Obediência, Revolta, Virtude

Como devemos agir diante das leis? É preciso, em nome da manutenção do acordo fundamental da sociedade, tolerar os deslizes?

Wagner Artur Cabral
revista Capitu

--

1.

A cena retratada pela pintura A Morte de Sócrates, de Jacques-Louis David (acima), finalizada em 1787, é repleta de detalhes cifrados. A maioria dos artistas gostava de passar mensagens em suas telas, e o trágico fim de Sócrates deve ter parecido uma oportunidade e tanto. O pensamento do filósofo grego chegou até nós principalmente por meio de seu mais fiel discípulo, Platão, que registrou nos chamados diálogos socráticos a sabedoria e argúcia de seu mestre. Em virtude de sua fabulosa capacidade argumentativa, Sócrates foi aparentemente considerado poderoso demais para fazer parte da pólis ateniense. Na realidade não há muita certeza sobre qual exatamente foi a causa da queda de Sócrates, mas vamos ficar nesses termos. Qualquer que tenha sido o motivo exato, era evidente que ele se tornara um estorvo para parte de Atenas, que achou justo excluí-lo. Sua pena foi dura: beber um cálice de cicuta, aceitando assim a sentença final.

Voltemos ao quadro. Nela Jacques-Louis deixou, como já dito, alguns recados. Ao fundo, subindo as escadas está, em meio a uma despedida melancólica e simbolicamente distante, a esposa de Sócrates. Ela seguiu adiante, não faz parte da guerra em questão. A grande maioria dos presentes está desesperada. São os admiradores do filósofo. Eles estão em prantos, desalentados. Muitos não conseguem nem sequer observar a cena. Coube a um deles, justo o que traja vermelho, entregar a dose de veneno.

Em períodos nos quais grupos como os black blocs cometem atos polêmicos sob pretexto político, é preciso levar a público a discussão: esses atos são crime ou mera expressão política? Qual a resposta justa a eles?

Três figuras, contudo, permanecem serenas, a seu modo. Com um braço repousado sobre a coxa de Sócrates está Críton. Homem de posses e amigo próximo do filósofo, ele parece resignado com o destino do compadre. Ao pé da cama, em aparente letargia após ter deixado de lado pergaminho e tinta, está um Platão envelhecido. De todos o mais vivaz é Sócrates. Ele aponta aos céus e ativamente busca a taça. É preciso cumprir um dever, é preciso satisfazer a justiça. No diálogo Críton, temos um indicativo do que ocorreu nessa situação. Diz Críton, na descrição platônica:

(…) Sócrates, acho que cometes uma injustiça entregando-te, quando te podes salvar; estás trabalhando para que te aconteça exatamente aquilo a que visariam teus inimigos — a que visaram quando decidiram tua perda. De mais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus filhos; podendo criá-los e educá-los, tu queres ir-te, abandonando-os; no que te concerne, fiquem eles entregues à sua sorte; a deles, é natural, será a sorte costumeira dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos, ou sofrer juntamente com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem escolhendo a sua maior comodidade. Deve-se, porém, escolher o que escolheria um homem bom e de brio, ao menos quando vives dizendo não ter outra preocupação na vida senão a virtude. Eu, sabes? tenho vergonha por ti e por todos nós, os teus amigos, de que atribuam a covardia de nossa parte tudo o que aconteceu contigo: o teu comparecimento diante do tribunal, quando podias deixar de comparecer; a maneira pela qual o processo mesmo correu; por fim, este desfecho, como que o mais ridículo da história, a impressão de que nos esgueiramos, covardes e sem brio, sem termos providenciado, nem nós outros nem tu, a tua salvação, possível e realizável se tivéssemos algum préstimo. Evita, Sócrates, que essa pecha, em acréscimo a tua desgraça, caia sobre ti ou sobre nós. Vamos, resolve-te, que já não é tempo de resolver, mas de ter resolvido. Só há porém, uma resolução, e tudo deve estar feito na noite de hoje; se nos demorarmos
mais, já não será mais realizável nem possível. De toda forma, Sócrates, dá-me ouvidos e não procedas de outra maneira.

Críton é duro. Acusa Sócrates de fraqueza em nome da virtude. Ele suplica, como sua contraparte na obra Jacques-Louis, para que seu amigo ouça a razão e repense seus atos. A saída é simples. Ainda que resulte em infâmia para todos seus comparsas, é possível ainda fugir da injustiça, fugir da lei.

Sócrates obviamente discorda dessa visão.

Bem, reflete no seguinte. Se, no momento em que eu estivesse para me
evadir daqui, ou como quer que se diga, chegassem as Leis e a Cidade,
assomassem perguntado: “Dize-nos, Sócrates: que pretendes fazer? Que outra coisa meditas, com a façanha que intentas, senão destruir-nos a nós, as Leis e toda a Cidade, na medida de tuas forças? Acaso imaginas que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as sentenças proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas por obra de simples particulares?” — Que responder, Critão, a essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo por um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das sentenças proferidas. Acaso responderei que a Cidade me agravou, não me julgou, conforme a justiça? Direi isso? Direi o quê?

E continua:

E se então, as Leis dissessem: “Sócrates, o que convencionaste conosco
foi isso, ou que submeterias às sentenças que a Cidade proferisse?” Se me
admirasse dessa pergunta, diriam, talvez: “Sócrates, não te admires de nossas perguntas, mas responde-nos, porque tu também costuma lançar mão de perguntas e respostas. Vamos, pois; qual a queixa contra nós e contra a Cidade, que te move à nossa destruição? Para começar, não fomos nós que te demos nascimento e não foi por nosso intermédio que teu pai desposou tua mãe e te gerou? Dize: apontas algum defeito naquelas dentre nós que regulam os casamentos? Achas que não estão bem feitas? — Não aponto defeitos, diria eu. — Então nas que regulam a criação e educação do filho, que também recebeste? Aquelas que de nós regem a matéria, ao mandarem que teu pai te ensinasse música e ginástica, não o fizeram com acerto? — Fizeram, diria eu. — Bem; depois que nasceste, que te criaram e que educaram, poderia, de começo, negar que nos pertences, como filho nosso e nosso escravo, assim tu com teus ascendentes? E, se assim é, julgas ter ao menos os mesmos direitos que nós? Julgas ter o direito de fazer-nos em represália o mesmo que tentamos fazer a ti? Ora, em face do teu pai não terias os mesmos direitos, nem em face de teu amo, se amo tivesse, para retaliar o que te fizessem, nem para revidar doesto por doesto, golpe por golpe, nem para outros desforços; mas, em face da pátria e das Leis, se tentarmos destruir-te por assim acharmos de justiça, terás o direito de tentar, da tua parte também, dentro das tuas forças, destruir-nos em desforra a nós, as Leis e a pátria? E dirás que, assim procedendo, obras com justiça tu, que verdadeiramente tomas a virtude a sério?! Que sabedoria é a tua, se ignoras que, acima de tua mãe, teu pai e todos os outros teus ascendentes, a pátria é mais respeitável, mais venerável, mais sacrossanta, mais estimada dos deuses e dos homens sensatos? Que se deve mais veneração, obediência e carinho a uma pátria agastada do que a um pai? Que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente o que ela manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja a convocação para ser ferido ou morto na guerra? Tudo isso deve ser feito e esse é o direito — não esquivar-se; não recuar; não desertar o posto; mas, quer na guerra, quer no tribunal, em toda a parte, em suma, cumpre ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a revogação palas vias criadas do direito.

(…)

“Vê, portanto, Sócrates” diriam talvez as Leis, “temos razão em tachar
de injusto o que intentas fazer-nos agora. Nós que te geramos, te criamos, te
educamos, te admitimos à participação de todos os benefícios que podemos
proporcionar a ti e a todos os demais cidadãos, sem embargo, proclamos termos facultado ao ateniense que o quiser, uma vez entrada na posse dos direitos civis e no conhecimento da vida pública e de nós, as Leis, se não formos de seu agrado, a liberdade de juntar o que é seu e partir para onde bem entender. Se, por não lhe agradarmos nós e a cidade, algum de vós quiser rumar para uma colônia ou quiser fixar residência em qualquer outro país, nenhuma de nós, as Leis, o impede ou proíbe de seguir para onde lhe parecer, levando o que é seu. Mas quem dentre vós aqui permanece, vendo a maneira pela qual distribuímos justiça e desempenhamos as outras atribuições do Estado, passamos a dizer que convencionou conosco de fato cumprir nossas determinações; desobedecendo-nos, é réu redobradamente: porque a nós que o geramos não presta a obediência; porque não o faz a nós que o criamos e porque, tendo convencionado obedecer-nos, nem obedece nem nos dissuade se incidimos nalgum erro;

Sócrates é ainda mais duro. Enuncia uma obrigação indelével entre o sujeito e a Sociedade que é sua mãe, companheira e serva. Enxerga essa relação como irrenunciável, sob pena de fazer ruir as leis e a vida em coletividade. Ele propõe uma espécie de contrato social, que implicaria basicamente em cumprir aquilo acordado pela pólis. O discurso elegante e compenetrado parece defender com vigor uma sociedade de nobreza e virtude, em que a coletividade opera em um sentimento conjunto de justiça pelo bem comum.

2.

Entre protestos recorrentes e a constante deslegitimação das instituições, o Brasil tem se deparado com reiteradas situações em que a visão de sociedade virtuosa de Sócrates parece soar como algo bem pior que um anacronismo, praticamente um achincalhe. Quem poderia, no atual estado das coisas, defender a ferro e fogo as determinações da nossa sociedade, seja aquelas impostas pelo Estado, seja aquelas fruto de vontade da maioria? Se por um lado as instituições preocupam — há um velho ditado que diz que no Brasil o Executivo legisla, o Legislativo julga e o Judiciário executa — o desapego aos Direitos Humanos que muitos brasileiros legaram da Ditadura incomoda.

O romancista e filósofo francês Albert Camus escreveu em O Homem Revoltado que o espírito da revolta só pode existir em uma sociedade em que uma igualdade teórica obscurece grandes desigualdades factuais. A Constituição Cidadã promete muito, e a vida cotidiana — sobretudo nas grandes cidades — parece ser combustível dessa sensação de indisposição frente ao establishment, ao status quo, a tudo isso que está aí.

Diante desse descompasso parece oportuno parar e questionar: como devemos agir diante das leis? Como devemos nos portar diante do injusto? É preciso, em nome da manutenção do acordo fundamental da sociedade, tolerar os deslizes?

Todo conjunto de normas — ou “ordenamento jurídico” — se presume obrigatório. Afinal, normas existem para serem cumpridas. Mas existe um espaço no pensamento lógico do sistema para desafiar a legalidade e aplicabilidade das leis: essa interpretação cabe ao judiciário, e pode ser feita por meio de uma ferramenta pouco discutida, a desobediência civil.

O conceito foi originalmente cunhado pelo escritor norteamericano Henry David Thoreau (no livro de mesmo nome), que defendia a obrigação de o cidadão insurgir-se ante um Estado opressor. Ainda que no caso dele o perigo talvez fosse um pouco exagerado (o estopim da sua revolta particular foi um aumento de impostos para financiar esforços de guerra), em vários outros momentos da história humana a cordialidade da obediência inquestionada causou prejuízos incalculáveis.

Em sentido inverso, Hannah Arendt relata em seu livro Eichmann em Jerusalém com um tom até zombeteiro o desrespeito escrachado que as autoridades dinamarquesas demonstraram diante dos invasores nazistas, que demandavam a entrega imediata de todos os judeus. Não só os dinamarqueses sabotaram qualquer medida destinada a separar judeus (quando os alemães propuseram o sistema da estrela amarela o Rei foi o primeiro a se oferecer para usá-la, bem como a maioria do funcionalismo público da Dinamarca), como garantiram aos judeus o direito de não serem perturbados em suas casas, protegidas pela lei local. Eles só precisariam acompanhar os alemães se desejassem. Desnecessário dizer que o extermínio de judeus na Dinamarca foi um fracasso retumbante. Como relata Arendt:

Quando encontraram resistência baseada em princípios sua “dureza” se derreteu como manteiga ao sol, e eles foram capazes até mesmo de demonstrar um tímido começo de coragem genuína. O ideal de “dureza", exceto talvez para uns poucos brutos semi-loucos, não passava de um mito de auto-engano, escondendo um desejo feroz de conformidade a qualquer preço, e isso foi claramente revelado nos julgamentos de Nuremberg, onde os réus se acusavam e traíam mutuamente e juravam ao mundo que sempre “haviam sido contra aquilo", ou diziam, como faria Eichmann, que seus superiores haviam feito mau uso de suas melhores qualidades. (Em Jerusalém, ele acusou “os poderosos” de ter feito mau uso de sua “obediência". “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau governo é azarado. Eu não tive sorte.”)

No caso mencionado, o povo dinamarquês ridicularizou as tropas alemãs, esfacelando seus ameaçadores, que não entendiam a lógica do desrespeito ao passo que exaltavam patologicamente seu dever de obediência à cadeia de comando.

Quando um cidadão se insurge contra as leis e o sistema — o que é um pouco diferente do caso dinamarquês, já que o foco está no desejo do indivíduo ou de um grupo de indivíduos — ele pode optar por desobedecê-las. A resposta natural do sistema é garantir sua obrigatoriedade, punindo o infrator pelo desvio. Um sistema que não pode garantir suas leis é caduco, como bem adiantou Sócrates.

Aí entra o judiciário: Nas democracias liberais, mais comuns atualmente, o correto é que haja avaliação da justeza das normas. Nesse momento, na apreciação humana do julgador, será dada oportunidade ao infrator de tentar comprovar que aquela lei não faz sentido, é anacrônica ou flagrantemente injusta. Diante de apoio popular, pode-se pressionar pela mudança das leis ou deslegitimação do sistema como um todo.

Foi basicamente essa a estratégia do famoso advogado franco-tailandês Jacques Verges, mundialmente famoso por defender todo tipo de criminoso internacional em causas criminais espetaculares. De ex-nazista (Klaus Barbie) ao assassino internacional Carlos “Chacal” e o líder do Khmer Vermelho, Pol Pot. A lógica de Verges era submeter seus casos a um “julgamento de ruptura”, em que o caráter de exceção que cada um de seus clientes estava sendo submetido seria posto às claras, denunciando o absurdo da situação. Comprovando a injustiça do julgamento, se demonstraria ainda a injustiça das leis. Certo ou errado ao defender crápulas, Verges instilava uma tensão crítica. A quem servem as leis?

Em caminho diametralmente oposto ao de Sócrates, Verges e Thoreau postulam um dever de contestação, de questionamento das normas. Essa postura é mais condizente, inclusive, com o ambiente democrático. Se as leis forem justas, devem subsistir. Acaso sejam consideradas inadequadas, devem ser suprimidas.

Um dos grandes desafios diante de um período de instabilidade institucional, no qual grupos como os black blocs cometem atos polêmicos sob pretexto político, é preciso levar a público a discussão: esses atos são crime ou mera expressão política? Qual a resposta que o Direito e a Sociedade reputam justa a eles?

Provavelmente Sócrates diria que aqueles que estão sujeitos às Leis e à Pátria devem cuidar dela. Mas, diante da situação de profunda injustiça social e política no Brasil, talvez valha a reflexão sobre quem, afinal de contas, escreve as leis do Brasil, e para quem elas são feitas. Somente a partir desse ponto podemos avaliar quais defesas são virtuosas, e quais não passam de infâmia, colaborando com a opressão.

Leia também:

"Passe Livre, FdE e Black Blocs — enquanto Mídia", Duanne Ribeiro

"Política é Estado de Alerta", Hannah Arendt, citada pelo Microfilos

Wagner Artur de Oliveira Cabral é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já atuou como docente em diversas instituições de ensino superior e atualmente reside e trabalha com relações internacionais em São Paulo.

--

--

Wagner Artur Cabral
revista Capitu

I've always thought of myself as kind of an acquired taste.