Jonathan Russell Clark:
Na Verdade, Crítica é Literatura

Um crítico é um artista; eu sou um artista. Escrevo porque amo a língua e porque amo usar a língua

Duanne Ribeiro
revista Capitu
6 min readJun 9, 2016

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“Para desenvolver as habilidades comunicacionais necessárias para produzir mesmo a resenha mais mundana e banal ainda se requer muitos anos de leitura e redação — e não apenas em doses regulares, mas cavalares: centenas de livros lidos e milhares de páginas escritas” | imagem: CCAC North Library

[Actually, Criticism is Literature, texto de Jonathan Russell Clark, originalmente publicado no Literary Hub.]

De vez em quando, um crítico sente ser necessário definir o que acredita ser o seu papel na comunidade literária. Com frequência, essa definição toma a forma de prefácios ou introduções para coleções de ensaísmo e crítica — o sentimento é quase de justificação envergonhada, como se sem uma filosofia completamente desenvolvida sobre a vitalidade da crítica um livro preenchido com esse conteúdo seria considerado supérfluo ou de mau gosto. Em outras instâncias, tais declarações surgem como manifestos, discursos ou reavaliações sugeridas pelos novos tempos. Ou — nos casos, digamos, de Samuel Johnson, Edmund Wilson ou Northrop Frye — tantas defesas da utilidade da crítica literária estão presentes nos seus trabalhos que, em certo sentido, sua obra funciona como uma insistente racionalização pela continuidade da própria existência.

Sendo um crítico, eu amo esses ensaios; me empolga ver como outros definem o que eu faço. Ainda mais, muitos desses escritores trouxeram brilhantes insights a respeito do que muitas vezes é uma vocação rejeitada. Mas mesmo que eu aprecie esses esforços dos meus companheiros críticos, há um aspecto de quase todas essas defesas do qual eu discordo profundamente: a implicação de que a crítica está separada da literatura que descreve, como se romancistas, poetas, dramaturgos e escritores de não-ficção fossem os jogadores em um jogo no qual nós críticos somos meramente os juízes. O que está implícito em muitas defesas da crítica é esse hiato entre observador e observado, entre artista e não-artista.

Isso é bobagem. Crítica também é literatura. Agora, eu não quero dizer que a crítica está ao mesmo tempo dentro e fora da literatura. Não, não, não. A palavra “também” insiste na inclusão da crítica como um gênero literário, e não como um assunto que permanece fora dele. Quando vista como uma entidade separada, a crítica se torna algo como o Grande Irmão — a autoridade pronta para surgir do nada e debelar o artista desavisado; essa visão faz da crítica um sofrimento pelo qual os autores publicados devem passar; e isso desvaloriza o trabalho de todos os que se tornaram críticos porque amam a literatura e amam escrever.

Essa não é uma coisa óbvia sendo ignorada o tempo todo? Que os críticos são, de fato, escritores também? Que eles não estariam publicando e trabalhando se não pudessem escrever? E, além disso, escrevendo muito bem? É preciso muita dedicação e disciplina para se tornar um bom escritor, independente do tipo de escrita com que você lida. Para desenvolver as habilidades comunicacionais necessárias para produzir mesmo a resenha mais mundana e banal ainda se requer muitos anos de leitura e redação — e não apenas em doses regulares, mas cavalares: centenas de livros lidos e milhares de páginas escritas. A construção eloquente e hábil de frases exige tanto esforço para aprender e aprender bem que qualquer desclassificação dos críticos como simples árbitros, comentadores ou gatekeepers do público consumidor parece não só errado como completamente impertinente ao que de fato ocorre.

Os críticos leram os mesmos livros que você leu. Eles foram para as mesmas escolas e cresceram nas mesmas cidades. Eles amam ler com o mesmo fervor e loucura. Eles acreditam na importância dos livros e na beleza da criação literária. Eles escolheram escrever porque, como qualquer romancista ou poeta, isso é o que eles querem fazer e qualquer outra coisa seria se comprometer, seria uma derrota. Críticos se esforçaram para desenvolver suas vozes e lidaram com o mesmo tipo de crítica humilhante que ofereceram aos demais. Eles são — se eu não estou sendo claro — exatamente iguais às pessoas sobre quem escrevem. Com efeito, são tão similares que a divisão entre crítico e não-escritor é muito mais substancial que aquela entre crítico e artista.

Ao arrancar os críticos para fora da literatura, estamos deliberadamente excluindo um grupo inteiro de pessoas que estão do lado dos livros. Eles não são inimigos, não importa o quão dolorosas ou aparentemente maliciosas as suas palavras possam ser. Sim, o trabalho de crítico é necessariamente reacionário — na medida em que usualmente é um trabalho que determina a escrita — mas isso não é verdade para todos os escritores? Não pode a maioria dos romances e poemas e peças ser considerada, pelo menos de algum modo, reações a outras obras? Mesmo se a conexão é precária e ilusória, parece ser razoável dizer que toda arte carrega sua própria crítica, ainda que não nomeie os textos aos quais está respondendo.

É isso, creio, que explica porque as pessoas compram essa ideia de que há uma separação entre as duas práticas: obras de arte são artísticas, textos críticos são crítica. Isso parece rudimentar, mas o que eu quero dizer é que um romance, por exemplo, não vai declarar suas preocupações temáticas cruamente para o leitor. A aventura de ler ficção demanda interpretação, e para muitas pessoas o que faz da arte ARTE é precisamente essa qualidade: que há uma superfície, com todos os seus detalhes práticos e interesses ostensivos, e então há o subterrâneo disso, a verdadeira carne de um romance. A crítica, por outro lado, é com frequência direta, não ambígua, a respeito das suas intenções e significados. Ela não — de modo geral — assume abordagens obscuras, falsamente contidas ou oblíquas; ela declara, afirma, esclarece. E porque a experiência de ler textos críticos é com frequência uma experiência informativa, de aprendizado e elucidação, parece estranho que alguém chame isso de arte quando no mais das vezes a arte foi caracterizada por sua elusividade temática e filosófica. Como algo pode ser arte se não envolve algum processo de entendimento?

Vou dizer como: porque a arte não é sempre artística, pelo menos não no sentido convencionalmente aceito. Nossas definições costumeiras de arte parecem, para mim, lamentavelmente redutoras e perigosamente excludentes. De algum jeito, a crítica é simultaneamente rejeitada como pontual (e, portanto, irrelevante) e promovida como distinta (e, assim, capaz de julgar a partir de um ponto de vista mais completo e desapaixonado). É casual que se fale sobre “os críticos” e que se façam estranhos comentários sobre a sua inépcia coletiva, as incorreções dos seus enfoques ou a falta de apreciação pela beleza, pelo experimentalismo ou pela originalidade. E mesmo assim qual autor não adotaria ter uma pessoa que escreva com amor e precisão sobre o que passou anos construindo? Por que os críticos não podem ser pensados como parceiros, como comparsas, em um mundo onde os livros não estão exatamente por cima da proverbial carne seca? Se a literatura está realmente se tornando mais e mais um interesse de nicho, parece vergonhoso excluir um grupo que os ama tanto quanto os demais.

Um crítico é um artista; eu sou um artista. Escrevo porque amo a língua e porque amo usar a língua para figurar as complexidades da minha vida. Algumas pessoas usam suas famílias e amigos como inspiração, outras garimpam a história. Ainda outros acham suas musas na calma da natureza, e alguns no caos da cidade. Eu me encontrei nos livros — é por meio deles que sou capaz de expressar não só o que penso da literatura, mas o que eu acredito sobre a vida. Eu não sei porque os livros se tornaram esse veículo para mim, não obstante compreensão nunca foi um requisito para fazer arte. É mais o mistério da arte que a faz tão atraente. Não tenho pista de por que a crítica me cai tão bem, de por que eu amo escrever esse tipo de texto todos os dias. Porém eu nunca pensaria em pedir a um poeta que explicasse o seu amor por poesia, ou um romancista o seu amor por ficção — e peço que você não peça isso dos críticos. Amamos como todos amam: enigmaticamente, intuitivamente e, mais importante, com cada fração do nosso ser.

Jonathan Russell Clark é crítico literário. Escreve para o Literary Hub, para o Georgia Review e para o The Millions. Seu trabalho já foi publicado na The New York Times Book Review, Tin House, The Atlantic, The New Republic, LA Review of Books, Read It Forward, The Rumpus, Chautauqua, PANK e outras.

tradução

Duanne Ribeiro é editor da Capitu. Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília, mestrando em ciência da informação, pós-graduado em gestão cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e graduado em filosofia, todos pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, membro da equipe editorial da revista de política e ideias Maquiavel e colunista do Digestivo Cultural.

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Duanne Ribeiro
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Jornalista. Mestre em Ciência da Informação, pós-graduado em Gestão Cultural e graduado em Filosofia (USP). Analista do @itaucultural. Editor da @rcapitu.