendê-lo?

Virada do Jogo

A finalidade da indústria fonográfica era vender discos (78 rpm, LP e CD) e o músico (compositor, letrista, arranjador e intérprete) trabalhava em função desses produtos que lhe dariam, hipoteticamente, algum dinheiro e fama. Na melhor das possibilidades, cada um ganharia a sua parte e todos ficariam contentes. Mas como diz Riobaldo, narrador de Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, “tudo é e não é”. As grandes gravadoras foram ampliando mercado, sempre empenhadas em aumentar seus lucros, tendo como uma de suas principais estratégias depender menos dos músicos. Por outro lado, as condições geradas pelo processo de urbanização e modernização do país possibilitaram o aparecimento de músicos cada vez mais preparados, atuando num verdadeiro ambiente profissional. Ou seja, nos tornamos um país musical.

Esse duplo movimento: concentração do poder de ação das gravadoras e ampliação do acesso, tanto do consumo como da produção atravessou o século e chega aos dias de hoje com uma face inimaginável. Decididamente, o produto disco perdeu sua centralidade na dinâmica do mercado da música. E arrisco dizer que não o suporte físico apenas, mas a própria música “perdeu” o status de mercadoria. Essa mudança que começou a ser percebida nos anos 1980, pode ser mais claramente verificada na incrível reviravolta proporcionada pelo acirramento dessas duas forças (concentração e acesso): o músico paga para produzir.

Dizer o que o produto disco (vinil e CD) perdeu a centralidade é um truísmo, mas dizer que a música perdeu seu status de mercadoria é mais complicado, uma vez que os números recentes da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI na sigla em inglês) dizem que o faturamento está em alta; em 2015, rendeu 15 bi no mundo. Mas acho que ela perde o status a medida que essa reviravolta, a inversão de um modelo de organização da produção, torna-se mais ampla, ou seja, quando a produção não precisa mais estar centralizada pela na grande gravadora, mas é espalhada por todos os cantos, em médias e pequenas produtoras, com músicos independentes ou extremamente dependentes (a grande maioria), em home studios, com atuação enorme de músicos amadores, muitas vezes super especializados. Nessa inversão, produzir não é mais uma questão, nem estética nem de qualidade do material sonoro ou das condições técnicas. Produzir arte em geral virou uma necessidade, uma demanda social e um tanto existencial.

Temos então uma situação em que milhões de músicos em todo o mundo estão produzindo uma infinidade de músicas e ao mesmo tempo bilhões de pessoas passam a ter totais condições para ouvir essas músicas em mais de uma forma. Diante disso, a ação de grupos como Apple, Sony Music, Youtube, Spotify e companhias de telefonia tende a ser a de controlar o acesso a essa produção, desempenhando a função de media. Os 15 bi da IFPI se referem a esse tipo de controle. Por outro lado, existe toda uma produção musical espalhada e funcionando a todo vapor, com milhares de iniciativas, “triagens e misturas”, vendidas em menor escala ou distribuídas de forma gratuita na internet, como um tipo de tática para beliscar o ouvido do navegante, o que tem se constituído numa “revolução” no que tange ao controle da escuta. Portanto, aquilo que pode ser dito como um sacrifício do músico por arcar com todos os custos da produção torna-se uma aventura para o ouvinte interessado.

Grava ou não grava?

Acho que indiretamente respondi a pergunta que me fiz: “Por que gravar um disco?”. Mas para não restar dúvida: ainda que gravar, pelo exposto acima, seja uma opção e não uma precisão e que vender o disco seja um acontecimento raro, minha escolha é pela gravação. Entendo que o lugar ocupado pelo músico tal como discutido sugere que ele saiba e tenha que lidar com esse tipo de dilema: ser a centralidade de um processo e estar às margens dele.

O Cancioneira, portanto, materializado no vinil, ainda que não cumpra aquela existência incontestável como mercadoria, faz-se vivo como poema sem palavra. Explico: a materialização do som por si já se torna um ato de rebeldia, de resistência. E aqui tomo uma ideia de Octavio Paz, para o qual o poema (disco) não contém apenas a poesia (música), mas outras coisas: “Consagra um instante, perpetuamente suscetível de repetir-se em outro instante”. Além do mais, gostamos das coisas que giram, especialmente porque nos faz lembrar que o mundo tem um sentido.

João Roquer é compositor e cantor, autor de Cancioneira (ouça aqui). É também membro do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), da Universidade de São Paulo (USP).

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