Rafael Moraes
Direitos humanos para quem?
6 min readJun 23, 2017

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Carinho e proteção dentro de casa

Quando a família falha, abrigos ajudam a cumprir o que diz o Artigo 25, segundo o qual a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais

Eduardo tem quase três anos de idade. Nasceu bem, saudável, e hoje mora com a avó. Quando era menor, vivia com a mãe e o padrasto, com quem sofreu um acidente ainda nos primeiros meses de vida. O homem alegou que estava brincando com a criança e acidentalmente a soltou de seus braços. Ao colidir com o chão, a força do impacto teria provocado sequelas no corpo de Eduardo.

Segundo exames, não foi bem assim. Pelos traumas que Eduardo sofreu e pelos hematomas que depois apareceram, não teria sido uma simples queda. De acordo com os resultados dos exames, ele foi chacoalhado pelos ombros, teve a cabecinha balançada de frente para trás, provavelmente batendo contra uma parede. O impacto foi tão grande que a criança de menos de um ano, na época, teve uma retina descolada, além de partes do cérebro afetadas. Aos dois anos de idade, ele já era cego e andava sobre cadeiras de rodas. E vai seguir assim para sempre.

Eduardo goza da mesma proteção social de qualquer criança no mundo, de acordo com o artigo de número 25 da declaração dos Direitos Humanos. Mas, na prática é diferente. Ele morou por quase dois anos na unidade de Porto Alegre da SOS — Casas de Acolhida, uma organização não-governamental, com casas na capital e em Canoas, que acolhe crianças vítimas de violência que são afastadas do seu meio familiar como medida de proteção especial. Eduardo não é Eduardo. Todas as crianças citadas ao longo da reportagem terão seus nomes alterados por motivos de segurança.

“Na verdade, hoje tenho 24 filhos. Dois meus e de meu marido, um tem 23 anos, a outra tem 19. Mas, pra mim, todas as crianças que passam por aqui são minhas”, diz Suzana Vicente, 47 anos, coordenadora da unidade que atualmente abriga 22 crianças.

Quinze crianças são vítimas de violência a cada hora no Brasil, segundo pesquisa realizada pela equipe do Fantástico e divulgada no programa em 2013. O país definitivamente não é um dos mais seguros para os pequenos. Por isso existem abrigos e casas como os de Suzana: para dar a segurança na infância que essas crianças não tiveram ou deixaram de ter.

A SOS — Casas de Acolhida se apresenta como uma instituição de abrigo para crianças e adolescentes de até 18 anos de idade, vítimas de violência e que foram afastadas do seu meio familiar. A discrição é grande. Na internet, só o endereço do escritório administrativo e, na fachada, nenhuma identificação. Tudo é tratado com muito cuidado.

“A casa mantém sigilo do endereço para os pais não ficarem sabendo onde estão as crianças. Muitas famílias são envolvidas com o tráfico de drogas e querem manter o vício a qualquer custo. Mães são viciadas em crack e acabam vendendo a criança ou tendo que entregá-la a traficantes. Aqui a família não vem”, explica Suzana.

Por dentro da casa

Mesmo abrigando 22 crianças, a casa é limpa e organizada. Logo atrás da porta principal, uma salinha de espera, outras duas portas e uma escada em espiral. Debaixo da escada, um dos únicos lugares de desorganização: carrinhos velhos de bebê, cadeiras quebradas e caixas e mais caixas, tudo amontoado. Entre as duas portas, duas cadeiras e uma mesinha de centro. A porta da esquerda se abre para o escritório administrativo, onde trabalham Suzana e seu assistente. A outra porta leva às primeiras instalações do abrigo: uma sala grande, com sofás, armários cheios de brinquedo, tevês e tapetes, um espaço para as crianças.

Ainda no primeiro andar, um pátio, também com brinquedos e uma pracinha, e um corredor que leva a outras salas de brincar, o vestiário das funcionárias e uma das cozinhas. No segundo andar, quatro quartos com camas e mais camas, além de um banheiro e outra cozinha.

Danielle de Souza, psicóloga que atende crianças adotadas e famílias que desejam adotar, diz que “o ambiente onde a criança cresce é fundamental para o seu desenvolvimento, tanto pessoal quanto físico. A criança precisa de um lar e existem instituições públicas e privadas que realizam esse papel. O que uma criança precisa é essencialmente de amor e carinho”.

São 3.200 fraldas e 575 litros de leite consumidos por mês no abrigo.

Marina não quer leite

Marina chegou furiosa há poucos meses na casa de Suzana. Na hora de mamar, não queria leite. Seu organismo não estava familiarizado com esse líquido, afinal, havia sido “alimentada” com droga nos seus primeiros meses de vida.

O maior público que a casa atende atualmente são recém-nascidos. Desses, a maioria vem de pais drogados, consequentemente, recebem drogas durante a infância. Além do vício, abusos sexuais e violências física e psicológica também estão no topo da lista de razões que levam as crianças à casa. “Vivemos em um Brasil cujas ruas são cada vez mais violentas. Nem imaginamos o que acontece nas casas das pessoas, nem o que certos pais fazem com seus filhos, por isso precisamos de instituições que realmente tratem filhos como filhos”, comenta Danielle.

Bebês recém-chegados como Marina requerem muita atenção e carinho. A casa conta com cuidadoras que já estão acostumadas a dedicar suas noites aos pequenos. São mais de 20 crianças distribuídas em quatro quartos. Por mais que tenham cama para todos, um choro provoca outro. “A gente cansa, corre atrás, leva na praça, ajuda na casa, mas é show de bola. Não tenho palavras pra descrever. Vivemos também das doações de roupa, comida e produto de limpeza de nossos colaboradores. Eles também nos ajudam a cuidar das crianças”, diz Fabiano Czykiel, auxiliar administrativo da Casa e braço direito de Suzana.

A espera de João

A casa que acolheu Eduardo e Marina também acolherá João, que, com poucos dias de vida, ainda não havia recebido alta hospitalar durante a produção da reportagem, mas já tinha seu berço garantido.

Funciona assim: os hospitais notificam o Juizado de Menores de Porto Alegre que existe uma criança com pais incapacitados de seguir sustentando-a, como os de João. O Juizado pede uma vaga em algum abrigo de proteção à criança na cidade. Como a Casa de Acolhida já participa desse processo há 21 anos, são referência para a prefeitura e para o Estado.

Depois da notificação, abriu-se um processo de proteção para criança e as instituições têm 30 dias para informar ao Juizado se tem algum familiar da criança com condições de ficar com ela. Se for encontrado alguém, inicia-se a burocracia para a troca da guarda da criança. Caso esse alguém não exista, é aberto um processo de suspensão ou destituição de pátrio poder. Ou seja, os pais perdem a guarda da criança e ela vai para adoção. Esse trâmite demora, em média, um ano e oito meses. Durante esse tempo, a criança fica na Casa de Acolhida. Sete a cada 10 acabam indo para adoção, os outros três vão para os braços de um familiar.

Em Porto Alegre, o número de adoções é baixo. Segundo o Ministério Público, foram concluídas 40 adoções em 2014, 17 no primeiro semestre de 2015 e outras 37 de junho do ano passado até maio deste ano.

São muitas as crianças na fila para ter uma família. Abrigos como as Casas de Acolhida fazem a sua parte e trabalham para garantir carinho e proteção durante essa espera.

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