republicação/revista Tapume
O Obituário da Crítica de Arte?

“Procedimentos ditos de democratização da arte são na verdade uma política de simplificação”

Caio Sarack
revista Capitu
7 min readJun 15, 2015

--

Há décadas, quando o assunto é arte, outra palavra que o acompanha inequivocamente é “morte”. Obituários e registros de ressurreição da arte (aqui colocamos todas elas, da poesia até a instalação) também evocam — como não poderia ser diferente — a morte ou resistência da crítica de arte. Foi nesse cenário, aliás, que nasceu o Tapume e sua intenção: nos vincos do que parece totalmente ordenado e administrado pela resenha propagandista e mastigada, ainda há espaço para o ensaio da crítica?

Procuramos o professor-doutor do departamento de filosofia da USP, Ricardo Fabbrini, para conversarmos sobre este problema. A rigorosa e (por isso?) extensa entrevista tem o intuito de apresentar e aprofundar os problemas que enfrenta não só a arte como sua apreciação para além do campo confortável da mera opinião.

Professor, muito se diz sobre a crise da crítica de arte hoje. Para citar um exemplo, o poeta Ferreira Gullar escreveu no final do mês de julho, em sua coluna na Folha: uma abertura ‘infinita’ aos novos modos de expressão, materiais e não-materiais (a arte conceitual, por exemplo), acabaram — segundo Gullar — deixando a apreciação crítica suspensa por um frágil fio, sem parâmetros. Como o senhor vê este debate? O que é a crítica hoje pro senhor?

De início precisamos acertar o que estamos entendendo por crítica de arte. Se considerarmos a crítica de arte, em sentido estrito, como resenhas de exposições em jornais e revistas, podemos, de fato, afirmar a crise. Esse declínio, no entanto, não pode ser atribuído à má formação dos articulistas sem mais, mas às próprias regras do jornalismo cultural, tanto na imprensa escrita quanto na audiovisual, TV ou Internet. Essas regras determinam, por exemplo, que o crítico deve a todo o custo simplificar as questões, tirando a gravidade da arte sob o risco de entediar o leitor. Esse procedimento que é apresentado como democratização da informação, é na verdade uma política de simplificação concessiva que contribui para a redução da arte a evento cultural. Some-se às causas da debilidade da crítica, aqui suposta, o fato de que o jornalista opinativo, de graça e leveza duvidosas foi ocupando paulatinamente o papel já desempenhado nessas mídias pelo dito “intelectual crítico”. Mas há também uma crítica de arte, em sentido amplo, que mobiliza um aparato de saberes (história da arte; teoria da arte; filosofia; psicanálise; etc), de modo reflexivo, visando à interpretação de certa produção. São dissertações e teses acadêmicas vertidas em livros, com força crítica muita vez ignorada pela mídia. A propósito do segundo ponto: de fato, como você bem sugere, abriu-se com o fim do projeto da modernidade artística, um leque inaudito de possibilidades artísticas, sejam linguagens, técnicas, ou suportes. Essa dispersão de práticas, não implica, entretanto, ausência de critérios, haja vista que é possível avaliar obras conceituais ou instalações assim como julgamos pinturas ou esculturas, ou seja, enquanto formas artísticas, desde que tomemos essa expressão, extensivamente. Dois exemplos: o gesto que faz irromper, inopinadamente, a poesia na vida, pode ser distinguido do gesto gratuito, do efeito estridente de uma boutade boba; de modo análogo, a arte tecnológica, que eleva os meios técnicos a condição de uma poética, deve ser diferenciada dos efeitos virtuosísticos do eletroentrenimento, seja em um videoclipe ou play-game.

Outra questão patente é a da própria produção artística, como o senhor entende o movimento da tradição artística no período dito pós-moderno? O senhor poderia fazer uma breve arqueologia desse problema?

Pensemos dois períodos. Recordemos, de início, que no fim da década de 1980, ou seja, no contexto do debate sobre a pós-modernidade, houve uma volta às linguagens da tradição evidenciada no retorno à pintura como no dito neoexpressionismo alemão (Markus Lupertz ou Georg Baselitz), na transvanguarda italiana (Salvatore Mangione ou Mimmo Paladino), ou no graffiti painting angloamericano (Jean-Michel Basquiat ou Keith Haring) que, com suas simbolizações, reagiram tanto à desmaterialização da arte, no happening ou na body art, quanto à especialização ou ao hermetismo (no lugar comum do público) da arte minimal e conceitual das décadas de 1960 e 1970. Como segundo período destaco certa produção artística dos anos 1990 aos dias de hoje, na qual é visível a tentativa de embaralhar arte e vida o que a remete ao imaginário das vanguardas artísticas do início do século 20. É preciso distinguir, no entanto, o projeto moderno de superação da relação entre arte e vida de vanguardas como o dadaísmo e o futurismo que visavam à criação de uma sociedade radicalmente outra (a utopia), da arte relacional de artistas como Rirkrit Tiravanija ou Dominique Gonzalez- Foerster que propõem, segundo Bourriaud, “habitar de outro modo a sociedade existente” (a heterotopia). Em suma: a arte nos últimos quarenta anos tem se apropriado de signos da tradição moderna (seja em pintura, instalação, vídeo, ou arte colaborativa) visando, por diferentes vias, ao “retorno do real” o que significa que, afastada a utopia, a arte desde os anos 1980, destituída da força que se quis subversiva das vanguardas, intenta reatar com o “mundo da vida”, por meio de figurações — rara vez alegórica, muita vez, documental — de todo tipo de crise, social, política, econômica, étnica, ambiental, senão do próprio capital, seja na Alemanha ou em Angola.

Hoje, as galerias se multiplicam, as vernissages idem. Como a relação espaço de exposição e obra artística se dá?

R. F.: Em primeiro lugar, vale notar, que como fruidores, integramos hoje, uma rede — muito mais complexa que o circuito de arte do alto modernismo da época de Marcel Duchamp — composta dos organizadores das mostras; da iniciativa privada que as patrocina; dos departamentos jurídicos e de marketing das empresas que as viabilizam; de representantes da política cultural que incentivam por medidas fiscais o investimento das empresas; da seguradora que as garante; do crítico que as interpreta; dos assessores de imprensa que as repercutem no mundo mass-midiático; dos webdesigners que as recriam em sites e portais; de jornalistas e críticos ligados, ou não, às galerias e aos museus que as divulgam; dos curadores que, em regra, as convertem em eventos culturais, além de groupies, promoters, snobs, camps etc. Posto isto, respondendo sua questão, destaco que por um lado temos galerias que são cubos brancos, desertos após asvernissages; por outro lado, temos mostras que atraem filas a perder de vista, como a de Yayoi Kusama e, agora de Salvador Dali, no Instituto Tomie Ohtake; lembrando que este fenômeno, que remonta aos anos 1980, resta atual no mundo global, após tantas crises do capital, como atesta a exposição de tatoo, ora em cartaz no Museu do Quai Branly, em Paris. Deixando de lado a questão das curadorias, ou dos dispositivos expográficos (se cenográficos ou puritanos) indico-lhe apenas uma forma de lidarmos com esse contingente sempre crescente de fruidores, ou de consumidores culturais, a saída já apresentada por Adorno, em 1957, que, assim, parafraseio: “Evidentemente, o combate às exposições arrasa-quarteirões, ou mesmo às minimostras que atraem megapúblico, possui algo de quixotesco: não é possível evitá-las e isso nem seria desejável. É verdade, porém que essas mostras exigem expressamente algo que é requerido na fruição de toda obra de arte (seja pintura ou happenings; desenho ou instalação): algum esforço por parte do observador. Desse modo, a única relação concebível com a arte ainda é, pós-tudo, a de considerar as obras de arte com a mesma seriedade mortal (ou gravidade, como dizíamos há pouco) que tem caracterizado o nosso mundo catastrófico; porque só está livre do mal bem diagnosticado por Valéry (em 1927), aquele que junto com o tablet e o smartphone também entrega, no guarda-valores, seu desejo de entretenimento, aquele que, abrindo-se à indeterminação, sabe exatamente o que quer, escolhe duas ou três obras para deter-se diante delas com enorme concentração como se fossem realmente ídolos, mantendo-se indiferente aos selfies dos visitantes ao lado”.

Professor, por último, o senhor poderia nos indicar um bom repertório, seja crítico ou mesmo de produção, para enfrentar esse novo momento da Arte?

Sem esquecer que o “novo momento da arte” é caracterizado pela multiplicidade de meios, técnicas, e procedimentos, me limitarei a indicar referências teóricas que ajudem a pensar a relação entre estética e política em certa arte contemporânea: O espectador emancipado, de Jacques Rancière. (São Paulo: Martins Fontes, 2012); Estética Relacional, de Nicolas Bourriaud (São Paulo: MartinsFontes, 2009); O retorno do real, de Hal Foster (São Paulo: Cosac Naify, 2014); O que é o contemporâneo? e outros ensaios, de Giorgio Aganbem (Chapecó: Argos, 2009); e Arte contemporânea: uma interpretação, de Anne Cauquelin (São Paulo: Martins, 2005). Ainda a propósito de referências teóricas destaco que o projeto curatorial da 31ª. Bienal de São Paulo: Como (…) coisas que não existem, voltando-se para os novos modos de pensar e agir coletivamente, colocou no centro da mostra a questão das novas formas de sociabilidade. O projeto curatorial dessa edição mobilizou, por esse motivo, diversos autores, que, no rastro de Maurice Blanchot, Georges Bataille, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Roland Barthes e Michel Foucault, têm pensado a relação entre estética e política. Não apenas no regime estético em sentido estrito, mas também nos regimes de trabalho, da clínica ou da amizade, Toni Negri, Michael Hardt; Jean-Luc Nancy; Mauricio Lazzarato, Giorgio Aganbem Francisco Ortega vem figurando formas de vida que se furtam à dita “vida em comum” (como comunidade identitária ou fusional); são diferentes designações de “formas não unitárias”, “não totalizáveis”, não filialistas de comunidade; são “comunidades feitas de singularidades” — porque irredutíveis tanto ao individualismo como ao comunialismo — como tem mostrado, entre nós, Peter Pelbart. Mas atenção: estas referências teóricas operam — insisto — na explicitação de determinada arte contemporânea.

Texto republicado da revista O Tapume, parceira de Capitu.

Veja também:

Entrevista com o jornalista Márcio Calafiori: “O jornalismo cultural brasileiro formava o leitor. Se escrevia e se discutia de tudo. Os jornais eram frequentados por grandes pensadores culturais. Fazia-se reportagem de cultura. Havia a polêmica. Tudo isso ficou no passado”.

Participação do professor Ricardo Fabbrini no 1º Colóquio de Filosofia e Jornalismo, realizado na Tenda Ortega y Gasset, da USP:

Caio Sarack é editor de Tapume. Graduado e mestrando em filosofia pela USP e professor de ensino médio no Colégio Sidarta.

Gostou do texto? Ajude a espalhá-lo por aí clicando em ‘recomendar’ aqui embaixo. E não deixe de conferir a edição atual completa da Capitu ;)

--

--