entrevista/Rodrigo Gerace
A Liquidez Surpreendente do Desejo

O cinema como espaço de disputa pelos sentidos e modos de representar a sexualidade, entre os esquemas mainstream de controle e a transgressão emancipatória

Duanne Ribeiro
revista Capitu
8 min readMay 16, 2016

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“A história do cinema também é a história da censura do sexo. Na França, acabou de ser censurado O Anticristo, de Lars Von Trier (foto), além do Azul é a Cor mais Quente, de Abdellatif Kechiche. Censurar o sexo é o primeiro passo para censurar tudo” | imagem: frame do filme

O pesquisador Rodrigo Gerace lançou neste semestre o livro Cinema Explícito: Representações Cinematográficas do Sexo, um estudo das maneiras pelas quais a sétima arte, dos seus primórdios à produção contemporânea, pôs em cena a sexualidade. Nesta entrevista, o autor comenta as temáticas da obra, em uma conversa sobre sexo e discurso, corpo e política, desejo e controle. Gerace fala sobre o que há de falso em esquemas classificatórios como erótico, obsceno e pornográfico, indica obras com perspectivas subversivas e/ou libertárias e discute como as novas tecnologias alteram o modo de entender o erotismo.

Cinema Explícito: Representações Cinematográficas do Sexo é publicado pela Edições Sesc e originalmente foi a tese de doutorado de Gerace, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa segue o interesse dos seus projetos acadêmicos anteriores: o mestrado em Artes Visuais, pela UFMG, “O Cinema de Lars von Trier: Dogmatismo e Subversão”, e o trabalho de graduação em Ciências Sociais, “Cinema e subversão: o épico em Dogville, de Lars von Trier”, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ele também foi o curador da mostra CinePrivê — O Erotismo no Cinema, em São Paulo.

Em suma, o depoimento de Gerace parece anunciar, sobretudo, os potenciais emancipatórios das perspectivas fílmicas que não submetem a sexualidade a figurações redutoras ou mistificadoras — sua curiosidade se dirige às obras que ampliam nosso campo de experiência: “O corpo é centro de resistência, espaço político para criação e contraprodução de prazer. Sexo é explosão”.

Parece ser possível dizer que, quanto ao erotismo quando representado pelo audiovisual, temos duas experiências típicas, polarizadas: uma, que se reduz à sugestão, o ato sexual apenas indicado por metonímia ou algo recurso do tipo, cedendo às imposições de pudor; dois, um viés, digamos, publicitário, característico do pornô, em que o hiperbólico, o performático, assumem a dianteira. Você concorda com esses pólos, eles serviriam para organizar os tipos de experiência audiovisual erótica que nos são oferecidas? Ou pensa essa classificação de outra forma?

Tais pólos são falsos, simbólicos, construídos culturalmente a partir dos critérios de ordenação e transgressão do obsceno nas sociedades. Embora etimologicamente distintos, erotismo e pornografia estão juntos e versam sobre prazeres e obscenidades. Ocorre que a indústria cinematográfica potencializou esta suposta distinção, principalmente após os anos de 1960, numa tentativa de apresentar e regulamentar para o público aquilo tido como soft ou hardcore. Mas são critérios subjetivos, morais. O esforço em tentar delimitar a configuração visual do sexo em erótica ou pornográfica também é o desejo de limitar a expressão sexual, categorizá-la falsamente em pólos.

Essa classificação, se o sexo é isto ou aquilo, revela uma “luta simbólica” pela legitimidade das representações e das práticas sexuais, luta na qual se envolve a aceitação ou a transgressão por meio da distinção social e artística. No senso comum, a pornografia não é apenas o sexo explícito, mas o sexo dos outros, o popular, o massificado; enquanto o erotismo é tido como algo sofisticado, elitista, não ameaçador.

O cinema mainstream normatiza a forma de se fazer sexo, representando-o de modo chapado, numa lógica que sublima cenas de sexo, cortando-as para o café da manhã

Além disso, ao classificar algo como “pornográfico”, é preciso notar que não há nada que seja pornográfico em si mesmo, ou seja, não existe pornografia como algo dado, conforme lembrou Susan Sontag. A noção de pornografia é cultural, tem fundamento na perspectiva histórica da obscenidade. Seu significado esbarra nas categorias de representação e regulamentação construídas pelo poder biopolítico na modernidade. E vale ressaltar que não há somente um tipo de produção pornográfica. Existem diversas pornografias, da mais tradicional às mais ousadas, expandidas, queer, que redimensionam o formato mainstream das convenções cinematográficas sobre o sexo.

As formas de representar o erótico parecem conter éticas do corpo próprias. Por exemplo, vemos com freqüência cenas de filmes em que os personagens como que são tomados pelo desejo sexual — jogam todos os objetos de uma mesa no chão, rasgam roupas etc. O sexo seria explosão em vez de elaboração; sabemos que isso é uma forma de ver as coisas somente. Você acha que é possível extrair esse tipo de ética dos relacionamentos a partir das formas de representação erótica? O que os filmes podem dizer de como lidamos com os outros?

Penso o corpo de forma expandida, ancorado na liquidez do desejo que sempre nos surpreende. O corpo desejante — ou corpo-falante, em remissão à Paul Preciado — não tem regra fixa. O corpo é centro de resistência, espaço político para criação e contraprodução de prazer. Sexo é explosão e elaboração, e é também discurso. O cinema tradicional, mainstream, busca normatizar a forma de se fazer sexo, representando-o de modo chapado ao longo da história dentro de uma lógica da elipse que sublima cenas de sexo, cortando-as para o café da manhã. Este cinema indicia que não é palatável revelar o sexo, ou seja, uma lógica imersa na noção burguesa de construção da intimidade e das experiências privadas. Por outro lado, diversas cinematografias, do underground ao new queer cinema, nos dizem que sexo pode ser algo interessante, pelo êxtase e prazer, sem censuras, transparente.

Cada forma de representar o corpo no audiovisual implica em uma forma de entendê-lo. Especulando, diria que no pornô, a imagética (e o público que assiste, pelo menos enquanto assiste) vê a ação do corpo como mecânica (estímulo-resposta). Como você vê essa ideia, de que os filmes permitem ver modos de interpretar o próprio corpo?

O cinema apresenta diversas maneiras de interpretar o corpo e o sexo. Godard diz que o único cinema do real é o pornográfico. Evidente que se trata de uma provocação, pois a questão é: como interpretar sexo explícito a não ser realizando-o? Então, o sexo, ainda que encenado para as câmeras, perfura a camada fictícia da encenação. Os pesquisadores Gerard Rabkins e Al di Lauro dirão também que o cinema pornográfico silencioso (stag film) tem um caráter antropológico por revelar a alteridade. Tais obras, segundo eles, documentam como cada época se concebe sexualmente. Assim, os filmes permitem diversas interpretações sobre sexo, sejam eles implícitos ou explícitos, pois revelam variações culturais em torno de tabus, padrões e transgressões que fixam imagens sobre o corpo e o dispositivo “sexo”.

Não se dissocia a discussão sobre sexo e sexualidades de mudança social. O debate sobre emancipação tem sentido quando há o empoderamento de liberação sexual

É uma visão recorrente achar que a pornografia traz uma visão mecânica do sexo. Todos fazemos sexo explícito, mas temos a impressão de que não é a mesma coisa quando o comparamos ao cinema pornográfico. Tal visão teria mais sentido quanto à pornografia tradicional, que geralmente limita-se ao show genital e a um formato repetitivo de performar para as câmeras. Contudo, há diversas pornografias na história do cinema, desde o underground às mais contemporâneas, que radicalizam esta estrutura. Andy Warhol fez um pornô transgressor em 1968 chamado Blue Movie; Man Ray fez um curta pornô de vanguarda em 1928; Luis Buñuel tinha um projeto pornô; Lars Von Trier produziu Hot Men Cool Boys, serie de pornôs gays com estilo kitsch — todos com representações pornográficas alternativas. Entre outros.

Hoje, temos a post pornografia, do pornô feminista de Erika Lust ao trabalho de Maria Llopis. A tendência postporn, aliada ao tom queer, remodela a forma de encarar, produzir e sentir a pornografia, transformando o dispositivo pornográfico em espaço de prazer e subversão das identidades sexuais, de reconfiguração das práticas sexuais marginalizadas, uma contrabiopolítica.

Cena de XConfessions, de Erika Lust

Em outra chave, o erotismo parece poder ser usado como medida da liberdade de expressão em uma sociedade. A medida do que é permitido dizer, da intensidade da censura, se põe clara quando falamos de sexo. Como, nas obras que analisou, se dá a relação entre erotismo e política? O cinema nesse sentido é sempre tensionamento ou há variações?

O sexo como política do desejo foi representado de modo libertário por alguns cineastas, muitos contraculturais, de Paul Morrissey a Pasolini, de Kenneth Anger a John Waters, de Bertolucci a Godard, de Gregg Araki a Pedro Almodóvar, de Barbara Hammer a Catherine Breilat. Não há como dissociar a discussão sobre sexo e sexualidades de qualquer perspectiva de mudança social. Como dizia Herbert Marcuse, o debate sobre emancipação, direitos humanos, liberdade de expressão, tem sentido quando há o empoderamento de liberação sexual num nível subjetivo e coletivo. Evidente que há muita tensão contrária. A história do cinema também é a história da censura do sexo. Desde o Código Hays, que vetou a representação do sexo e das sexualidades nos EUA de 1934 a 1966, até os movimentos contemporâneos conservadores que buscam a evangelização do desejo em prol da normativa não-libertária. Na França, acabou de ser censurado O Anticristo, de Lars Von Trier, além do premiado Azul é a Cor mais Quente, de Abdellatif Kechiche. O Brasil, ainda que pornô, vive de modo geral um pânico do orgasmo e dos prazeres explícitos, reiterando tabus, machismo e homofobia, infelizmente. Mas creio na potência do empoderamento que estamos construindo contra tais normativas. Censurar o sexo é o primeiro passo para censurar tudo.

A produção e consumo de imagens hoje é intensa, constitui-se como um dos modos essenciais da nossa relação com os outros e com a realidade. Nesse campo, a representação de si mesmo, com recursos audiovisuais, como ser erótico, sexual, é frequente (vídeos amadores, por exemplo, ou ainda, no campo da fotografia, nudes do Tinder e até as “selfies pós-sexo”). Como um Janela Indiscreta invertido, em que o sujeito se objetifica a si mesmo. Você pode comentar esse cenário, contrapô-lo aos resultados da sua pesquisa (as relações das formas como os cineastas representaram o erótico e como a massa representa o erótico por si).

Acho interessante essa produção e consumo da representação de si mesmo por meio dos recursos audiovisuais e com ênfase erótica. Isso reapropria ou subverte o dispositivo pornográfico tradicional: em alguma medida, as pessoas querem falar de sexo e ter prazer, ainda que pelo voyeurismo. A internet revolucionou a forma de fazer e de representar o sexo. Há sexo online em chat e webcam; há encontros por apps; há tudo no domínio banda larga ou na deepweb. Você só precisa de uma boa conexão… A tecnologia permite que as pessoas façam seus próprios filmes, de modo caseiro e espontâneo, gravado ou ao vivo. E tudo dá a sensação da experiência mais “real, radical e verdadeira”. No culto ao “amador” e ao flagra transparece certa “vontade de verdade”, como se o sexo visto na webcam fosse mais “real” que o sexo pornográfico. Fora isso, tem programas interessantes criados na virtualidade: Quiet: We Live in Public (2009); Young American Bodies (2006); Real People, Real Life, Real Sex (2006); Barcelona Sex Project (2007); Blue Artichoke Films (2004–2014); e Beautiful Agony: Facettes de la Petite Mort (2004).

Duanne Ribeiro é editor da Capitu. Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília, mestrando em ciência da informação, pós-graduado em gestão cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e graduado em filosofia, todos pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, membro da equipe editorial da revista de política e ideias Maquiavel e colunista do Digestivo Cultural.

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Duanne Ribeiro
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Jornalista. Mestre em Ciência da Informação, pós-graduado em Gestão Cultural e graduado em Filosofia (USP). Analista do @itaucultural. Editor da @rcapitu.