O Perfeccionismo é uma Meta Inalcançável

Laurell K. Hamilton sobre como cada escritor precisa encontrar sua musa e descobrir como agradá-la para seguir em frente

Lorena Silva
revista Capitu
13 min readFeb 11, 2016

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A autora americana de romances sobrenaturais fala sobre as dificuldades de pesquisa e desenvolvimento ao longo da produção do seu livro mais recente | imagem: Divulgação

[tradução, por Lorena Silva, de “ Perfectionism is an Unattainable Goal”, de Laurell K. Hamilton, originalmente publicado no blog da autora.]

Finalizei o livro e não finalizei. Quero dizer, finalmente digitei “fim”. Os vilões da peça estão mortos, as vítimas foram vingadas o máximo possível — mas não ao ponto de haver ressurreições, de serem devolvidas as vidas que lhes haviam sido roubadas. Até em meu mundo, onde a magia funciona mais vezes do que no nosso mundo real, ela não consegue chegar tão longe. A justiça foi feita, ou ao menos o público em geral estava a salvo dos assassinos. O mistério foi resolvido. Há poucas pontas soltas que esqueci de juntar, porém sempre há em um livro tão longo como este. Para isso servem as segundas versões, para juntar as pontas soltas, e aí reside o problema.

Partes de Crimson Death estão prontas, muito prontas. Eu fiquei estagnada algumas vezes neste livro, esquecendo minhas próprias regras para escrever, e comecei a reescrever antes de ter a primeira versão. Alguns escritores conseguem fazer isso, eu não consigo. Se eu começo a reescrever antes de ter acabado a primeira versão, o perfeccionismo me domina e eu paro. Meu navio da criatividade fica preso no marasmo do perfeccionismo, o que me leva à dúvida, e isso me leva a questionar a mim mesma e isso, por sua vez, é a morte da primeira versão do romance, pelo menos para mim.

Meu primeiro instinto geralmente está certo, depois de ter escrito mais de quarenta livros eu sei disso, ainda assim há a tentação em me prender por querer fazer as coisas… perfeitas.

Escrever é um trabalho misterioso e uma vez que você encontra um processo que funciona para você e sua musa, provavelmente é melhor não mexer com ele. Aprendi isso da maneira difícil mais de uma vez, e agora aprendi de novo

Quando finalmente encontrei espaço no escritório, coloquei uma placa sobre minha mesa onde se lia: “Perfeccionismo é uma meta inalcançável”. Mas eu, de propósito, escrevi perfeccionismo errado. Creio ter escrito “perfaccionisom” ou algo assim e, todos os dias, enquanto sentava para escrever, eu era forçada a olhar para aquela palavra que representava todo meu desejo e frustração escrita tão imperfeitamente. Me deixava louca ter que fitar aquela palavra escrita de forma tão errada. No entanto, me forçava a encarar um dos meus maiores problemas de frente todos os dias, e a começar a me desprender dele. Era difícil cair num ciclo de perfeccionismo quando olhava para aquela maldita placa todos os dias, então ela cumpria sua função.

Quando eu me mudei daquela casa depois de dez anos, eu nunca coloquei a placa sobre a mesa outra vez, porque a lição tinha ficado de forma profunda e dolorosa. Embora depois de Crimson Death talvez eu precise revisitá-la, pois eu nunca tinha caído nas armadilhas do perfeccionismo tão frequentemente ao escrever um livro desde aquela época.

Não tenho certeza do porquê de continuar caindo nessa depois de todo esse tempo, mas eu sei que uma das razões é que Crimson Death era muito difícil de escrever — precisei pesquisar muito. Agora eu sou uma adepta da pesquisa, tanto que meus editores de Nova York disseram que eu faço mais pesquisa para escrever ficção do que a maioria dos escritores faz com não-ficção.

Agora, antes de qualquer coisa, esse pensamento me assustou porque não consigo imaginar o quão maluca por pesquisa ficaria se estivesse escrevendo não-ficção, uma vez que vou tão longe pela ficção. Eu escrevo mistérios, contudo há sempre algo sobrenatural em minhas histórias, então escrevo sobre vampiros, zumbis, demônios, lobisomens, transmorfos de todos os tipos. Algumas pessoas acham que, por eu escrever fantasia, horror e ficção científica, eu pesquiso menos, porque magia, agitar varinhas, é fantasia, afinal, então é só inventar as coisas, certo? Não, absolutamente não, ao menos para mim. Uma das regras é que quanto mais fantasiosa é sua história, mais sólidos seus fatos sobre o mundo real devem ser, porque você precisa ajudar o leitor a acreditar em seus monstros, certificando-se de que os fatos estão corretos. Quanto mais irreal o seu mundo, ou trama, mais sólido seu mundo real precisa ser, porque se o leitor vê que você errou sobre um fato que ele conhece, então não acreditarão em zumbis ou vampiros. Isso é especialmente verdade se eles forem especialistas em armas, no trabalho da polícia, no exército ou em vodu como religião, os quais são apenas alguns dos tópicos que já abordei em meus livros.

Fui muito elogiada por especialistas em armas e policiais pela precisão da minha pesquisa, o que faz tudo valer a pena. Porque, confie em mim, alguém que lerá seu livro sempre será um especialista em algum fato do mundo real que você usar. Se você fizer isso errado, eles vão corrigir você.

Adaptação para os quadrinhos da personagem de Laurell, Anita Blake

O problema com Crimson Death é que a maior parte do livro toma lugar na Irlanda, país que nunca tinha visitado. Então, primeiro eu fui para a Irlanda no verão, o que foi incrível e muito legal e totalmente diferente do que esperava. Na verdade, a Irlanda e suas leis sobre armas e a diferença de atitude entre a polícia americana e a irlandesa jogaram minha trama de Crimson Death totalmente ao vento.

Eu nunca me recuperei da comparação da realidade com meu mundo ficcional. Ou melhor, não conseguia equilibrá-los até ter escrito bastante do livro. Eu nunca tinha tido tantos problemas de verossimilhança tão longe no processo antes, e de tal forma que eu tive que adicionar muitas cenas novas. Não é do meu feitio como escritora, então o que aconteceu? Eu mexi no meu processo, no meu processo de escrita.

Um dos trabalhos que temos como artistas é saber como dar nosso melhor, do que sua musa precisa para se sentir confortável e vir brincar com você. Eu acho que quebrei quase todas as partes do meu processo criativo com esse livro, porque eu continuava dizendo: “Que estúpido, eu sei escrever um livro, não preciso mais fazer isso”. É, talvez precisar de uma parede inteira em meu escritório para elaborar a trama do livro com notas adesivas seja estúpido, porém funciona para mim e tem funcionado por mais de vinte anos, mas, para este livro, eu tirei essas notas de lá e tentei fazê-lo sem elas. Nunca mais faço isso, porque é uma parte do meu processo. Me ajuda a pensar, me ajuda a organizar a trama. Funciona para mim e, se funciona para mim como escritora, eu preciso honrar isso e usar esse recurso.

Eu sei que sou uma escritora que prefere escrever durante o dia, entretanto continuava não indo logo sentar para escrever assim que acordava. Eu sei disso pois, quando acordo e vou para minha mesa, é fatal para mim conversar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto que não seja o livro. Eu não consigo mandar mensagens, ligar, ver e-mails, nada, até que tenha pelo menos começado a escrita do dia. Contudo, tentei tomar café antes de escrever. É mais saudável, certo? Talvez, porém está matando a musa e a mim. Eu não sei uma solução que equilibre comer de forma saudável e a escrita, mas eu sei que se eu for tomar café com minha amada família, minha contagem de páginas do dia diminui ou nem sequer acontece.

Na verdade, aprendi algo novo sobre meu processo no último livro que escrevi, Dead Ice, e isso foi reconfirmado com Crimson Death. Diz respeito a onde estou quando começo o livro, e isso traz muitos dias em que consigo escrever vinte páginas em duas ou cinco horas, então preciso ficar no mesmo lugar até acabar o livro. Além disso, qualquer que seja o chá que esteja tomando, preciso continuar pois o sabor do chá vai me ajudar a continuar escrevendo e mais depressa. Se havia uma vela perfumada queimando, então preciso manter aquele mesmo tipo de vela até acabar. Eu sou uma escritora muito sensorial, então sabores, toques, temperatura, tudo ao meu redor me conduz ao clima de escrever uma história. Pode não estar na página que as pessoas leem, mas está na minha cabeça e com minha musa. Qualquer que seja a faísca divina que me ajuda a escrever, uma vez que atinjo um certo ponto em um livro, preciso fazer notas sobre tudo que estou fazendo, e continuar fazendo isso. Até como as mesmas comidas repetidamente, principalmente quando estou acabando um livro. Tudo me ajuda a permanecer no mundo, na voz, no fluxo daquele livro.

Não quebrei meu processo de escrita de propósito, contudo sempre acredito em tentar coisas novas. Às vezes, funciona e posso alçar voos mais altos, às vezes não funciona de jeito nenhum. Às vezes tentar algo novo me faz querer morrer, nunca é agradável, mas aprendo com a queda

Lembram que disse que Crimson Death tomava lugar na Irlanda? Eu fiz pesquisa lá, mas também comecei a escrever o livro. Em Dublin, eu consegui escrever quinze ou vinte páginas em vários dias, no entanto precisávamos ir para a Inglaterra e depois voltar para casa. Eu não tinha incluído no orçamento ficar meses na Irlanda. Eu não planejei escrever o livro lá, ou sonhei que ele pegaria fôlego no meio da pesquisa, porém ele o fez. Eu sei que sou uma escritora sensorial e muito conectada ao meu ambiente, então era lógico que um livro que seria largamente situado na Irlanda fosse querer ser escrito lá, certo? Bem, sim, é típico da escritora que sou, ainda assim eu fui pega totalmente de guarda baixa quando isso aconteceu. Eu tinha minha primeira convenção inglesa para comparecer, e na minha primeira noite de autógrafos na Inglaterra, eu estava pesquisando para outro livro que seria situado em outro país. Eu estava tentando pesquisar sobre dois livros diferentes ao mesmo tempo, e estaria tudo bem se eu não tivesse começado a escrever o primeiro enquanto ainda estava pesquisando para os dois. Era doloroso parar de escrever Crimson Death para poder cumprir todos eventos planejados na Inglaterra. Eu me diverti muito lá, contudo nunca escrevi na Inglaterra tão bem quanto o fiz em Dublin. Creio que se eu pudesse ter ficado lá e continuasse escrevendo o livro, teria finalizado em tempo recorde, ou ao menos bem antes do prazo.

Eu nunca tinha tentado fazer tanta pesquisa ao mesmo tempo para livros que estava escrevendo. Se eu pudesse fazer tudo outra vez, eu faria a pesquisa, me permitiria pensar respeito e fazer notas adesivas por um ano, e publicaria um livro diferente neste verão, um que fosse situado em lugares da América que conheço bem e já havia escrito a respeito antes, mas aquilo não era o que eu havia planejado ou o que havia dito ao meu editor.

Este seria o livro de Damian, o livro irlandês, e quando me dei conta de que tinha abocanhado mais da pesquisa do que sabia que poderia digerir na época em que eu me permiti escrever, era tarde demais para voltar atrás. Estava comprometida, então fiz o melhor que pude, mas fiz mais pesquisa do que caberia em um livro só. Já estou tomando notas para outro livro sobre a Irlanda, porque aprendi tantas coisas e ainda estou ruminando muito disso.

Se eu for para outro país, poderei fazer pesquisa, mas não posso começar a escrever o livro antes de ter planejado minha vida para ficar naquele país até meu livro estar completo. Se eu for para lá com uma trama na mente e a pesquisa não bater com ela, então vou escrever outro livro. Uma das coisas que me atrasou foi ter tentado fazer a trama original plausível com a pesquisa, o que não consegui fazer de primeira. Eu já tinha quase acabado o livro quando me dei conta do misto de ficção com fatos que tinha feito na trama, nos personagens, em mim e em minha musa.

Estranhamente, eu escrevi muito bem em Dublin, mas nunca escrevi bem em Londres ou Nova York. Eu escrevo bem à beira do mar, ou de um lago amplo, ou com um rio corrente perto do meu escritório. Minha musa gosta de água. Ela também gosta de montanhas, embora eu tenha que ir para as montanhas por tempo suficiente para escrever um livro inteiro. Espero tentar um dia. Minha musa também gosta de paisagens com árvores, então uma floresta funciona também. Eu acho que um pomar à moda antiga também me ajudaria a escrever bem, porém eu nunca tive a chance de escrever tendo a visão de um pomar, então talvez árvores mais selvagens funcionassem melhor para ela. Eu sei que escrevo melhor com um animal no escritório. Eu escrevi meu primeiro livro com minha cacatua, Baby Bird, em meu ombro, e os livros seguintes com nosso pug, Pugsley. Eu tive ao menos um pug comigo por mais de vinte anos. Estamos trocando de pug tendo perdido nosso último, Sasquatch, com catorze anos, mas agora temos dois spaniel japoneses e dois cães de raça mista que são maiores que os spaniels. Três dos cães dormem no meu escritório quando estou escrevendo e escrevo melhor com animais ao meu redor. Este é o primeiro livro que escrevi sem Sasquatch e eu senti muita falta dele. Acho que é um dos motivos pelos quais escrevi Crimson Death tão devagar. Teria que verificar, mas me pergunto se em algum dos meus livros que foram escritos mais devagar do que o normal isso se deu após a morte de algum animal que vinha comigo para o trabalho todos os dias.

Não quebrei meu processo de escrita de propósito, contudo sempre acredito em tentar coisas novas. Às vezes, funciona maravilhosamente bem e posso alçar voos mais altos, às vezes não funciona de jeito nenhum. Às vezes tentar algo novo me faz querer morrer, nunca é agradável, mas aprendo com a queda tanto quanto aprendo quando me levanto.

Por exemplo, eu nunca quis escrever outro livro em um Mac, esta foi a primeira vez que tentei, e quero meu PC de volta! Embora eu ame meu iPad e tenha escrito a maior parte de Dead Ice nele. Mas me deixe acrescentar que não gostei de trabalhar no iPad tanto assim desde que me obrigaram a atualizar e eu não conseguia achar uma capa protetora que me permitisse deixá-lo na vertical e não na horizontal enquanto estivesse carregando. Eu odeio trabalhar com a tela em posição horizontal e lamentar a falta da minha tela vertical, no entanto a capa protetora que encontrei não era fácil de tirar e colocar, e quanto mais eu troco a capa do iPad mais chances se acumulam de quebrá-lo. Acham que estou sendo muito cuidadosa? Matei quatro iPhones antes de conseguir uma capa LifeProof para ele. Agora as capas estragam antes do celular, o que é fabuloso! Eu colocaria uma LifeProof no meu iPad, mas não era prática o suficiente para o trabalho.

Este também é o primeiro livro que escrevi sem minha grande mesa contra a parede. Eu parei de usá-la, e descobri no ano passado nos trópicos que uma mesa bem pequena já servia bem, mas isso era quando tinha uma vista do oceano e um espaço de trabalho muito diferente. Aqui em St. Louis talvez precisasse de uma mesa maior. Mas agora tenho mais estantes para os livros de pesquisa em meu escritório, o que eu precisava. Estou começando a me perguntar se mudamos muito meu escritório enquanto tentava escrever esse livro. Eu gosto do quão amplo é esse cômodo hoje, mas agora eu sei deixar meu ambiente físico absolutamente estático até que um livro esteja finalizado.

Então, aprendi muito do que não fazer enquanto escrevo um livro. Algumas coisas eu já sabia, entretanto um tipo de arrogância ou tédio se instala se estou fazendo o mesmo trabalho há muito tempo, e começo a pensar que não preciso de todos esses artifícios. Conheço minha arte. Domino isso! Domino, porém escrever é um trabalho misterioso e uma vez que você encontra um processo que funciona para você e sua musa, provavelmente é melhor não mexer com ele. Aprendi isso da maneira difícil mais de uma vez, e agora aprendi de novo. Eu ainda preciso reescrever/editar Crimson Death e cumprir meu prazo que já está tão perto que posso sentir seu hálito quente eu meu pescoço. Tornei meu trabalho muito mais difícil tentando mudar tanto como ele funciona. Eu não me recuperei disso, mas o livro está, de alguma forma, chegando ao final. Se você chama sua musa de faísca divina, inspiração, talento, gênio, ou se pensa que precisa de um certo tipo de amante ao seu lado — honre isso. Se consegue escrever melhor num cômodo com paredes azuis, pinte seu escritório de azul. Se a visão de água o ajuda a criar, encontre um lugar com aquela visão. Se precisa de um quarto escuro e sem janelas por que a isolamento alimenta sua musa, então encontre esse canto escuro e escreva. Se você for um escritor que escreve melhor pela manhã, acorde e faça isso. Seja qual for a hora que sirva melhor para sua musa, encontre-a e guarde esse momento como uma receita secreta de um tempero secreto, porque, enquanto escritor, este é absolutamente o segredo para sua produtividade. O que quer que alimente sua musa e ajude as palavras a fluir, aproprie-se disso, lembre-se disso, e uma vez que tenha encontrado um processo apropriado, pare de ferrar com ele.

Leia também:

Para outra discussão sobre as relações entre fantasia e realismo, leia “A Fantasia Inverossímil, ou: Thor”, de Duanne Ribeiro, no Digestivo Cultural.

Laurell K. Hamilton é uma escritora de fantasia e romance. Graduada em inglês e biologia pelo Marion College (hoje Indiana Wesleyan University), é autora de duas séries: Anita Blake: Vampire Hunter — sobre Anita Blake, uma reanimadora de zumbis profissional, executora de vampiros e consultora sobrenatural para a polícia — e Merry Gentry, centrada em Meredith Gentry, uma detetive particular que enfrenta diversas tentativas de assassinato. As duas séries são publicadas no Brasil pela Rocco. Visite seu site.

Lorena Silva é graduanda em letras com habilitação em língua inglesa e língua portuguesa e suas literaturas, pela Faculdade Santa Fé de São Luís, no Maranhão. É autora de romances e contos para jovens adultos. Conheça seu blog e a página do seu livro La Lune.

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Lorena Silva
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Graduanda de Letras com ênfase em Língua Portuguesa e Língua Inglesa e suas respectivas literaturas, Faculdade Santa Fé. Escritora. Residente de São Luís, MA.