Voltando para a Periferia: Identidades Ressignificadas

O caminho está fechado para as pessoas, mas não para o capital. E, neste cenário, qual o lugar das culturas?

Adriana Bezerra da Silva
revista Capitu
7 min readJul 21, 2016

--

Mural Presencia de América Latina, de Jorge González Camarena (1964/1965) | imagem: Alvaro, no flickr

Em meados dos anos 1990, publicações da área de estudos culturais estadunidenses, com autores de diversas nacionalidades da dita América Latina, apontavam para a questão da descentralização cultural e da desconstrução do conceito centro-periferia ao se tratar de identidades culturais. A questão da identidade latino-americana, assunto exaustivamente visitado, pareceu chegar a um esgotamento. Uma vez definida a identidade para, a partir dos pós-modernos, apontar sua desconstrução, pareceu melhor deixar o assunto de lado. Isso foi o que conclui após cinco anos de graduação em letras e após outros três anos em um curso de mestrado em literatura hispano-americana. Contudo, agora a questão volta a me perseguir e a intenção de desenvolver uma pesquisa na área não me parece mais algo que apenas rechearia um campo já exaurido. Pensar em identidade latino-americana, hoje, me parece incursionar sobre um tema que acompanha os renováveis artifícios do capitalismo.

Como latino-americana, como um indivíduo que, em sua trajetória pessoal, inevitavelmente, se depara com o processo de formação identitária, não me vejo livre desse tema e me parece que ele nunca deixará de levantar questionamentos. Um dos motivos é que, aceitando a questão das identidades fluídas posta por pós-modernistas, penso que essa fluidez muito depende do momento em que vivemos. Se, no começo do século XX, o cenário em que se vivia permitia o levante de uma identidade latino-americana frente aos países do “centro” e, já no final do mesmo século, se reivindicava o apagamento dessas fronteiras e a livre transição de culturas, hoje, nas primeiras décadas do século XXI, vivemos uma tentativa de reforçar aquelas fronteiras, pelos países que requerem novamente o título de centro do mundo. Os movimentos conservadores a invadir a Europa e os Estados Unidos apontam que nossa identidade, mais uma vez, pede alguma reflexão. Após nos diluirmos pelo mundo, e agora diferenciados e expelidos, qual identidade nos resta?

As fronteiras recrudescem. As culturas, uma vez que se esparramaram pelo mundo, não podem mais retroceder. O que será do escritor turco que se inspirou no mundo inglês? O que será do leitor francês que mergulha em livros turcos?

Minha reflexão sobre a identidade latino-americana, a princípio, partia de um pressuposto bastante intuitivo — como grande parte da discussão que levanto aqui, completamente passível de refutação devido ao seu pouco rigor acadêmico. Para mim, as culturas fluídas, liberadas de seus cárceres centro-periferia, poderiam circular e ser apropriadas por qualquer indivíduo, independentemente da cor da capa de seu passaporte. Pensava que a teoria da recepção, que se detém em um corpus regional bastante delimitado e a partir dele tece particularidades (por exemplo, a teoria da recepção dos livros do mexicano Juan Rulfo na Alemanha), teria então que se compor de termos mais generalistas uma vez que “literatura mexicana” e “leitor alemão” já não diriam nada: no México, poder-se-ia, segundo essa minha intuição, produzir literatura como a que se rotula como literatura oriental ; e o leitor da Alemanha poderia ter em sua biblioteca apenas livros publicados em Angola e com eles compor sua bagagem intelectual. Essa visão, bastante idealista, confesso, me parecia possível de ser defendida nos dias atuais em que a internet, inimiga de tantas horas, em termos de disseminação de cultura, poderia ser a grande aliada.

Justamente quando pensava em transformar essa intuição em um projeto acadêmico mais consistente comecei a perceber um movimento que parece retrógrado, mas que acredito seja ainda mais complexo do que um simples retorno ao cenário anterior àquele que caracterizei como de culturas fluidas. A crise nos países do Velho Mundo e nos Estados Unidos, ou do capitalismo, talvez possa afirmar, impulsiona uma crescente xenofobia que nunca deixou de existir, mas que agora se manifesta de maneira ainda mais grosseira e, novamente, institucionalizada. As fronteiras recrudescem. Porém, as culturas, uma vez que se esparramaram pelos quatro cantos do mundo, não podem mais retroceder. O que será então do escritor turco que sempre se inspirou no mundo inglês? O que será do leitor francês que mergulha em livros turcos?

(Claro que quando penso nesses meus vagos pressupostos, penso o quanto eles carecem de objetividade: existirão esse escritor e esse leitor? A visão que eles têm da cultura de que se apropriam é a mesma que um “nativo” tem da sua própria cultura? O fato de a apropriação, por exemplo, desenhar a rota México-Alemanha difere do caminho oposto, Alemanha-México — se pensamos esses nomes de Estados como circunferências que “privilegiam” a manifestação de uma determinada manifestação cultural? Acredito que quem incursiona pelas ciências sociais esteja mais habituado a lidar com esses problemas. Minha formação nas letras me dá a facilidade para imaginar e trabalhar em cima desse cenário imaginário).

Me perguntava o sentido de me afirmar brasileira, latino-americana, ascendente de indígenas. Me era mais fácil dizer que era bergmaniana. E ser bergmaniana no Brasil não me tirava o fato de ser latino-americana, me inseria num ambiente de culturas “apropriáveis”. Hoje, me pergunto se ainda é possível se apropriar das culturas fluídas

Ainda vagando por uma área que desconheço, me arrisco a afirmar que o problema entre fechamento de fronteiras e fluidez de culturas advém da contradição da primeira com o ininterrupto fluxo do capital. O cenário, então, seria o seguinte: enquanto voltam a se erguer as pontes levadiças que impedem o acesso aos castelos do primeiro mundo — e eis que ele volta a ser o primeiro mundo — o capital que se expandiu com sucesso por todo o globo continua a transitar sem empecilhos e em todas as direções. O caminho está fechado para as pessoas, mas não para o capital. E, nesse cenário, qual o lugar das culturas? É isso que gostaria de começar a pensar.

O que chamo de cultura aqui também é bastante dúbio. Primeiramente, devido à minha formação, penso na literatura, algo que comporia o amálgama do que entendo por cultura (tantos outros já se debruçaram vertiginosamente sobre isso, estou aqui na superfície do conceito, me aproprio timidamente dele, não me julguem, é assim que se começa a adentrar as estradas do pensamento). Penso, então, naqueles cenários que pincelei acima, do escritor mexicano, do leitor alemão, do escritor turco, do leitor francês, do produtor de cultura, do receptor de cultura e dos diversos cruzamentos possíveis entre países fornecedores e países consumidores (sem pensar no consumo através necessariamente de um acesso material, penso no acesso à cultura por meio da internet, por meio de downloads de materiais gratuitos e, até mesmo, “pirateados”). E, da literatura, parto para o cinema, que sempre fez parte da minha vida e da minha formação pessoal. Lembro quando tinha uns dezesseis, dezessete anos e tinha acesso a filmes do Ingmar Bergman pela internet (não direi se de modo legal ou não, avaliem vocês como uma menina de classe média baixa poderia ter acesso a esses filmes). Penso em como, nesse momento crucial da vida de um indivíduo, em que tudo contribui de maneira essencial para a sua formação, os filmes Gritos e Sussurros, Fanny e Alexander e Persona atuaram de maneira direta nas minhas futuras escolhas, no meu gosto por certo tipo de estética e até mesmo nos meus questionamentos em relação à religião e à família (estando eu no Brasil, vinda de uma família humilde). Há universalismo no cinema bergmaniano, mas há também aquela estética regional que se desprende de suas fronteiras suecas e que habitou o meu quarto de adolescente.

Com esta formação, sempre me perguntava o sentido de me afirmar brasileira, latino-americana, ascendente de indígenas. Era mais fácil dizer que era bergmaniana, o que não é sinônimo de ser sueca, mas que também o é. E ser bergmaniana no Brasil não me tirava o fato de ser latino-americana, apenas me inseria num ambiente de culturas “apropriáveis”. Nas nuvens da internet essas culturas planam; a partir de um clique se inicia a apropriação (esta palavra me faz esbarrar na questão, muito presente nos debates de esquerda, de outro tipo de apropriação, aquela pelos grupos dominantes das culturas oprimidas. Seria outro assunto, deveria submergir em outros nuances que me são ainda mais distantes do que estes que exponho aqui, então, deixarei esta brecha problemática, dentre tantas outras abertas neste texto). Hoje, em meio a minha primeira viagem à Europa, me pergunto se ainda é possível se apropriar das culturas fluídas, se o caminhão terrorista em Nice, se os militares golpistas em Istambul, se os xenófobos do Treptower Park, em Berlim (onde encontrei adesivos antimulçumanos nos bancos do parque) surgiram para desmontar de vez aquele ideal que um dia me pareceu possível. Esses entraves sempre estiveram por aqui, já afirmei lá em cima, mas agora são uma seta para um novo rumo que vai contra o ideal da fluidez.

A partir disso começo a me questionar se, na verdade, a identidade latino-americana que carrego, que acreditava permeada de tantas coisas do mundo, de música inglesa, de cinema sueco, de literatura mexicana, se essas culturas são, sim, a mercadoria daquele capital invisível, travestido nas nuvens da internet, que atravessa fronteiras e que me enganou o tempo todo. A fluidez do capital e de mercadorias me fez acreditar que através delas eu também fluía, enquanto que a prisão da periferia do mundo apenas escondia suas grades — agora, novamente, mais evidentes.

Adriana Silva é mestre em literatura hispano-americana pela USP, com estância na Universidad Nacional Autónoma de México. Escreve.

Gostou do texto? Ajude a espalhá-lo por aí clicando em ‘recomendar’ aqui embaixo. E não deixe de conferir a edição atual completa da Capitu ;)

--

--

Adriana Bezerra da Silva
revista Capitu

Pesquisadora de Literatura (USP/UNAM/Dickinson College). Membra do Coletivo Infâmia. "Todos somos perigosos" (Hecatombe, 2021). Tradutora, revisora, professora.