Ela Queria Sexo. Apenas.

O rapper Drake conta uma história incrível de desilusão sexista

Guilherme Coelho
revista Capitu
5 min readMar 1, 2016

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“Nos últimos dias, tudo o que eu faço é me perguntar se você está se entregando a alguém (…), fazendo o que lhe ensinei e sendo safada com outra pessoa.”

Eu estava dirigindo e estes versos intensos do trovador canadense pipocaram pelas caixas de som. A canção merecia um pouco mais de atenção.

Drake não é meu rapper preferido, esse seria o Jay-Z. Nem é do mais interessante que há por aí, que seriam Kanye West, Kendrick Lamar e Vince Staples, entre vários outros. Mas ele tem coisas… legais. Sentimentais demais, talvez, como Chris D’Elia faz questão de registrar. Mesmo assim, Drake às vezes é divertido e faz colaborações interessantes com Rihanna.

Aqueles versos são do hit Hotline Bling, que conta uma história incrível de desilusão sexista.

imagem: favim.com

O Narrador conta seu conto após mudar de cidade. Chegam notícias aos seus ouvidos de que sua paixão secreta está diferente. Ela não é mais do jeito que ele a conheceu, presumivelmente, discreto, encoberto, receoso. O que sabemos sobre a Paixão (a moça da narrativa) é pelo que o Narrador fala. A história da Paixão é toda subentendida pelo que ele diz, e vemos que ele está preocupado com tudo, menos com ela.

A Paixão conhecida pelo Narrador, como disse, era discreta, encoberta e receosa. Afinal, ela e o Narrador tinham um relacionamento clandestino. Paixão ligava para o Narrador, tarde da noite, quando precisava do amor dele. Amor é uma palavra que o Narrador drakeano usa. Amor é o que ele acha que sente quando, depois de mudar de cidade, sofre ao saber das transformações pelas quais a Paixão passou, e que lhe doem no peito sexista. Ele era para ela, como dito no linguajar popular, a pica amiga, o fuck buddy. É difícil especular a origem deste recrutamento, porque pode ser a partir de qualquer contexto. Tinder, Facebook, fila de farmácias ou padarias, trânsitos e sinais fechados, enfim, vocês sabem, quaisquer lugares.

Este é um ponto interessante da história deles porque o Narrador se queixará depois, dizendo que “ela agora anda com amigas que ele nunca viu”. Acredito que ele esteja exagerando aqui. Ela ligava para ele, tarde da noite, com objetivos muito claros e, aparentemente, imediatistas. Não parecia haver preâmbulos para ela, ela ligava para ele. Hoje, com tantos recursos de comunicação remota, o que menos fazemos com o celular é justamente discar ligando para alguém. Só quando há algo imediato em jogo é que fazemos isso (“Linda, estou no mercado e o iogurte grego que você pediu não tem. Levo o que no lugar?”). Ela queria sexo, Narrador drakeano. Apenas. É por isso que você não conhece as amigas dela.

Há dois intensificadores da dor do Narrador aí. A transformação pela qual a Paixão passa e o deslocamento ao qual o Narrador é submetido. Tratarei do primeiro depois. Quanto ao segundo, o deslocamento, é o seguinte. Ele deixou a cidade. Claro que deveria haver algum sentimento dele em relação a ela, assim como dela para ele, embora em menor grau. A questão é que ele deixou a cidade. Está num lugar incerto, está sem território, esta ausência de mundo é preenchida com as memórias do velho mundo, onde está a Paixão. Se ele sempre estava disponível para a Paixão em ligações tarde da noite, isso quer dizer que ele não era um cara engajado em relacionamentos sociais onde morava. Não parecia ter relações significativas com quem quer que fosse, porque se o telefone dele tocava, ele tinha a certeza de que era a Paixão. Em suma, só ela ligava pra ele.

O Narrador, em seu lamento solitário e distante, se queixa de muita coisa, quase todas a ver com o que ele esperava dela (o que só é um problema para ele). É um Othelo, enciumado do vigor sexual de sua ex-parceira clandestina

Então, sozinho, desconectado socialmente, ignorante do novo mundo que habita, o Narrador se sente diminuído, e suas pré-definições tradicionais de gênero não o ajudam quando as notícias chegam aos seus ouvidos. Uma aposta minha é que as tais notícias não chegaram a ele. Ele é que chegou a elas, qual um stalker amador, como qualquer usuário de redes sociais.

Agora é que vem o outro intensificador da dor deste nosso personagem drakeano: a Paixão, nossa heroína, passou por uma transformação.

A Paixão o tinha como um suporte muito específico, para momentos muito específicos, com objetivos muito específicos. Ela ligava para ele tarde da noite, um gesto muito eloquente. Talvez passasse a noite inteira, ou o dia inteiro, ou dias antes, criando coragem para fazer esse telefonema. Creio que passasse muito tempo tentando se conter para não ligar, na verdade. Ela conseguia se controlar o suficiente para não usar quaisquer outros meios de comunicação, o que indica um controle superficial muito bom. Mas, tarde da noite, não havia jeito. Sem emojis ou curtidas pontuais, ela partia direto para a ligação telefônica. Não há dúvida de que ela sabia o que queria, mas ainda estava receosa de assumir os próprios desejos.

Podemos aqui perceber uma qualidade do Narrador, talvez a única sobre a qual temos certeza. Ele podia ter ou não sido muita coisa, jamais saberemos, mas disponível ele era. Ela ligava, ele atendia.

Esta segurança que a Paixão tinha em relação ao Narrador deve ter sido mais um fator procrastinador para ela. Enquanto ela ligasse e ele atendesse, ela permaneceria encapsulada. Graças a Deus, ele mudou de cidade. Ele se mudou. Sem ele, ela passou a ver a vida de forma mais natural. A contingência falou bem alto aqui — no caso, o deslocamento do Narrador —mas a transformação da mulher não estava totalmente condicionada a isso. Ela aconteceria de qualquer forma.

O Narrador, em seu lamento solitário e distante, se queixa de muita coisa, quase todas a ver com o que ele esperava dela (o que só é um problema para ele). “Desde que eu deixei a cidade que você…” e desfila uma lista de reclamações. Ela não se veste mais como ele gostava. Ela bebe pra caralho. Ela vai a lugares que ele acha inadequados para ela, logo ela, que só ficava em casa. O Narrador então perde o juízo e fica dias remoendo especulações: se ela está correndo atrás de alguém, se ela, na cama, está sendo tão safada com outros como foi com ele. O Narrador é um Othelo perdido, enciumado do vigor sexual de sua ex-parceira clandestina.

Para ele, ela agora é outra pessoa, não mais aquela “good girl” que sempre ficava em casa, e que ligava para ele desesperada.

Aposto que ela está se curtindo muito mais agora.

Guilherme Pontes é pesquisador, graduado em Letras, especialista em literaturas de língua inglesa. É colunista dos sites Digestivo Cultural e MMA Brasil. Mora em Brasília. Mantém um blog pessoal.

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Guilherme Coelho
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“…it was an extraordinary gift for hope, a romantic readiness such as I have never found in any other person…"