De olhos bem fechados em uma casa espírita

Uma experiência de quatro horas em um tratamento alternativo para resgatar energias negativas

Marina Krapf
Direitos humanos para quem?
6 min readDec 15, 2015

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São cinco e meia da tarde de uma sexta-feira. O movimento da cidade é intenso. Carros passando por todos os lados, pedestres caminham, correm pelas calçadas e até mesmo pelo meio da rua. As buzinas e o barulho dos motores tornam o ambiente ensurdecedor. De frente para uma grande avenida de Porto Alegre seria difícil imaginar um local tão calmo e acolhedor por perto. A poucos metros da loucura, em uma sala de espera de uma conhecida sociedade espírita, duas pessoas aguardam a chegada de Márcia Rodrigues para a realizarem uma orientação espiritual.

O local é silencioso, as paredes claras são decoradas com diversos quadros e orações. As cadeiras ficam viradas uma para a outra, como se fosse uma grande roda. Mesmo assim, o ambiente é de total silêncio. Uma menina e uma mulher, cada uma em um lado oposto da sala, mexem no celular sem trocar olhares. Sentada em uma cadeira ao lado da porta da sala da orientação, Eduarda Tormes balança os pés continuamente. Ainda falta meia hora para a chegada da orientadora. “A Márcia é ótima. Eu me sinto muito bem com ela”, diz, sorrindo. A menina tem 18 anos, mas já tem forte aproximação com o espiritismo. “Acredito que aqui dentro é mais fácil de lidar com as coisas. Tu começa a entender como funciona cada momento da tua vida”, explica.

No tablado do local, é possível ouvir passos apressados pelo corredor. A esperada Márcia cumprimenta ligeiro os presentes e logo entra em sua sala. O local também pode ser uma espécie de escritório. Márcia senta-se atrás de uma mesa, guarda seus pertences e se prepara para o trabalho. Ela está há cerca de 17 anos na casa e, além de orientação espiritual, também é auxiliar da gerente de seu grupo de apometria*. Segundo ela, seu trabalho ali é mudar a energia de uma pessoa. “Na maioria das vezes, nós atraímos as coisas ruins, almas perdidas por aí, porque estamos mais tristes e desamparados e, assim, atraímos aquilo que não presta. Por isso eu tento avaliar essas pessoas e encaminhá-las para o tratamento certo”, explica.

Não demora muito tempo para notar que Márcia tem um perfil diferente dos demais voluntários da casa. Ela é agitada, conversa constantemente com o auxílio de gestos para completar suas frases. “As pessoas geralmente saem daqui melhor do que entraram. Com esse meu jeito meio doidinha, eu faço a pessoa rir e ela já troca a frequência”. Quando pergunto se o seu trabalho era uma espécie de “psicóloga espiritual”, Márcia ri cruzando os braços. “Mais ou menos”, brinca.

A orientadora revela que o estilo de trabalho de seu grupo é diferente dos outros existentes da casa.“Nós não somos um grupo reconhecido pelos princípios espíritas. Trabalhamos com as sete linhas da um banda esotérica, ou seja, fazemos uma espécie de limpeza da casa das pessoas, do local de trabalho e todos os ambientes em que ela está, usando as energia dos orixás”. Esse trabalho é o que conceitua o grupo de Márcia como Espiritualista. Ela confessa que, no início, tinha preconceito com essa prática, principalmente quando se trata de sacrifício de animais, ao que é contrária, mas que aprendeu a respeitar essas culturas. “Aqui a casa é segmentada. Existem vários grupos. Tem colegas meus que nem tocam no assunto. Parece proibido, coisa do diabo”.

Depois das orientações individuais, Márcia e seu grupo fazem um trabalho coletivo com os presentes.Ele é dividido em três partes: a conversa, o resgate e, por último, a limpeza. Após finalizar a orientação, Márcia levanta-se apressada e vai em direção ao fundo da casa, desce dois lances de escada em um corredor estreito e encontra dezenas de pessoas a esperando. “Chegamos atrasadas. Perdemos a primeira parte do trabalho”, lamenta. Essa parte seria a conversa, momento em que se reúnem todos os presentes para passar algumas palavras de preparação do ambiente. Rapidamente ela coloca um jaleco verde claro e caminha para uma sala ao fundo.

Ao passar pela porta, encontro dezenas de pessoas sentadas em círculo em volta de uma mesa ao centro do ambiente. Eles são chamados de Segunda Corrente. Pouco se fala ali dentro, as pessoas parecem concentradas na movimentação daqueles que ainda se encontram em pé. Diversos papéis com nomes de familiares e amigos estão espalhados pela mesa central. Márcia chama todos os médiuns em volta da mesa. Eram seis. Eles preparam água e trocam algumas palavras. “Bom, pessoal, agora vamos começar. Peço que todos fechem os olhos”, fala Márcia em um tom não muito alto, mas audível em todos os cantos da sala. Todos obedecem a ela. Eu fecho meus olhos.

De olhos fechados

A segunda parte do trabalho se inicia. O resgate é feito para socorrer os espíritos sofredores, ou que andam perdidos, e são responsáveis pelas energias negativas.

Pelos sons que escuto, identifico que os médiuns começam a transitar pela sala. Eles falam alto e suas vozes se cruzam. Márcia conta até 10 bem alto. Ela resmunga baixinho, como se houvesse resistência por parte da energia negativa presente no grupo. Ela tenta novamente resgatá-la, agora mais alto.

As contagens são abafadas pelas diversas orações feitas paralelamente. Sinto estalos de dedos em meus ouvidos. A vontade de abrir os olhos toma conta de mim, mas, ao espiar rapidamente o meu lado direito, não encontro nada.

Escuto uma forte risada no outro canto do cômodo. Não era um riso qualquer, ele tinha um tom diferente, como se um outro ser tivesse tomado o corpo de algum médium ou algo parecido. Ele ria e gemia, caminhando em volta dos que estavam sentados. Suas risadas iam ficando mais intensas, mais perto. Estava chegando à minha esquerda. Foi o momento em que me senti mais acuada e com vontade de abrir os olhos outra vez.

Minhas mãos, tensas, estavam grudadas uma na outra. Quando alguém chegou em minha frente, perto o suficiente para que pudesse escutar sua respiração, apenas passou suas mãos pelas minhas, abriu-as e colocou-as com as palmas viradas para cima. Mesmo sem entender, senti um alívio.

Não consegui mais escutá-lo, as contagens de Márcia espantando os espíritos da sala começavam a ficar mais baixas, na medida em que era possível sentir que, por algum motivo, todos que estavam na Segunda Corrente sabiam que os espíritos estavam encontrando o seu caminho.

Hora da limpeza

A terceira parte do trabalho chega. Esse é o momento de limpeza realizada a partir das sete linhas da umbanda esotérica. A orientadora pede para que todos imaginem suas casas, trabalhos e diversos ambientes do cotidiano. Enquanto a Segunda Corrente canta, os médiuns pedem alto pela limpeza desses lugares.

Abro lentamente meus olhos e observo todos cantando. Alguns tinham lágrimas nos olhos, outros cantavam com um sorriso no rosto, todos estavam compenetrados. Uma mulher sentada em minha frente me olha e, com um gesto das mãos, me pede para fechar novamente os olhos. Obedeço e junto-me à corrente de energias do local.

Tudo começa a ficar mais calmo. A sensação é confortante e de leveza. Aos poucos, me entrego e deixo de tentar observar o que acontece. O grupo inteiro canta junto.É possível escutar a voz de Márcia puxando a oração do Pai Nosso, seguida em coro por todos. Lentamente, voltamos a abrir os olhos.

Os médiuns estão sentados novamente em suas cadeiras, hidratando-se. Alguns dos presentes têm os olhos inchados, outros pareciam ter acordado de uma sessão de massagem de tão à vontade. Pequenos copos de plástico com água e balinhas de açúcar são distribuídos. Já eram quase 21h. O grupo presente vai se movimentando em direção à saída. Márcia parece contente e já retoma a conversa com os demais. Não foi preciso muito tempo para que ela voltasse para sua agitação natural. Ela abraça sua filha de 18 anos, que também participou do trabalho na Segunda Corrente, e vai andando para a saída com o sentimento de mais um dever cumprido. “Eu saio daqui melhor do que eu cheguei. Eu estou trabalhando para mim, sinto que é um egoísmo saudável. O que me faz sair de casa toda terça, quinta e sexta é sim o meu bem-estar. Isso me faz bem, e, graças a Deus, o me fazer bem é fazer bem ao próximo”, diz balançando a cabeça positivamente com um sorriso de orgulho no rosto.

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