Casa e templo para homens em reabilitação

Instituição Manassés abriga homens que querem se livrar da dependência química. Na sua rotina, reza, horários e trabalho pelas ruas da cidade

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O despertador toca e o relógio aponta 5h da manhã. José*, Renato*, Luciano, Sandro, Rejanio e outros 10 homens levantam dos seus beliches e se encontram em uma sala cheia de cadeiras e grandes janelas, chamada por eles de “templo”. É lá que os moradores da casa conversam com Deus. “Deus deve estar em primeiro lugar nas nossas vidas. Com Jesus, eu sou melhor, sem ele eu sou ninguém”, declara o diretor da casa, Luciano Francisco Santana, 40 anos. Depois da oração, os moradores tomam o café da manhã e se preparam para andar nos ônibus de Porto Alegre e divulgar o trabalho realizado na casa onde eles moram, a Instituição Manassés.

Na parada de ônibus, os homens aguardam o primeiro coletivo da manhã. Cada um carrega consigo uma bolsa repleta de kits produzidos pelos próprios moradores. Composto por um adesivo, uma caneta e um panfleto, o material é o que eles têm para apresentar o projeto. Os sacos transparentes são vendidos a pelo menos R$ 2 dentro dos ônibus. É com esse dinheiro que a instituição se mantém, explica o “obreiro” da casa, como é conhecido Sandro Rogério Moreira; sua função é pregar a obra de Deus.

A Instituição Manassés surgiu há 15 anos, na Bahia, com o objetivo de recuperar homens maiores de idade com qualquer tipo de dependência química. Hoje, o projeto conta com 36 unidades espalhadas pelo Brasil e atende milhares de homens gratuitamente.

A casa de Porto Alegre fica na Avenida Pinheiro Borba, próxima do Estádio BeiraRio, em frente ao Guaíba. O amarelo quase fluorescente não deixa o sobrado de quatro andares passar despercebido por quem trafega pela região.

Quem entra na residência precisa subir um lance de aproximadamente 10 degraus. O segundo andar abriga o templo, os quartos e a sala da direção. No último andar, encontram-se a cozinha e o terraço. É lá que o colaborador Rejânio cozinha para os demais moradores e embala, ao som de uma música alta, os kits que serão oferecidos na manhã seguinte.

Um ambiente claro e arejado. Essa é a primeira impressão de quem entra na sala da direção. Uma pequena sacada com vista para o rio deixa o barulho do encontro dos ventos com a água e dos carros com o asfalto ecoarem no local. É lá que ocorrem as entrevistas com os potenciais moradores. “Eu não sou formado em psicologia nem em medicina, mas, com as perguntas que eu faço, é possível perceber aqueles que querem ser ajudados”, afirma Luciano. A instituição não conta com o apoio de nenhum profissional da saúde. Segundo o diretor da casa, seguir os passos da bíblia é o suficiente para quem quer largar o vício.

O tratamento

A forma como os moradores da residência são tratados se distingue dos demais procedimentos de reabilitação das clínicas tradicionais. O tratamento é sempre feito em uma unidade fora do Estado de origem do usuá- rio. “Hoje temos pessoas do Mato Grosso e do Rio Grande do Norte, por exemplo”, conta o diretor. “Dessa forma, é possível fazer todo o desligamento do ciclo social”. Isto porque o tratamento é feito, também, nas ruas, com a divulgação do projeto nos coletivos. “Ficar nove meses em uma casa de reabilitação, qualquer um fica. Aqui dentro não tem droga nem prostituição. A realidade está lá fora”, diz Luciano. “Eu sempre falo que a Manassés não é uma casa de recuperação, e sim uma casa de preparação. O usuário vai ser preparado na rua para que ele possa entrar na sociedade de novo lidando com o ser humano e dialogando com as pessoas”, explica o diretor.

Na primeira fase, os moradores ficam dentro de casa por um período de até 30 dias passando por um processo de desintoxica- ção. “Eles passam por uma reeducação alimentar. Tem hora para acordar, para dormir, para fazer a limpeza da casa”, conta o diretor. “Depois desses processos, dependendo do comportamento do usuário, ele vai para a segunda fase”, explica.

A psiquiatra especialista em dependência química e psicoterapia Marianne de Aguiar acredita que tratamentos como este podem ser recomendáveis. “Neste tipo de instituição, alguns internos são como membros da equipe ou ‘monitores’. Eles trabalham para eles mesmos, promovendo um senso de comunidade e ajuda mútua. Os que estão mais avançados no tratamento ajudam os recém chegados e podem ajudar a equipe a captar aqueles que estão relutantes a buscar tratamento, eliminando barreiras”, afirma.

Além disso, de acordo com a psiquiatra, a espiritualidade promove bem-estar e auxilia no alívio da ansiedade. “Isto favorece as relações e a ajuda mútua”, afirma.

“Mas não serve para todos, pois, em algumas situações, a fé pode promover efeito inverso, induzindo culpa, julgamento moral excessivo e aumento de ansiedade” — Marianne

Dois exemplos de perseverança

A paixão que o diretor tem pela Instituição Manassés sugere que a história dele com a casa não é recente. Aos 34 anos, o diretor da unidade de Porto Alegre foi apresentado à cocaína por uma ex-companheira. “Quando eu era adolescente, eu sempre fui trabalhador e dedicado à minha família, mas, depois de 30 anos, me envolvi com uma pessoa errada, foi quando eu conheci a droga”, diz. Naquela época, ele achava que “dominava a droga”, mas a cocaína “o dominou”. “Perdi minha casa, meu carro, minha moto, minha profissão e o meu casamento”.

Foi graças à atual esposa que Luciano conheceu a Manassés. “A minha vida foi alcançada através da minha mulher, que estava dentro de um coletivo e viu um rapaz divulgando o projeto”, diz. O tratamento de Luciano durou 10 meses e foi realizado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. “Naquela época, a minha situação era tão grave que eu comia cocaína de colher, literalmente”, lembra.

Os olhos atentos e emocionados do obreiro Sandro enquanto ouvia o relato de Luciano deixava escapar que, por trás de sua estatura mediana, da pele morena e do sorriso no canto da boca, existia uma história parecida. “Eu não gosto muito de falar do meu passado, eu já fiz muita coisa errada”, conta Sandro. “Já fiz muita mãe chorar. Mas hoje eu acho que Deus me perdoou, ele renovou as minhas forças e me deu muita sabedoria”.

Sandro acredita que a instituição pode mudar a vida de muitos pais de família como ele. “Hoje os meus filhos têm orgulho de mim porque eu venci, né? Ah, a vitória…” E com um sorriso no rosto, ele descrever a sua sensação de vencer. “Você sabia que a vitória tem sabor de mel?”

*Nomes fictícios para proteger a identidade dos entrevistados

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