Marcel Proust: a morte e o heroísmo da arte

“Devorado pelo desejo do impossível”, o escritor de ‘Em Busca do Tempo Perdido’ soçobra ante a sua aposta mais elevada

André Paes Leme
revista Capitu
9 min readJan 20, 2016

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Registro feito por Man Ray de Proust em seu leito de morte

Ainda podemos vê-lo deitado sobre a velha cama de onde tão pouco saía naqueles últimos tempos. Seu corpo movia-se tão lentamente que é impossível prever o que pretendia retomar. Não percebemos bem o que buscava lenta, singela e inutilmente ao redor de si. Talvez estivesse à procura da sineta com a qual, no meio da noite, acordaria Céleste para que ela recolhesse as penas que, uma após a outra, ele deixara que caíssem de suas mãos antes de pegar no sono. Ainda grandes, seus olhos já não tinham o fulgor dos tempos de outrora, quando ardiam pelo convulso desejo de uma felicidade sem limites; sua barba espessa de doente e as olheiras, mais profundas do que nunca, faziam com que a parte inferior do rosto e o entorno dos olhos formassem um solene contraste com a palidez de cera que se espraiava por suas faces no mesmo ritmo em que a enfermidade, emissária mais eminente da morte, tomava de assalto a fragilidade de suas entranhas. Cada vez mais regulares, as estranhas crises, em parte devidas às constantes sufocações, em parte à contínua intoxicação por soníferos e estimulantes, tornavam-lhe alguns poucos passos tarefa tão difícil e desafiadora quanto uma volta ao mundo. “Comecei a cair por terra a cada passo que dou”, escrevia a Gaston Gallimard, seu editor. Ele revisava as provas de La Prisonnière [A Prisioneira] e trabalhava ainda sobre o manuscrito de Albertine Disparue [A Fugitiva].

Todo forrado de cortiça, para evitar os ruídos exteriores, o quarto da Rue Hamelin vive de janelas fechadas. O mais inofensivo odor inabitual, uma qualquer doce brisa aérea ou mesmo um inocente sinal de uma virada no tempo seria o bastante para induzir à hipertrofiada sensibilidade do enfermo suplícios da ordem do imponderável. Mesmo assim, há algumas noites ele ousara colocar os pés na rua. Talvez tivesse ido ao Ritz, onde o maître teria se alegrado em atualizá-lo sobre as novidades mundanas das amigas princesas que ele já não podia mais ver. Talvez tivesse aparecido tarde da noite na casa de um velho casal de amigos cuja filhinha era visão imprescindível para que pudesse definir os traços de uma ou outra personagem fundamental de seu livro. “Proust, a que festanças vais à noite/ para voltares com os olhos tão cansados e tão lúcidos?”, perguntava-lhe o amigo Paul Morand. O cansaço e a lucidez de seus olhos eram a marca da distância que o separava do mundo dos homens; sobrepuseram-se ao cego desejo de felicidade que o atirara por quase toda uma vida ao torvelinho daquele beau monde cujas apetitosas doçuras não demoraram em mostrar-lhe seu terrível gosto de cinzas.

Na correspondência de seu penúltimo ano encontra-se a ponderação: “A vida de um artista não passa de uma longa ausência: ele está alhures. Tudo neste mundo lhe é hostil.”

Mas seria trabalho inútil revirar a região líquida de suas disposições espirituais à procura de uma gota que fosse de ressentimento. Todos aqueles com quem um dia esteve em contato, mesmo o mais fortuito, de que talvez nem se lembrasse conscientemente, todos estavam igualmente fundidos naquela massa compacta de suas criaturas romanescas. Ele já não tinha tempo para gostar ou desgostar de quem quer que fosse. Alcançara finalmente a força de vontade, a disposição de ânimo cuja ausência, no menino de compleição frágil que ele fora, tantas aflições gerara no lar dos Proust e que agora tornara-se nele desmesurada a ponto de fazê-lo sacrificar tudo o mais pelo seu incansável trabalho de artista. Se havia ainda algum pesar era com certeza o de sua mãe não ter podido vê-lo alcançar uma realização tão grandiosa, embora certamente pressentisse que Mme. Proust muito se afligiria pela vida enferma e reclusa de seu “pequeno lobo”.

A alma de Proust era toda votada à obra por concluir, e o gosto exultante pela felicidade, que fora a marca de sua juventude, deixara lugar a uma complacência que, apesar de todos os terrores de sua estranha doença, derivava de uma impassibilidade sobre-humana, de uma aceitação do destino apenas possível aos raros espíritos capazes de viver sob a égide do enunciado fatídico: “Tudo está perdido! Desde sempre”. Sua preocupação com a obra contradiz apenas aparentemente a postura de vida destilada nesse enunciado desajeitado e por demais genérico. Se a obra de arte existe, é porque cabe a ela legar seu ensinamento às almas enfermas que se empilham pelas curvas do globo; ela é o evangelho de nossa desgraça. E é por isso, não por uma satisfação qualquer, que o doente emprega nela suas últimas forças. Tendo vivido tempo demais embaraçado à teia encantada dos desejos mundanos, Proust percebera enfim que sua vida e a de seus semelhantes eram constituídas de materiais igualmente repelentes. Fora necessário que ele se retirasse da vida para que pudesse ensinar aos homens a arte de verdadeiramente vivê-la. Na correspondência de seu penúltimo ano encontra-se a seguinte ponderação: “A vida de um artista não passa de uma longa ausência: ele está alhures. Tudo neste mundo lhe é hostil.”[1]

O tempo que lhe restava, ele o consumiria inteiramente no trabalho em torno da obra. Já não havia dias ou noites, era sempre hora de seguir as correções e os acréscimos, pois pressentia que a doença produzia em seu corpo a ruína última da vida e o inevitável triunfo da morte. Aquela rara escapulida noturna dos meses anteriores já não era possível, a morte poderia a qualquer momento atravessar o limiar em que a vida ainda conseguia retê-la. “Seria preciso sair, mas para sair seria preciso ir ao elevador. Viver nem sempre é muito cômodo”, escreve a Gaston Gallimard.[2]

Sua própria morte tornara-se uma ideia fixa, mas sem a morbidez e o gosto romântico pelo seu culto macabro. Era apenas a consciência lúcida de que cedo ou tarde ela o venceria, quadro que implicava a necessidade de encará-la com a revolta que se exprimia no trabalho da escrita, mas também com a serenidade de quem se sabe vencido desde o início: vendo na morte, risco que o acompanhara desde o advento de sua vida, a mais constante de suas companheiras. Sempre mais e mais ocupado pela escrita, pelas revisões e pelos ditados que fazia a Céleste, Proust levou a cabo de maneira plenamente consciente o processo de transubstanciação de si mesmo em obra; seus personagens tomavam forma, colorido e viço na mesma medida em que ele próprio se tornava cada dia mais magro, pálido e débil. Era sua alma sublime que sacrificava, em nome da tarefa que lhe fora legada diante da humanidade, as forças retidas a duras penas pelo corpo para mantê-lo vivo. E à medida em que ele avançava, a obra delineava-se como o espaço criativo onde comungam a ciência do infortúnio temporal e a imperturbável esperança da eternidade.

Queixava-se do absurdo que eram as injeções e os soros que os médicos aplicavam em seu pacientes, “para ganhar dez minutos, a metade de um dia talvez, de vida miserável”. Ele praticamente não comia, “não tinha gosto por mais nada senão por sua obra, e nada mais tinha gosto”.

Proust abandonara aos outros, e de bom grado, os gostos e os usos possíveis do mundo. Privado, pouco a pouco, do sono, depois do movimento, e, certas vezes, mesmo da fala, queixava-se apenas de não ter o “bem-estar de não sofrer”. Soerguia-se, diante do oceano de infortúnios que foram seus últimos anos, a clareza de um raciocínio límpido e a magia de uma memória já fundida com a faculdade imaginativa, capaz de transportá-lo para onde fosse mesmo que Céleste não conseguisse sequer, para melhor arrumá-la, tirar Monsieur da cama. Expulso de si mesmo, Proust encontrara no livro por terminar o último refúgio para aquela que fora desde o princípio, onde quer que estivesse, uma alma estrangeira. [3]

E assim seguiu-se pelos meses de 1921 e 1922 o insólito combate travado entre Proust e seu desaparecimento. Quanto mais se dilacerava o corpo, mais expandia-se o poder de penetração de seu espírito, que alcançava a cada dia “vistas mais largas e mais longínquas”. Voltado para sua “existência perdida”[4], ele buscava ganhar, diante da morte, o tempo necessário para lograr exprimir por meio da obra o segredo monumental da solidão de um homem diferente de todos, mas que a todos preferia em relação a si mesmo.

Em outubro de 1922, sua situação se tornara pior. Em descuidada saída noturna, apanhara uma gripe que se desdobrara em perturbação respiratória considerável. Seu médico, Dr. Bize, apesar da febre constante, não considerou sua doença grave, mas Proust não queria saber dos médicos, incluindo seu próprio irmão, Robert, que tentou interferir. Ele precisava terminar sua obra, pouco se lhe dando as recomendações de absoluto repouso e os tratamentos que lhe eram prescritos. Queixava-se com Céleste do absurdo que eram as injeções e os soros que os médicos aplicavam em seu pacientes, “para ganhar dez minutos, a metade de um dia talvez, de vida miserável”[5]. Ele praticamente não comia, “não tinha gosto por mais nada senão por sua obra, e nada mais tinha gosto”.[6]

Era a madrugada de 18 de novembro de 1922 quando Marcel Proust, amparado pela incansável Céleste, fazia suas últimas correções nas provas de La Prisonnière. Nem mesmo depois de longas horas de correção escrita e ditado ele conseguira dormir. O café au lait que tomara por volta do amanhecer não pareceu de grande valia e seu estado de saúde se deteriorava terrivelmente. Horas depois, desconsiderando a promessa que lhe fizera, Céleste chamara novamente Dr. Bize e Robert Proust; um terceiro especialista fora convocado por eles, mas já era tarde. Não havia o que pudesse ser feito por Marcel Proust. Delírios estranhos, que enfrentou com estoica serenidade, acometeram-no vagamente. Voltado à direção oposta da porta, “seu olhar parecia penetrar no invisível”, e os esforços de Robert não surtiam efeito algum.

Aquela leve gripe, caso adequadamente tratada, julgavam os médicos, não teria lhe causado um grande mal e ele poderia ter terminado em paz sua obra, caso tivesse o bom senso de parar por alguns momentos até que se recuperasse. Mas deve-se perdoar a insanidade dos doutores. Nunca entendem o que é uma morte senão quando, conforme ocorre a todos os outros homens, encontram-se diante da sua própria. Proust não deixou-se morrer, como alguns lamentaram, muito menos quis matar-se, como insinuaram outros. Ele apenas deu a si mesmo a liberdade de jogar uma partida em que a derrota é certa, mas nem por isso são necessários os inúmeros reforços do artifício. Impossível não lembrar, em seu favor, as palavras com que ele descreveu a morte de Bergotte, o personagem-escritor de sua obra:

“Enterraram-no, mas durante toda a noite fúnebre, nas vitrinas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velavam como anjos de asas espalmadas e parecia, para aquele que já não existia, o símbolo de sua ressurreição.” [7]

Naqueles últimos meses de 1922 encenara-se no quarto da Rue Hamelin o eterno jogo entre a vida de um homem e seu perecimento. Consciente de que não poderia derrotar sua oponente, Proust preferira ao menos enfrentá-la por si mesmo, “com suas parcas forças”, aquelas que ele dedicara diuturnamente ao seu livro, negligenciando sua própria existência. Talvez ele soubesse que jamais poderia terminar o trabalho que começara, pois não era o trabalho para um único homem. Seu livro, ele o diz em um dos esboços coligidos em Le Temps Retrouvé, não continha verdades por ele descobertas que seriam entregues aos leitores. Caberia a eles prosseguir o trabalho da escritura por si mesmos. O livro lhes serviria como uma ferramenta, um telescópio que apontariam para si mesmos e que assim lhes desvendaria o mistério da trama de vazios e distâncias que lhes dão forma.

Muito tempo mais tarde, dois filósofos, Deleuze e Guattari, exprimiriam um pensamento de extrema agudeza que pode muito bem lançar alguma luz sobre a vida e o destino legendários de Marcel Proust: os artistas, dizem eles, “tem frequentemente uma saúdezinha frágil, mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses, é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um, de grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte. Mas esse algo é também a fonte ou o fôlego que os fazem viver através das doenças do vivido”[8]. A Recherche [Em Busca do Tempo Perdido] deveria permanecer “cheia de vazios, de discordâncias, de arcos abertos para o abismo, de naves inacabadas e campanários deixados pela metade”, pois caberia a seus leitores, na medida de suas forças, contribuir, em seu próprio jogo com a morte, para o avanço deste inumano trabalho em cujos começos Marcel Proust, “devorado pelo desejo do impossível, do imenso, do extremo”[9], fizera sua aposta mais elevada.

Bibliografia

ALBARET, Céleste. Senhor Proust. São Paulo: Novo Século, 2008

CITATI, Pietro. Proust. São Paulo: Cia das Letras, 1999

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: É Realizações, 2009

MAUROIS, André. Em busca de Marcel Proust. São Paulo: Editora Siciliano, 1995.

[1] Citati, p.193

[2] Maurois, p.268

[3] Cf. idem, ibidem.

[4] Girard, p.330

[5] Albaret, p.405

[6] Idem, p.406

[7] Proust, 2011, p.213

[8] Deleuze & Guattari, p.224

[9] Citati, p.197

André Paes Leme é bacharel e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado na área de estética.

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