O Burguês Não Pode Ser Encontrado

Microfilos
revista Capitu
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5 min readJan 12, 2016

Robert Darnton, em “Um Burguês Organiza Seu Mundo: A Cidade Como Texto”, publicado no livro O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa (páginas 144–149)

Primeiro, uma palavra a respeito da tendenciosa expressão “burguês”. É ofensiva, irritante, inexata e inevitável. Os historiadores discutiram a respeito dela por gerações, e ainda discutem. Na França tem, em geral, conotações marxistas. O burguês é o detentor dos meios de produção, uma certa espécie de Homem Econômico, com seu estilo de vida próprio e uma ideologia peculiar. Ele era a figura-chave do século VIII, período de enorme expansão, se não de completa industrialização: “le take-off”, segundo a visão fraturadamente francesa da economia “anglo-saxônica”. Diante da contradição entre seu poder econômico e sua impotência política — agravada durante o período do renascimento da aristocracia, nas vésperas de 1789 — o burguês adquiriu consciência de classe e se revoltou, liderando uma frente popular de camponeses e artesãos, na Revolução Francesa. A ideologia era essencial para a fusão dessa força impressionante, porque a burguesia conseguiu saturar as pessoas comuns com suas próprias ideias de liberdade (especialmente, livre comércio) e igualdade (especialmente a destruição do privilégio aristocrático). Por volta de 1789, o Iluminismo já cumprira sua tarefa, como garantiram a uma geração de leitores os mais influentes compêndios franceses, dos mais prestigiosos historiadores da França: “O século XVIII pensava com a burguesia”.

Esta versão do eterno tema da ascensão da classe média baseia-se numa visão da história como um processo que opera em três níveis, o econômico, o social e o cultural. Quanto mais profundo o nível, mais poderosa a força. Assim, as transformações econômicas produzem transformações na estrutura social e, em última instância, nos valores e idéias. Na verdade, alguns historiadores desenvolveram pontos de vista muito diferentes. Roland Mousnier e seus alunos elaboraram um quadro idealista do Antigo Regime como uma sociedade de estamentos, fundamentada nas normas jurídicas e no status social. Entre os marxistas, uma tendência gramsciana atribuiu alguma autonomia às forças ideológicas na formação de “blocos” sócio-políticos hegemônicos. Apesar disso, a tendência dominante nos ensaios históricos franceses a partir dos anos 50, e até os anos 70, era a tentativa de criar uma história “total”, baseada num modelo de causalidade com três níveis.

Esta visão colocava categoricamente o burguês no centro do palco. Como detentor dos meios de produção, elemento ascendente na estrutura social e defensor de uma ideologia moderna, ele estava destinado a varrer com tudo que se interpusesse em seu caminho — e assim fez na Revolução Francesa. Mas ninguém o conhecia muito bem. Aparecia nos livros de História como uma categoria, sem um rosto. Então, em 1955, Ernest Labrousse, o porta-voz supremo da história total, em três camadas, lançou uma campanha para descobrir o burguês em seus esconderijos, nos arquivos. Vastos levantamentos estatísticos, compilados de acordo com uma estratificação sócio-profissional, pretendiam situar a burguesia dentro de estruturas sociais, em toda parte, no Ocidente, a começar com a Paris do século XVIII. Paris, no entanto, não respondeu à expectativa. Pesquisas realizadas em 2.597 contratos matrimoniais por François Furet e Adeline Daumard revelaram uma sociedade urbana composta de artesãos, lojistas, profissionais, autoridades reais e nobres, mas nenhum industrial e apenas um punhado de grandes comerciantes. Um estudo comparativo de Paris e Chartres feito por Daniel Roche e Michel Vovelle produziu resultados similares. Cada cidade tinha burgueses, sim, mas eram “borgueois d’Ancien Régime” — fundamentalmente rentiers, que viviam de rendas anuais e arrendamento de terras, e não trabalhavam; o contrário absoluto da burguesia industrial da historiografia marxista. É verdade que donos de manufaturas podem ser encontrados em centros têxteis como Amiens e Lyon, mas em geral dirigiam empresas “domésticas”, de um tipo que já existia há séculos e não tinha a menor semelhança com a produção industrial mecanizada que começava a transformar a paisagem na Inglaterra. Na medida em que a França tinha empresários, tendiam a vir da nobreza. Os nobres investiam em todo tipo de indústrias e no comércio, e não apenas nos setores tradicionais da mineração e da metalurgia, enquanto os comerciantes, com frequência, deixavam o comércio logo que acumulavam capital suficiente para viverem como cavalheiros, da terra e das rentes.

À medida que as monografias continuavam a jorrar, cobrindo uma cidade após a outra, e uma província após a outra, a França do Antigo Regime ia parecendo cada vez mais arcaica. Os melhores estudos, como os de Maurice Garden sobre Lyon e de Jean-Claude Perrot sobre Caen, apresentaram alguns autênticos donos de manufaturas e comerciantes; mas esta burguesia inegavelmente capitalista parecia trivial, em comparação com a vasta população de artesãos e lojistas que proliferava em todas as cidades da França no início dos tempos modernos. Em parte alguma, com exceção talvez de Lille e de um ou dois setores de outras cidades, os historiadores sociais realmente encontraram a classe industrializante dinâmica e autoconsciente imaginada pelo marxismo. Michael Morineau chegou ao ponto de argumentar que a economia permaneceu estagnada durante todo o século XVIII e que o quadro padrão de expansão econômica sintetizado pelas ondas ascendentes dos preços dos cereais, nos gráficos produzidos por Labrousse, nos anos 30 e 40 era, na verdade, uma ilusão — produto da pressão malthusiana, mais que de um aumento de produtividade. A economia pode não ter sido assim tão fraca, mas claramente não atravessou uma revolução industrial, ou sequer agrícola. Visto do lado francês do Canal, “le take-off” começou a parecer particularmente “anglo-saxão”.

Esta tendência destruiu a maior parte da modernidade no nível inferior do modelo em três camadas do Antigo Regime, e desgastou a maior parte da população das forças progressistas, localizadas no segundo nível. Onde fica a noção de um século que “pensava com a burguesia”? Uma vasta análise sociológica dos principais centros de pensamento, as academias provincianas, mostrou que os pensadores pertenciam a uma elite tradicional de nobres, padres, autoridades estatais, médicos e advogados. O público para os livros do Iluminismo parecia muito próximo disso, enquanto as plateias de teatro — mesmo quando seus integrantes choravam com o novo gênero dos drames bourgeois — talvez fossem ainda mais aristocráticos. E (…) os próprios escritores vinham de todos os segmentos da sociedade, exceto o industrial. Claro que a literatura do Iluminismo poderia ainda ser interpretada como “burguesa”, porque sempre se pode aplicar essa expressão a um conjunto de valores e, depois, encontrar esses valores expressos em letra de forma. Mas este procedimento de certa forma gira em torno de redundâncias — a literatura burguesa é uma literatura que expressa a visão da burguesia — sem estabelecer contato com a história social. Assim, em todos os níveis de pesquisa, os estudiosos atenderam ao chamado — cherchez le bourgeois — , mas não conseguiram encontrá-lo.

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