livro de partida #10

Eugênio Martins Júnior, “Blues — The Backseat Music”

Backseat, ao pé da letra, “que viaja no banco de trás”. Pois o blues sempre esteve ali, mas nunca em primeiro plano

Chapéu
revista Capitu

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O blues não é uma opção. É uma sina. Um destino. Uma maldição perpetrada na encruzilhada de outras vidas. Há outra explicação plausível para ligar um jovem santista da classe operária aos músicos negros do Mississippi?

Conheci Buddy Guy, Muddy Waters, Junior Wells, Howlin’ Wolf, Ray Charles, John Lee Hooker, B.B. King na adolescência. Nunca mais parei de ouvir seus discos e, dos vivos, acompanhar seus passos. Trabalhei com alguns e estive na presença de outros tantos. Ouvi-os tocar e fui responsável por alguns desses shows.

A ideia de escrever Blues — The Backseat Music nasceu no começo dos anos 1990, quando, ainda colecionador de discos e aspirante à jornalista, sonhava em dedicar “todo” um livro ao estilo musical que é minha paixão.

Nessa época a bibliografia nacional sobre o assunto contava com um par de coletâneas que não estão mais em catálogo e na época não faziam jus à importância da música centenária vinda dos cafundós do Mississippi.

A obra começou a tomar forma quando passei a viajar com os artistas e perceber que podia extrair informações exclusivas deles.

O “formato entrevista” foi o escolhido. A intenção era colocar a história na boca dos protagonistas. Quem melhor do que os próprios músicos para contar suas alegrias e desventuras?

A expressão backseat pode ser traduzida como uma coisa que está em segundo plano ou, ao pé da letra, “que viaja no banco de trás”.

Foi Rod Piazza, gaitista consagrado da Califórnia, quem usou essa expressão e me deu a ideia do título. Ele não estava querendo depreciar o blues, mas oferecer uma resposta razoável à minha pergunta sobre a importância desse estilo musical para a cultura americana. Como se quisesse dizer que o blues sempre esteve ali, mas nunca em primeiro plano. Ou, pelo menos, que nunca lhe deram a importância devida.

Se hoje, após cem anos de seu nascimento nos Estados Unidos, o blues carrega todo um significado histórico, não podemos esquecer que quando ele nasceu não passava de música de escravos e, depois, música ordinária, feita para embalar as festas dos negros nas juke joints à beira do rio Mississippi. Com o tempo chegou até a ganhar o infame rótulo de “race music”.

O blues literalmente nasceu às margens — do rio Mississippi e da própria sociedade americana. Após todo um processo evolutivo, tanto em termos artísticos, quanto tecnológicos, subdividiu-se e ganhou as diversas caras que conhecemos hoje, a de música pra namorar, dançar, ouvir nos fones de ouvido e nas viagens de carro — quem curte blues gosta de chamar essas canções de “estradeiras”.

Para cada momento da vida há um blues correspondente, os slows de Chicago, os metais de Memphis, o jump blues pulsante da costa oeste e mistura dançante de New Orleans.

No Brasil, o blues não nasceu nas fazendas de algodão das cidades ribeirinhas do Mississippi e nem pelas mãos de negros e pobres. Nasceu nas duas maiores cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, pelas mãos de jovens brancos e roqueiros da classe média que cresceram não só ouvindo Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, mas também BB King, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Chuck Berry e Bo Diddley.

Por isso a maioria dos trabalhos lançados no Brasil tem a abordagem blues rock. Somente dos anos 2000 em diante a busca por algumas tradições se tornou mais forte por aqui. Ainda bem. Temos as nossas tradições que encaixam bem com o blues.

Em 2017 continuamos na encruzilhada, tocando músicas que ninguém quer ouvir e escrevendo livros que ninguém quer ler. Mas essa é a nossa sina.

Eugênio Martins Júnior é jornalista e produtor cultural.

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Perfil de apoio para as revistas Capitu e Maquiavel.