Fome, Veracidade, Cinema

Como ver a cidade sem que esse ver não seja, como em um documentário tradicional, cruel

Gabriel Philipson
revista Capitu
12 min readSep 8, 2016

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“Este homem escolheu estar nessa cidade. Quer estar na cidade, ser a cidade, não mais somente ver a cidade, está em luta pela cidade”

O novo longa de Cristiano Burlan chama-se Fome (2016), mas poderia se chamar veracidade, palavra que aparece pixada em branco no muro de acesso de um viaduto logo na primeira cena, ao fundo do homem que transita pela cidade carregando um carrinho de supermercado. Não porque fome não dê conta do sobre o que o filme gostaria de tratar, mas sim porque o espectro significativo e conceitual de veracidade parece recobrir as questões nas quais a obra se ergue.

Este filme é atual, feito segundo a proposta de todos as obras do diretor: baixo orçamento; uma equipe pequena que segue menos a divisão de trabalho fordista industrial do cinema convencional e mais a cooperação e fraternidade; como nos outros filmes, Burlan — do ótimo Mataram meu irmão (2013) — evita a presença de atores propriamente ditos, preferindo acertadamente a atuação de pessoas comuns em busca de certa veracidade da representação do ser humano; a ficção vai sendo construída a partir de situações quase documentais, sem um roteiro prévio que defina o que se deve fazer ou falar; o preto e o branco, que Burlan vem aperfeiçoando desde Sinfonia de um homem só (2012) funciona como um modo de resolver problemas estéticos e da complicada luz brasileira.

Nessa proposta, Fome explora e aprofunda o motivo do homem que vive — mora, dorme e caminha — em situação de rua na cidade de São Paulo. Levando seu carrinho de supermercado pela metrópole, alternam-se cenas do cotidiano pacato desse homem, cenas que a cidade — o espaço ao fundo — ganha projeção, se tornando um personagem em diálogo com esse homem; e, em oposição a essas cenas pacatas, encontros furtivos e casuais com outras pessoas: um outro morador de rua; um casal elegante e esnobe que, saindo de um restaurante chique e pisando no homem, quer lhe oferecer a sobra do jantar; uma estudante universitária; um seu ex-aluno (que nesse momento descobrimos ser professor) que lhe tem profunda admiração e profundo ódio; um cantor crossdresser no Minhocão à noite. A trama é fragmentariamente intercalada com a estudante entrevistando outros moradores de rua “reais”, em uma ficcionalização do documentário. Fome parece estar preocupado em refletir sobre essa relação promíscua entre forma ficcional e documental no cinema. Daí que talvez o encontro mais explosivo do filme tenha sido o com o pixo veracidade.

“Fome é sobre a cidade de São Paulo, acontecimentos do seu cotidiano que não são vistos e precisam ser desvelados (mas não desvistos), mas trata do ver em dois sentidos.
Primeiro, a partir do problema do ver enquanto documentação, tematizando isso com a personagem da “estudante”. Segundo, pelos espaços vazios do termo ver_a_cidade.”

A fome é o mote pelo qual algumas situações do roteiro se movem, talvez a principal delas no final: o homem do carrinho de supermercado aceita o convite para jantar na casa da estudante universitária, após ela o encontrar na porta da rua sem saída onde mora mexendo no lixo em busca do que comer. Mas não o vemos comendo na casa dela; não há nada como a parábola do faminto do Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, nenhuma exploração nem que seja irônica ou corrosiva da fome neste momento. Talvez de forma proposital, isso fica em segundo plano, pois o que vemos mesmo é o faminto tomando banho, em uma cena ainda menos significativa do que a de outro filme de Burlan, Sinfonia de um homem só, quando o filho que retorna ao lar se banha no fundo e no primeiro plano a mãe assiste à tevê, prestando mais atenção à presença de sua cria do que às imagens anestésicas do tubo de tornar imagens presentes.

Em contrapartida, o modo como "veracidade" aparece no início do longa quase como uma epígrafe ou título que deveria ter sido sugere o caráter medular dos múltiplos significados do termo, tão central para um cinema que explora as fronteiras entre formas ficcional e documental, como o faz este longa de Burlan. (Seria isso uma espécie de reedição do procedimento adotado por Clarice Lispector para nomear o seu A culpa é minha ou A hora da estrela ou Ela que se arranje ou O direito ao grito…?) Ao ver a cidade, a câmera nota ao fundo o pixo dessa palavra que brota dos cantos da cidade. Percebe-se que não é um notar qualquer, porque nesse local está pixada em fonte de tamanho extragrande. Ao mesmo tempo, por estar no início da obra, sugere a chave com que é possível compreendê-la (pode ser que se fosse título fosse considerado clichê, e aí preferiram Fome?).

“A aluna fala da crueldade do sujeito que vai em busca do Outro com o intuito narcisista de se autoproclamar capaz de se sensibilizar pelo Outro, mas que ao mesmo tempo não faz nada pelo Outro, a não ser que isso de algum modo faça com que os outros o reconheçam como alguém sensível, preocupado com causas sociais e com o Outro”

Ver a cidade: olhar para um senhor que vive em situação de rua. Quem vê é o aparato técnico da câmera de um diretor de cinema de baixo orçamento em busca de imagens que aparatos técnicos manobrados por diretores de outras instituições (tevê, universidade, ricos hipócritas, etc.) não enxergam — essa parece ser uma tese ou ponto de partida de Fome. Então a cidade que se vê não é qualquer cidade, mas uma bem específica, aquela que não é vista, e que só um determinado ver é capaz de desvelar. Há algo já anterior a esse ver que vê a cidade que poderíamos chamar genericamente de sua disposição a ver a cidade que a cidade mesma não (se) vê.

E essa cidade que não é vista, mas que o longa desvela e vela, é corporificada e materializada pelo homem do carrinho de supermercado, espécie de mito que vagamundeia nos cartões postais da cidade e outras veredas de São Paulo empurrando seu carrinho, e fazendo soar nesse ato os seus arames. Nessa sinfonia de um homem só, os ruídos de seu instrumento de vagamundear competem quixotescamente com os ruídos da civilização. Sim, porque este homem, como outros seus colegas — fica evidenciado em um diálogo com um deles — escolheu estar nessa cidade e não ir para o campo, e não quer uma fuga da urbe e a aceitação de uma vida pacata. Não, ele quer estar na cidade, ser a cidade, não mais somente ver a cidade, ele está em luta pela cidade e os ruídos de seu veículo dão mostras disto.

“Atuando enquanto mendigo corporificação da cidade, ele defende o abandono da teoria, da universidade — todo esse blábláblá –, e elogia o viver nas ruas, na vida. Há entre teoria e rua, no entanto, as câmeras, a ficção do olhar”

É que o homem do carrinho de supermercados não vai a supermercados: talvez para ele sejam gigantes contra quem luta com suas próprias armas, como Quixote enfrenta os moinhos. Ele também não carrega consigo uma câmera, um gravador ou aparatos equivalentes: como o personagem espanhol, abandonou livros e sua vida tranquila (o cargo de professor da universidade, mais especificamente o curso superior de audiovisual da Universidade de São Paulo) para abandonar a falsidade da ficção (a teoria) e desembocar na realidade do real. Acreditando na dialética entre teoria e prática, achou que seria capaz de transpassar o abismo entre essas duas margens ao dar esse salto que, no entanto, o manteve em suas próprias convicções: ao encontrar o homem que continua na universidade e que igualmente o admira e o odeia — o seu eu de ontem –, este insiste em procurar o mesmo do professor quixotesco no homem que empurra um carrinho de supermercado, e o encontra no ego deste homem, no ego enquanto as suas convicções, enquanto seu jeito de se dizer certo justamente ao estar errado (como outra figura quixotesca, Hegel, que faz da dialética um aparato lógico que o dá razão, estando sem razão). Ele continua preso não somente à cidade, mas principalmente à veracidade. Se sua teoria sobre o cinema brasileiro (sobre os veres da cidade Brasil) estava certa, se ela é verossímil, é preciso que o “v” de ver seja também “s”: é preciso ser a cidade — que, no entanto, só se é na ficção.

Explico: o homem que leva um carrinho de supermercado é também o mendigo ou Joaquim (corruptela de Jean-Claude [Bernadet]) heterônimo de si. É na frente das câmeras, atuando enquanto mendigo corporificação da cidade, que ele defende o abandono da teoria, da universidade — no fundo: todo esse blábláblá inútil que não muda nada –, e elogia o viver nas ruas, na vida. Há entre teoria e rua, no entanto, as câmeras, a ficção do olhar.

Ou ainda outra situação. A aluna na universidade diz ao professor que lhe pediu para colher depoimentos de pessoas em situação de rua que o único que estava satisfeito com viver na rua era justamente o homem que empurrava carrinhos. Ora, mas ele é também o único ali a (se) representar (em um outro que ele mesmo também é). E nesse dizer para as câmeras, para isso que se interpõe à sua dialética, podemos nos deparar talvez com a veracidade em toda sua latência problemática e contraditória enquanto a adequação entre ficção e realidade.

Sente-se falta da cidade para além do centro e da Zona Oeste. Onde está a Zona Norte, a Zona Leste, a Zona Sul? Onde a periferia, onde os verdes, onde a cidade para além de seus cartões postais e dos seus clichês?

Nessa mesma cena da estudante que expõe seu trabalho ao professor na sala de aula, ouvimos dela também outras histórias. Sua fala procura expor o que ela chama de crueldade do sujeito que vai em busca do Outro (no caso de Fome, o Outro poderia ser interpretado como a outra cidade, a cidade que a cidade não vê) com o intuito narcisista de se autoproclamar — digamos assim — o diferentão capaz de se sensibilizar pelo Outro, mas que ao mesmo tempo não faz nada pelo Outro, a não ser que isso de algum modo faça com que os outros (que ele vê e por quem quer ser visto) o reconheçam como alguém sensível, preocupado com causas sociais e com o Outro.

Pode-se apontar tanto o caráter moralista de fundo cristão, quanto o ingênuo dessa crítica contra o egoísmo do sujeito que documenta e que imagina que algum professor universitário (presume-se de humanas, e, mais especificamente de antropologia, ou o que mais?) pedisse que seus alunos colhessem os depoimentos de pessoas em situação de rua (os Outros) com o intuito de fazer com que eles fossem capaz de ver a (Outra) cidade e se sensibilizassem com ela (talvez no Ensino Médio essa situação fosse mais verossímil). Os problemas, intuitos e atuares da antropologia atuais são bem diversos desse quase paroquial. Um exemplo é a forte presença dos estudos de gênero, sem os quais talvez o filme não se sensibilizasse a inserir um personagem (de si mesmo) crossdresser: funcionaria esse personagem como um modo do diretor se autoproclamar narcisisticamente diferentão, capaz de se sensibilizar, de olhar o Outro?

Mas talvez mais produtivo seria sugerir que, mascarado em uma ideologia antiuniversitária (como se todas a escola superior de audiovisual fosse a mesma coisa que o programa de antropologia ou de história, como se na universidade só houvesse ricos, isto é, não Outros, como se a universidade não fosse capaz de, refletindo, criticar a si mesma, como se não fosse possível, em suma, haver na própria universidade uma disputa pelo acesso e pela permanência da cidade que não é vista, um lugar de crítica de si mesma enquanto instituição), surge aí o problema metalinguístico e central do cinema ficcional-documental da veracidade: como ver a cidade sem que esse ver não seja, como em um documentário tradicional, cruel, ou seja, sem que ele esgote o documentado, sem que este (a [Outra] cidade) não se torne mero objeto do meu aparato de gravar realidades (câmera)?

Não podemos encontrar certa presença do didático, do intelectual que se acha (como todo mundo) mais intelectual do que os outros? Que quer apontar os dedos e dizer: olha como eu vejo a cidade melhor do que vocês!

O novo longa de Burlan poderia se chamar veracidade e não fome porque ele é sobretudo essa própria questão quando desvestida do preconceito anti-intelectual. Ele é a questão e não a resposta a ela. Isso significa dizer que Fome é sobretudo um filme sobre o cinema. E isso de diversos modos: entrepõe-se à dialética do ver e da cidade ao longo do filme diversas referências à história do cinema e o branco e preto conscientemente escolhido por uma questão esteticista (a saber, a de deixar o filme mais belo, afinal a cidade é feia, essa a sugestão de outro crítico do longa). Fome é sobre a cidade de São Paulo, acontecimentos do seu cotidiano que não são vistos e precisam ser desvelados (mas não desvistos), mas trata do ver em dois sentidos.

Primeiro, a partir do problema do ver enquanto documentação, tematizando isso com a personagem da “estudante”.

Segundo, pelos espaços vazios do termo ver_a_cidade. Dito em outras palavras, pelo modo mais inconsciente e como um a partir do que se fala; como a câmera que nunca aparece, como o branco e preto; como a estrutura da montagem baseada em contrastes duais (dialética) entre branco e preto, entre tensão e calmaria, como a Outra cidade que na verdade é apenas uma das Outras (no plural: sente-se falta da cidade para além do centro e da Zona Oeste. Onde está a Zona Norte, a Zona Leste, a Zona Sul? Onde a periferia, onde as comunidades, onde os verdes, onde a cidade para além de seus cartões postais e dos seus clichês?); como a música clássica da trilha sonora e a referência à cultura francesa e grega antiga e à história do cinema.

E a questão aqui é: por que não aparece? Por que não questionar o alto valor do esteticismo (o branco e preto, a “boa” montagem) e da cultura grega? Não há aí algo que vale a pena apontar o dedo? Por que aceitar que a Outra cidade que o olhar de Fome quer nos fazer ver seja o centro e a Zona Oeste, seja um Minhocão em vias de se tornar parque e valorizar o em torno de Santa Cecília — o que está bem, se houvesse a presença de Outras cidades, se essa Outra cidade retratada não funcionasse mais como uma mitologização do artista (o encontro no minhocão vale por introduzir o tema atual dos gêneros, mas precisa ser criticado desde esta perspectiva) do que como uma desconstrução da cidade, do olhar, e do próprio artista?

“O motivo do homem que leva um carrinho de supermercados pela cidade foi interpretado em Fome segundo o signo da veracidade, o que acabou fazendo do personagem Joachim não um mendigo (como a ficha técnica do filme o nomeia), mas sim um neocínico contemporâneo paulistano”

Ou seja, espelhando Joaquim, o filme está preso à sua própria concepção de veracidade, e isto é talvez o mais trágico de Fome: com o esteticismo, o preto e branco, as referências à cultura dita erudita, não podemos encontrar certa presença do didático, do intelectual que se acha (como todo mundo) mais intelectual do que os outros, que quer apontar os dedos para e dizer: olha como eu vejo a cidade melhor do que vocês, massa! Veja, veja como se vê a cidade de modo autêntico, veja como se faz do feio, belo! E a crítica ressentida ao intelectualismo, à universidade, ocorre porque ela não ensina a transformar tudo em ouro: não em todos, mas nos piores momentos do filme, podemos encontrar a vontade de ensinar o olhar como uma mostra narcísica de superioridade.

Nesse sentido que podemos dizer que, quanto às referências à cultura assim dita erudita, o filme flerta com o kitsch. Isso no sentido de que esses elementos aparecem mais para contribuir com o tom esteticista do que como elementos composicionais internos, problematizados enquanto cultura: parece haver certa reverência a essa cultura que faz com que esses elementos não somem ao filme, mas formem um ar de seriedade e profundidade decorativos.

Invocando o filósofo Jacques Derrida, Joachim ao encontrar o aluno que se tornou “escritor de teses” insiste que desconstruir não é negar, mas em nenhum momento essa cultura é descontruída, pelo contrário, ela é referenciada como aquilo que Fome tem e, a cultura de massas, não. Os piores momentos do longa ocorrem quando esse andar na contramão é idealizado, é posto como o andar na contramão o mais autêntico.

O motivo do homem que leva um carrinho de supermercados pela cidade foi interpretado em Fome segundo o signo da veracidade, o que acabou fazendo do personagem Joachim não um mendigo (como a ficha técnica do filme o nomeia), mas sim um neocínico contemporâneo paulistano. Em sua tara desconstrutivista e crítica ao poder das instituições, ele é o único mendigo com que a Estudante dialoga que teve o poder de decidir e querer ser mendigo frente à possibilidade de não o sê-lo. Ele o faz porque é nesse lugar cotidiano, que precisa ser descontruído, no qual todos caminham, mas não veem o que deveria ser visto, que não ele, mas a câmera que o acompanha vai encontrar a veracidade do ver a cidade. E ela só pode ver a cidade em sua veracidade através da lente a mais potente: a (de Joachim feito) ficção.

Então fome pode ser, como uma crítica do longa diz, “fome de sentidos”, ou seja, uma vontade de ver (e ouvir, e sentir pelo corpo) a cidade. Nesse sentido, poderia ser vista como um sinônimo de veracidade, como a vontade de ligação da ponte entre ficção e realidade, teoria e prática, a cidade e suas Outras, como a vontade não de potência, mas de veracidade, vontade de cinema.

Gabriel Philipson é tradutor, graduado e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo, e mestrando em teoria literária e literatura comparada pela mesma instituição. Seu interesse reside na relação entre realidade e fantasia em obras de caráter ficcional.

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