O cancelamento de "Sense8" e o que não pode ser dito, mas precisa ser dito

O argumento O Mercado Decidiu, Aceite estabelece que consumo é cidadania e esquece que ideias podem ser questionadas

Duanne Ribeiro
revista Capitu
5 min readJun 5, 2017

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"Sense8 trazia uma novidade, um algo que não podia ser dito facilmente? Esse é um questionamento mais interessante do que dar lições de moral"

Li o texto do Contraditorium sobre o cancelamento de Sense8. Ele passeou bastante pela minha timeline — um pessoal ficou bem agitado porque outro pessoal tinha ficado agitado com o fim da série e encontrou nele a suposta sinceridade agressiva necessária para por aquele primeiro pessoal no seu devido lugar. Eu tinha achado a primeira temporada da série apenas ok e não vi a segunda, nem o episódio de Natal, então nem me envolvi, mas agora que eu li a coluna, acho que é preciso falar uma coisa ou outra.

Não é um artigo ruim. Argumenta que Sense8 não tinha repercussão e não valia o investimento, então, simples assim, foi cancelada; não haveria porque acusar Netflix de ser subsidiária de tendências políticas ou comportamentais nessa escolha (por exemplo, ser homofóbica). Seriam só decisões de negócio e pronto. Acredito que é isso mesmo, mas o texto só esclarece parte do assunto e carrega alguns problemas pela forma como defende sua ideia.

À parte o fato simplório que podemos lamentar o que bem entendermos (tem um certo O Mercado Decidiu, Cale-se e Aceite nessa argumentação que é só servil), o que mais me incomoda é que, na coluna, cidadania é consumo. Talvez eu exagere um pouco ao dizer "cidadania" — nessa relação entre uma uma empresa de entretenimento e telespectadores não somos cidadãos e as interpretações do autor são completamente factíveis —, mas creio que há aí uma generalização subterrânea, um vazamento dessa relação em particular para o mundo, de que a rentabilidade como cliente define o cidadão.

Nesse sentido, diz-se: "Se você não tinha relevância para a audiência da série como acha que vai ter relevância em um boicote?”. Lê-se nessa afirmação: ter impacto como manifestante é ter tido impacto como público; ter impacto como público é agir nos limites de certos canais. Em primeiro lugar, pagar, é claro; em segundo lugar, gerar discursos sobre o produto — “repercussão”, “buzz”. Deve-se ser financiador e/ou publicitário; a capacidade de ser um ou ambos denotará sua relevância. O que, de novo, faz sentido se nos ativermos à relação meramente comercial entre comprador e empresa (mas nem tanto: Community, por exemplo, foi cancelada na TV e renovada no Yahoo por atenção a uma comunidade subitamente oriçada; embora tenha acabado de novo porque seu espírito tinha sido perdido), porém, para além da simplista constatação, há a transposição dessa lógica para outros contextos sociais.

Prova dessa transposição é que o texto seja, na verdade, uma crítica à esquerda dita identitária, e faça a pilhéria típica, que é a de tirar esse grupo de juvenis, ingênuos, com a vida ganha. A mesma ridicularização das pautas baseadas em reconhecimento como histéricas, frívolas, forçadas atravessa o texto. Ainda mais, em uma arena menor, a luta aqui é a mesma de sempre entre os que “entendem de economia” e os analfabetos nessa seara.

A coluna quer dizer: vocês estão errados nisso como estão errados em todo o resto. Mas é preciso contrapor que as “leis econômicas” não são as dirigentes primárias e máximas de todo aspecto da vida — nem mesmo para a Netflix: a aposta comercial da empresa se baseia em certo cenário cultural construído não só pelos seus assinantes como pelos militantes criticados na coluna. É a partir desse contexto que se decidiu por Sense8. O ativismo vende; a Netflix se quer, às vezes, progressista, por isso (o que vale também para Hollywood, como, na piauí, comentou João Moreira Salles).

Assim, a repercussão não é só guia de decisões empresariais como farol de tendências sociais. Essa afirmação permite reposicionar os “chiliques” dos fãs. Defesa de direitos sociais ou de rupturas comportamentais podem, para a Netflix, de fato não significar nada (ou só potenciais ativos ou passivos de um produto comercial); mas os valores moldam como os objetos culturais conseguem penetrar na sociedade. Que não tenham permeabilidade diz mais do que “não vende”; são um comentário sobre o que vende.

Esse campo de valores está aberto ao debate, independente do que compra cada qual. As críticas a 13 Reasons Why, por exemplo, feitas do ponto de vista médico e da experiência de pessoas com depressão, não são restritas a quem assine a Netflix; e não devem ser ignoradas segundo alguma avaliação da capacidade de repercutir. Há uma tendência aristocrática na ideia de só quem teve voz poderá ter voz, como se tematiza no episódio "Nosedive", de Black Mirror — também da Netflix). Aja como consumidor: compre e comente ou não compre e não comente — essa redução é destrutiva. Produtos contêm ideias, e ideias podem ser sempre questionadas, por quem seja.

Então, podemos reposicionar o "chilique", deslocá-lo da Netflix, e usá-lo para interpretar mais ou menos bem certo estado de coisas na sociedade. Com isso, se poderia pensar o quanto Sense8 é mais inovador do que outros produtos; se for o caso, o que no seu modo de tratar a diversidade complica a sua popularidade. Orange is the New Black (só assisti a um episódio) trata de meninas gays, o que é mais permeável porque pode ser lido em alguns setores pelo viés do fetiche. House of Cards, aquém da sua contundência, traz uma visão trivial da política como cinismo e interesses escusos. Sense8 trazia uma novidade, um algo que não podia ser dito facilmente?

É respondendo "sim" a essa pergunta que alguém defende a continuidade da série apesar dos seus resultados financeiros. A série diria algo que não pode ser dito que precisa ser dito. É o caso de Sense8 mesmo? Essa é uma questão mais interessante do que dar lições de moral, e leva a outra: é possível falar algo realmente disruptivo sendo parte de uma instituição? Sense8 podia fazer o que queriam, queríamos, sendo um produto da Netflix? A discutir.

Duanne Ribeiro é editor da Capitu. Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília, mestrando em ciência da informação, pós-graduado em gestão cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e graduado em filosofia, todos pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, membro do conselho editorial da revista de política e ideias Maquiavel e colunista do Digestivo Cultural.

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Duanne Ribeiro
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Jornalista. Mestre em Ciência da Informação, pós-graduado em Gestão Cultural e graduado em Filosofia (USP). Analista do @itaucultural. Editor da @rcapitu.