entrevista/Marco Guerra
O Palhaço Atrás do Muro

“Dar ao humano-aluno a possibilidade de se perdoar, de perceber que sua vida ainda está em construção, não está pré-determinada. A vida depende apenas de como ele se vê e do que busca para si”

Letícia de Freitas
revista Capitu
12 min readAug 13, 2016

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“Os resultados, mais do que qualquer outra coisa, são internos: são pequenos grãos de areia que os meninos e meninas carregarão em seu interior por tempo indefinido… até que se tornem pérolas a serem colhidas por eles mesmos e elas mesmas — em sua vida adulta, quem sabe, — e quiçá pela sociedade — quando esses meninos e essas meninas se tornarem seres humanos que valorizem outro seres humanos e a vida em sociedade”

Criador da Pedagogia do Palhaço — metodologia focada no autodomínio corporal e expressivo — Marco Guerra é ator, contador de histórias e autor de dois livros ainda não publicados: O Palhaço Atrás do Muro, uma Experiência de Arte e Educação na Febem e O Palhaço Atrás do Muro, Dez Anos Depois. Ele está prestes a defender, à Universidade de São Paulo, uma dissertação de mestrado sobre o método que desenvolveu e fala à Capitu sobre a atuação com menores infratores e as ideias que balizam o seu trabalho: “Quero empoderar jovens e crianças, ampliando sua leitura de mundo para além do ensino formal pela experienciação da arte. Pretendo empoderar os professores para fortalecer a comunicação com jovens e crianças, tendo a arte como elemento principal”.

Gostaria que você falasse sobre os seus estudos na área: como o seu trabalho aborda a pedagogia do palhaço e a questão do professor-ator? Você poderia falar um pouco sobre o estado da arte no Brasil?

Fui autodidata até os 36 anos. Aprendi a arte da contação de histórias dentro de casa com a minha mãe, que por sua vez, aprendeu no interior do Paraná, que foi para onde ela migrou do Ceará ainda criança. Minha mãe é analfabeta, de maneira que guardou todas as histórias (umas 50) na memória; a capoeira, comecei a aprender ainda criança no campinho de terra perto de minha casa em Mogi das Cruzes, onde fui criado. O mestre chamava-se Pedrinho; o teatro, conheci pela primeira vez aos 13 anos em um curso que teve na escola, participei do início ao fim, ou seja, até a montagem da peça: O Planeta dos Palhaços; durante a adolescência fui morar com um irmão em um garimpo na cidade de Ariquemes, em Rondônia, lá aprendi com uma mulher matuta a ler o mundo através dos ditos populares; quando voltei para São Paulo, aos 20 anos, conheci o circo. Bem, essas artes são a base da Pedagogia do Palhaço, foi com o aprendizado delas que consegui, enquanto arte/educador, aproximar-me e dialogar com crianças e jovens, sempre com ótimas devolutivas.

“Marco Guerra, nosso professor, veio e mostrou o outro lado pra nós; mostrou que somos palhaços, que isso sai do coração, que transforma alguma coisa. Tudo muda. Tô muito agradecido para o professor Marco Guerra. Ele ajuda nós. Ele está do nosso lado.” (Palhaço Miúqui, em 05/11/06)

Sobre o estado da arte no Brasil, penso que, em primeiro lugar a arte é mal vista e mal interpretada, é ainda tratada como marginal e vagabunda. Existe muito forte uma ideia arraigada de que quem é artista é porque não gosta de trabalhar. Visão tacanha e capitalista. Em segundo lugar, que é uma derivação da primeira, a arte é pouco valorizada na escola, a educação guarda uma distância enorme da arte, a arte é mencionada na escola genericamente, como se fosse coisa que existe, mas não que os alunos possam experimentá-la e mergulhar nela e viver dela e para ela. Nesse sentido, a Pedagogia do Palhaço é uma miscelânea de artes intrinsecamente ligada à Educação, ou seja, uma coisa não funciona sem a outra, ou melhor dizendo, uma coisa é a outra.

Comente sobre a sua experiência como educador na antiga Febem.

Cheguei a Febem pela primeira vez em 2005, já fazia cinco anos que tinha criado a Pedagogia do Palhaço e buscava lugares e situações para testá-la. Disseram-me horrores sobre os jovens que lá viviam e cumpriam suas medidas sócio-educativas. Não vou dizer que foi fácil, existe um clima psicológico pesado nestes lugares, mas não há nada que o amor pela educação e as artes como ferramentas pedagógicas não consigam. Passei dois anos como educador de teatro e circo. Das sete unidades onde dava aula, em cinco consegui montar trupes de palhaços, isso tudo na época das grandes rebeliões — no ano de 2005, por exemplo, ocorreram mais de 50.

Vou contar minha pior dificuldade: o relacionamento com os funcionários, sim, porque eles não conseguem conceber que alguém faça seu trabalho dentro das unidades (hoje chamados centros) por amor, mas somente pelo dinheiro, pelo salário; a maioria dos funcionários que conheci, demonizavam os jovens, sua vida pregressa, sua vida futura, suas famílias, sua existência. Muitos diziam que as punições tinham que ser piores.

“Quando perguntado se é mais fácil fazer sorrir ou causar medo: ‘Se você tem uma arma, é mais fácil causar medo. Mas só há prazer em fazer sorrir. Sorriso é retribuição. E isso o crime não te dá‘.” (Palhaço Creitin, em 19/04/06)

Qual a finalidade do seu projeto? Como ele nasceu?

A finalidade do meu projeto é empoderar jovens e crianças, ampliando sua leitura de mundo para além do ensino formal através da experienciação da arte. Num segundo momento pretendo empoderar os professores para que fortaleçam sua comunicação com jovens e crianças tendo a arte como elemento principal.

Quais foram os resultados?

Os resultados, mais do que qualquer outra coisa, são internos: são pequenos grãos de areia que os meninos e meninas carregarão em seu interior por tempo indefinido… até que se tornem pérolas a serem colhidas por eles mesmos e elas mesmas — em sua vida adulta, quem sabe, — e quiçá pela sociedade — quando esses meninos e essas meninas se tornarem seres humanos que valorizem outro seres humanos e a vida em sociedade.

“Suas mãos vão para trás automaticamente, seus corpos se encurvam e seus olhares direcionam-se para seus próprios pés, e tudo que conseguem falar é ‘sim, senhor’ e ‘não, senhor’. Quando me dei conta dessa situação chorei de tristeza”

Quando a Febem se tornou Fundação Casa, algo mudou?

Algo mudou, mudou para pior. Em 2015, dez anos depois, tive minha segunda experiência como educador de circo e pude ver: os jovens e as jovens são mais infantilizados, o número de analfabetos é muito maior e os centros atuais são menores (havia 150 por unidade, agora há 50, 60 ou 70). Não ocorrem mais rebeliões como antes, o que dá uma falsa sensação de que a fundação é melhor administrada e os internos e internas são melhor tratados e tratadas — ledo engano. O tratamento de hoje é pior em muitos sentidos. Os piores maus tratos não são os físicos, mas os psicológicos e anímicos, e partem de funcionários do pátio, da pedagogia, da psicologia, da assistência social e da administração.

Para você, há diferença entre a Fundação Casa e um centro de detenção?

A diferença existe teoricamente, mas na prática a Fundação Casa é pior do que um centro de detenção, porque os adultos sabem se defender melhor das punições, principalmente as psicológicas e as anímicas.

Lembrando de algo que você afirmou em uma palestra: o adolescente sai da Fundação Casa com a “ficha limpa”, porém seu corpo denuncia o contrário. Ao ser abordado por policiais (e isso já entendendo um contexto de vulnerabilidade social no qual eles vivem) suas posturas, seus movimentos, mostram um histórico. Tendo em vista esse contexto, que mudanças o seu projeto trouxe à vida desses jovens?

Em primeiro lugar explico essa situação para os jovens e as jovens, em segundo lugar apresento meu projeto de Corpo Jogador Consciente, baseado no palhaço e na capoeira de angola, que tem por finalidade a queima dos estereótipos corporais, ou seja, o domínio do automovimento.

“Infelizmente, muitos nos tratam nas escolas públicas como os jovens e as jovens são tratados na Fundação Casa: ‘Você nunca vai ser nada na vida’; ‘Você não serve nem pra ser lixeiro’; ‘Você vai acabar morrendo na mão da polícia ou dos próprios bandidos’ etc.”

Você pode dar um exemplo sobre o que pretendia com cada atividade realizada?

O corpo não é um livro pronto, ele vai sendo impresso ao longo da vida, entretanto, uma vez impresso, torna-se difícil limpar. É o que [o dramaturgo] Antunes Filho chama de corpo sujo, estereotipado. Observei que, na Febem, os corpos dos jovens eram marcados, ou seja, alguns movimentos eram impressos em seus corpos, assim como algumas falas. Vi isso acontecer na Unidade de Atendimento Inicial (UAI), na qual os jovens chegavam assim que eram presos. Como ainda não estão separados por idade e por infração cometida, para que não haja comunicação entre eles, todos ficam sentados no chão, com a cabeça baixa, apoiada nos joelhos. Ficavam nessa posição horas e horas, porque nesta unidade não havia nenhuma atividade física, artística ou educacional.

Quando algum jovem precisava ir ao banheiro, levantava a mão, um segurança ia até ele, o jovem se levantava, colocava as mãos para trás e, com o corpo encurvado e a cabeça baixa, ia ao banheiro, falando “com licença, senhor” e “com licença, senhora” para todos e todas que encontrasse no caminho. Não podia falar “com licença, senhores” para três homens juntos, por exemplo, tinha que falar três vezes. Eles faziam isso milhares de vezes, por dias e meses a fio, pelo tempo que ficassem na UAI. Por lei, deveriam ficar no máximo quarenta e oito horas, mas eles ficavam muito mais.

Quando eram encaminhados para as Unidades de Internação (UI), os corpos dos jovens continuavam com os mesmos movimentos, andavam sempre com as mãos para trás, com o corpo encurvado e a cabeça baixa. Quando conversavam com algum funcionário ou alguma funcionária, a retração de seus corpos ficava mais pronunciada. Depois, na rua, no meu próprio bairro, comecei a perceber que os corpos dos jovens os denunciavam, dava para saber quais já tinham passado pela Febem. Quando o jovem cumpre sua internação, por lei sua ficha é apagada, para que ele siga sua vida normalmente. Todavia, as marcas em seus corpos ficam indeléveis para serem identificados de longe. Já os vi em abordagens policiais, suas mãos vão para trás do corpo, automaticamente, seus corpos se encurvam e seus olhares direcionam-se para seus próprios pés, e tudo que conseguem falar é “sim, senhor” e “não, senhor”.

“’Não volto mais para minha vida de antes. Se eu tivesse aprendido o que aprendi aqui, não teria entrado nela’” (Palhaço Romeu, em 12/08/06)

Quando me dei conta dessa situação chorei de tristeza, do que eles fazem com os jovens e as jovens. Dizem que a medida sócio-educativa é para melhorar, que ele/ela voltará para sociedade recuperado etc. Pura balela, mentem para a sociedade e mentem para o próprio jovem, a própria jovem, que, sem perceber, fica com seu corpo marcado.

Em cada atividade, eu iniciava conscientizando o jovem ou a jovem sobre o que estava sendo feito de seu corpo, depois realizávamos atividades físicas para o resgate da auto-expressão, de exercícios de respiração até meditação.

Qual foi a maior lição que você tirou do projeto?

Que ver a si mesmo é algo que se pode aprender através da arte, por meio da orientação de alguém que trilhou o caminho da autodescoberta através da arte. Olhar para dentro também nos ensina que não somos apenas aquilo que “estamos” agora; que a identificação entre educando/educador faz com que o adolescente ou a adolescente passe a se perceber como humano: que cai, mas pode se reerguer, que pode ter errado pra valer, mas que pode encarar o erro como aprendizado do que é o mal, do que é o bem. Do ser humano que pode optar. Finalmente, que é a identificação do humano-professor com o humano-aluno que dá a este a perspectiva da possibilidade de se perdoar, de se ver com outros olhos, de perceber que sua vida (como a de todo ser humano, seja criança, adolescente, adulto) ainda está em construção, não está pré-determinada nem por sua idade, nem por seu meio social, nem por seus amigos. A vida depende apenas de como ele se vê e do que busca para si.

O que os seus alunos trouxeram de retorno a respeito do projeto?

Vou reproduzir falas dos próprios adolescentes:

“Quando perguntado se é mais fácil fazer sorrir ou causar medo, a resposta vem depois de uma breve pausa: ‘Se você tem uma arma, é mais fácil causar medo. Mas só há prazer em fazer sorrir. Sorriso é retribuição. E isso o crime não te dá‘.” (Diário do Comércio: Em cena o Circo Du Seu Léu, depoimento do palhaço Creitin, 19/04/06)

“É legal é o seguinte: o que a gente fez lá fora, a gente esquece quando a gente se maquia; a gente se transforma em outra pessoa, esquece tudo o que aconteceu.” (Depoimento do palhaço do Além, Em Cena, TVA, abril de 2006)

“É muito bom estar participando dessa aula aí, certo, e daqui pra frente nós pode mudar de vida, nós pode ter uma vida melhor, mudando essa vida aí pra outra vida.” (Depoimento do palhaço Pisca, Em Cena, TVA, abril de 2006)

“’Não volto mais para minha vida de antes’, promete o palhaço Romeu. ‘Se eu tivesse aprendido o que aprendi aqui, não teria entrado nela’” (Jornal da Tarde, depoimento do palhaço Romeu, 12/08/06)

“Marco Guerra, nosso professor, veio e mostrou o outro lado pra nós; mostrou que somos palhaços, que isso sai do coração, que transforma alguma coisa. Tudo muda. Tô muito agradecido para o professor Marco Guerra. Ele ajuda nós. Ele está do nosso lado.” (Depoimento do palhaço Miúqui, captado por Elias Mingoni em vídeo, 05/11/06)

“Para mim, o conhecimento e o aprendizado das artes é mais importante do que o ensino das matérias, de modo que deveria ser aprendido primeiro. Com efeito, a arte educa e atinge a alma, preenche a criança e o jovem de sensibilidade, de moral, de solidariedade,”

E quanto ao corpo nas escolas regulares? O professor Marcos Neira, da USP, fala como o corpo é cerceado nas escolas públicas. Há um artigo dele, sobre a festa de aniversário na escola, em que as crianças ficam sentadas todo o tempo, sem se mexer. Há uma sujeição do corpo. Ele cita Michel Foucault, a ideia de esquema disciplinar, do qual um exemplo é a hora marcada para dormir na educação infantil.

O corpo é vivenciado como lugar histórico, cheio de marcas culturais. Partindo disso, a metodologia do professor-ator deveria ser aplicada nas escolas regulares? Quais seriam as melhorias necessárias ao espaço dedicado às artes no ensino básico?

Acredito que as escolas públicas são bem parecidas com a Fundação Casa, em minhas duas experiências como educador lá, comparando com minha vida de estudante fracassado, que só conseguiu se formar no Ensino Médio aos 30 anos, pude concluir essa triste igualdade. Infelizmente, muitos professores e professoras e funcionários e funcionárias nos tratam nas escolas como os jovens e as jovens são tratados na Fundação Casa, ouvi muitas frases que já havia ouvido na escola: “Você nunca vai ser nada na vida”; “Você não serve nem pra ser lixeiro”; “Você vai acabar morrendo na mão da polícia ou dos próprios bandidos” etc.

A metodologia do professor-ator, que é uma das técnicas da Pedagogia do Palhaço, deveria ser matéria obrigatória nos cursos de pedagogia e de licenciatura, porque os professores e as professoras são formados e formadas em teorias diversas e mandados para as escolas despreparados e despreparadas corporalmente. Muitas das vezes suas teorias não cabem nessas escolas e, sem saber o que fazer, ficam doentes, alimentam ódios pelos alunos e alunas, acreditando que são os responsáveis por sua infelicidade e fracasso docente; muitos e muitas usam aquele chavão: “Tem que ser artista para dar aula em tal escola”. Pois bem, na Pedagogia do Palhaço o professor e a professora literalmente têm que ser artista. Como exemplo da importância do conhecimento das artes para dar aula, cito a “voz profissional”, que é a projeção e a ressonância da voz, utilizada por atores e atrizes e por cantores e cantoras, se os professores e as professoras aprendessem na faculdade esse técnica não adoeceriam da perda da voz, principal causa de afastamento.

Qual a importância das artes para o desenvolvimento da criança e do adolescente?

Para mim, o conhecimento e o aprendizado das artes é mais importante do que o ensino das matérias, de modo que deveria ser aprendido primeiro. Com efeito, a arte educa e atinge a alma, preenche a criança e o jovem de sensibilidade, de moral, de solidariedade, ou seja, educa eticamente, ao passo que a educação formal fala ao intelecto, pode deixar a criança e o jovem muito inteligente, educa lógica e tecnicamente. A experiência nos mostra que a inteligência técnica e lógica muitas vezes está aliada ao orgulho, ao egoísmo, ao individualismo, de maneira que não serve aos ideais da nova civilização do terceiro milênio, baseado no desarmamento, na solidariedade e na paz.

Letícia de Freitas é professora da rede pública da Prefeitura Municipal de São Paulo, responsável por uma Sala de Recursos Multifuncionais (SRM). É mestranda em educação especial e licenciada em pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduanda em educação especial pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pós-graduada em literatura pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e licenciada em letras também pela USP.

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