O Corpo e a Experiência do Cinema

O corpo velado e o corpo transgressor — duas formas de tratar um objeto central para a sétima arte

Isadora Sinay
revista Capitu

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O cinema, disse certa vez Andrey Tarkovsky, é esculpir o tempo. Um filme nada mais é que um mosaico, uma colagem, feito de tempo.

A definição mais corrente de cinema dirá que ele é a arte da montagem. A montagem, o ato de recortar e colar pequenos fragmentos de imagem em movimento, é o que diferencia o cinema de todas as artes, o que o torna diferente da literatura, da pintura e, principalmente, do teatro. Contudo, montar nada mais é do que manipular o tempo.

Mas eu expando um pouco o conceito de Tarkovsky: o cinema não é exatamente a arte do tempo, mas a arte da experiência. Pois o tempo de que ele trata não é contado em minutos, mas é o tempo como experimentado por nós, o tempo do envelhecimento, o tempo da respiração, do sangue correndo, o tempo que Tarkovsky estica até o ponto do esgarçamento em seus filmes. O cinema é a arte que mais se empenha em representar nossa experiência, sensorial e concreta, próprias do ser humano.

E é por isso que ele se presta tão bem ao corpo e ao erotismo. Georges Bataille, nos livros O Erotismo e História do Olho, aproxima o erótico da morte, do obscuro, daquilo que, como as imagens mórbidas, aproxima e enoja o homem na mesma medida. Somos irremediavelmente atraídos pelo sexo e pelas imagens do corpo, ao mesmo tempo que seu poder nos causa medo e sua proximidade com a irracionalidade nos afasta. Os melhores filmes a tratarem da sexualidade são aqueles que respeitam essa dicotomia.

Em O Silêncio, Ingmar Bergman coloca uma cena bastante explícita em que a personagem de Ingrid Thullin, já próxima da morte, se masturba. Não é uma cena chocante apenas pelo grafismo, mas pela maneira como ele aproxima, quase casando, sexo e morte. O sexo, como a morte, é uma das maiores lembranças de que somos pouco mais do que corpo físico, um amontoado de moléculas completamente finito e que a arte, a cultura e toda a civilização pouco podem fazer em relação a isso.

Cartaz para Funny Games, de Michael Haneke

Michael Haneke é um cineasta que ao longo de toda sua carreira investigou de formas diferentes a materialidade do ser humano. Em um primeiro momento, seus filmes olhavam para um certo gozo quase animal, para o prazer provindo da absoluta irracionalidade, fosse ele derivado do sexo, da violência, ou de uma mistura incômoda entre os dois. Há em seu cinema duas faces desse prazer: a psicopatia de Funny Games, em que os protagonistas são despidos de qualquer empatia humana e o espectador é o único responsável pelo julgamento moral, e a tortura de A Professora de Piano, em que uma especialista em Schubert, uma mulher racional e refinada, é escrava de impulsos sexuais pelos quais sente repulsa.

No entanto, em A Fita Branca o diretor chega a um ponto de virada: nesse filme ele constrói uma narrativa em que o impulso sexual é enterrado tão fundo que, aos poucos, se transmuta em morbidez, crueldade e, por fim, morte. A partir daí a ótica de Haneke muda: é a mortalidade que o interessa, o caminho pelo qual tudo que existe de humano deixa um corpo e ele se torna apenas isso, corpo. Amor é um filme sobre isso, sobre o corpo que já não é erótico, já não é ativo, já não é nada exceto matéria finita.

Mas a aproximação entre desejo e transgressão, sexo e morte pode assumir faces mais poéticas: Wong Kar Wai é um dos mais significativos cineastas do desejo. É curiosos que sua maior influência seja Pedro Almodóvar, para quem o corpo é exagero e fantasia, onde o sexo é explícito, fácil, fluído como as identidades travestidas. Wong Kar Wai é alguém fascinado com esse universo, mas entranhado no moralismo chinês.

Muito se fala sobre a cena da escada em Amor à Flor da Pele, na absoluta sensualidade de uma sequência que mostra dois personagens completamente vestidos que mal chegam a se encostar. Porque o cinema de Kar Wai é justamente o do erotismo apontado por Bataille: proibido, subversivo, rebelde e por isso mesmo mais incendiário quando não realizado. Poucos filmes são sobre o corpo da maneira como Amor à Flor da Pele é e poucos filmes apresentam tão poucas cenas de sexo.

Entretanto, antes de chegar a esse lugar de não ditos, Wong Kar Wai passou pelo explícito, do corpo, dos sentimentos e do melodrama. Felizes Juntos é seu único filme com personagens abertamente homossexuais, mas também o único em que sentimentos são escancarados, exprimidos com violência sangrenta. Mas há um detalhe na abertura desta obra: ele se dá no esconderijo.

O casal de protagonistas deixa a China e se refugia nas ruas estreitas, sujas e obscuras de La Boca, em Buenos Aires. Desgarrados de seu ambiente original, longe de tudo e todos que conhecem, é quando eles finalmente se permitem viver uma realidade que é toda do corpo. É preciso ir ao submundo para que a corporidade ganhe força.

Cena de Madame Satã, de Karim Aïnouz

É um pouco daí que parte todo o cinema de Karim Aïnouz. Seu primeiro filme é Madame Satã, absoluto tour de force: um filme sobre o submundo, um filme sobre o corpo, o corpo masculino e homossexual.O cinema tende a fugir sempre desse corpo, o corpo cinematográfico é feminino, heterossexual, delicado, etéreo. O corpo de Madame Satã é retratado na contração dos músculo, com excesso de matéria.

É essa linha que Aïnouz suaviza, mas não abandona, em Praia do Futuro. É novamente um filme sobre o corpo, novamente masculino e homossexual, e sobre conflito de estar tão intimamente ligado a ele. Donato, o protagonista, é um homem cujas conexões se dão pelo físico, de maneira concreta, e isso o perturba. Porque há algo de transgressor no corpo muito ancorado na terra e na materialidade.

O cinema opera em duas grandes correntes: a que busca mergulhar o espectador na obra, torná-la a totalidade de sua experiência pelo tempo que durar o filme, e a que busca transformar o filme em uma experiência que remeta o espectador a uma realidade externa, buscando revelar alguma verdade sobre ela. O corpo velado — o corpo dentro das regras — e o corpo transgressor são dois corpos cinematográficos para duas opções de linguagem. Duas formas de tratar um objeto que, pela própria natureza do cinema, é frequentemente central.

Isadora Sinay é cineasta e mestre em ciências da religião com uma dissertação sobre o “silêncio de Deus” em Ingmar Begman. Hoje trabalha com blogs, dá aulas e faz crítica de cinema. Transita entre literatura russa, nouvelle vague tcheca, cinema escandinavo e Andrei Tarkovsky. Escreve também para o Posfácio, cuida do Clube do Livro Erótico e mantém um blog pessoal.

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