Gol de Quem?

Mais aguda que a crise do PT
é a nossa crise civilizatória

N. Oliveira
revista Capitu
3 min readMar 12, 2015

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Voltando para casa no domingo à noite, escuto das janelas dos apartamentos um alarido difícil de identificar. O barulho ganha força com gritos, vuvuzelas, apitos e até rojões. Pelas ruas, carros buzinam. Por um momento, pensei se tratar de algum jogo de futebol, mas, ao ligar o rádio do carro, a ficha cai: era o pronunciamento da presidenta da República. Já disseram que o brasileiro dedica às suas inclinações políticas a mesma paixão que dedica ao futebol. Se for verdade, é uma péssima notícia, já que não temos nos relacionando de forma saudável com nosso futebol…

Décadas atrás, o estádio de futebol era o espaço popular por excelência. Os radialistas mais antigos ainda chamam o gol de “alegria do povo”. Acho que foi Nelson Rodrigues quem disse: “O torcedor vai ao estádio comemorar a vitória que não tem em sua vida”. Claro, a rivalidade sempre esteve ali, porém parceia mais importante se alegrar com a vitória do seu time que tripudiar da derrota do adversário. Hoje, quando sai um gol, escutamos das janelas mais ofensas ao adversário (o terrível “chupa” e equivalências) do que gritos de celebração. Um amigo me confessou que não consegue achar graça quando a Seleção Brasileira vence um jogo internacional, pois o torcedor adversário está lá no país dele, a milhares de quilômetros do seu “chupa!”. A segunda-feira é o dia de fazer piadinhas com o colega de trabalho, nem sempre saudáveis, às vezes forçando a barra da tolerância.

Voltemos na máquina do tempo para 2005. Meu time ia de mal a pior, na zona do rebaixamento, mas alguns amigos e parentes me “zuavam” por outras razões: “E o seu PT, hein?”, vinham me perguntar com um sorrisinho no canto da boca. Havia estourado o escândalo do Mensalão, o PT parecia se desfacelar a cada denúncia — logo ele, que sempre havia ostentado uma “superioridade moral” contra os outros partidos. Dirceu, Genoíno e o tesoureiro Delúbio enrolados. Para muitos, o Mensalão provava que o PT não era melhor que os outros, e que todos os políticos eram, afinal, “farinha do mesmo saco”. No auge do escândalo, a popularidade do presidente — apontado por setores da imprensa como o “chefe da quadrilha” — foi à lona e suas chances de reeleição pareciam mínimas. O PT estava sendo goleado, e muitos aproveitavam a oportunidade para tripudiar seus “torcedores”, aquela turma chata que tanto falava em justiça social, distribuição de renda, combate à fome e ética na política (rá! rá!). Pouco importava quem estava saindo ganhando daquele massacre ou se o autor dos gols era um tal de Roberto Jefferson.

Passaram-se quase dez anos. Meu time deu a volta por cima, depois de passar pela segunda divisão, e conquistou as Américas. O PT venceu outras três eleições presidenciais e segue no poder, mas enfrenta uma nova crise, talvez a mais aguda de todas. Só que mais aguda que a crise do PT é a nossa crise civilizatória. Ninguém mais me dá tapinha nas costas com aquele sorrisinho cínico perguntando “e o seu PT?”. Não há mais espaço para isso. Decaímos ao nível de intolerância das torcidas organizadas de futebol, separadas com cordão de isolamento para não se trucidarem. Como nas arquibancadas, cada torcida se isola em seu lado e grita impropérios em direção ao adversário — não só durante os 90 minutos das eleições, mas também depois do apito do juiz. Nas redes sociais, impera a histeria, a boataria, o ódio de classe mal disfarçado. As redes nos afastam mais do que nos unem. O debate político parece impossível, um lado não consegue mais dialogar com o outro.

Tratamos a política como tratamos o futebol. Em 2002 fomos pentacampeões do mundo nos gramados e elegemos pela primeira vez um presidente de esquerda. Desde então, desaprendemos um pouco a cada dia, na política e no futebol. Pensando bem, a algazarra que eu ouvi na noite de domingo era mesmo um gol: um gol contra, o sétimo dos 7 a 1 que estamos levando da Civilidade.

Nikolas Spagnol de Oliveira é bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mineiro de Formiga, reside atualmente em Brasília. É atleticano.

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