Do outro lado do muro

O Hospital Colônia de Itapuã foi construído por Getúlio Vargas durante o estado novo e inaugurado em 11 de maio de 1940 para isolar os pacientes diagnosticados com lepra

Eduarda Lemos
Direitos humanos para quem?
7 min readNov 30, 2015

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A viagem começa tranquila, asfalto bom, recém reformado e poucos carros. O ar poluído e os barulhos da capital vão ficando, aos poucos, para trás e dando lugar para a calmaria e o cheiro de fazenda. A estrada é rodeada de árvores e grandes terrenos ocupados com gado ou plantações. Durante 60 quilômetros este é o cenário até a chegada a uma precária estrada de barro que leva ao Hospital Colônia de Itapuã na região metropolitana de Porto Alegre. Na entrada que remete à porteira de um sítio comum, encontra-se um vigilante que prontamente vem reconhecer os visitantes. Após a identificação, começa o passeio no tempo. Dois quilômetros adentro é possível avistar as construções que geraram grandes mudanças no Rio Grande do Sul na década de 1940.

A Colônia, com 1.527 hectares, oferecia aos moradores uma estrutura completa, com moeda própria, prefeitura, escola, delegacia, hospital, mercado, igrejas, salão de diversão, cemitério, campo de futebol e cancha de bocha. O espaço era composto por 20 pavilhões Carville, modelo mundial de leprosários. Homens à esquerda, nas casas amarelas, e mulheres à direita, nas brancas. Cada pavilhão acomodava 12 quartos, cada um com capacidade para três camas. Ao todo, 2.474 pacientes passaram por aqueles quartos.

Rita Camello, enfermeira chefe do hospital há nove anos, é a responsável por contar a história da instituição e dos moradores aos visitantes. Logo na chegada, um grande arco onde se lê: “Nós não caminhamos sós”. Antigamente, havia ali um grande portão de ferro que separava os doentes das pessoas saudáveis. Pessoas de todo Rio Grande do Sul eram levadas para o Hospital Colônia de Itapuã por meio de um carro preto chamado de “carro de profilaxia da lepra”. “Os que estavam dentro deste carro tinham uma autoridade policial. Depois que o paciente era examinado, e a doença, constatada, ele seria trazido pra cá, quisesse ou não, independentemente se a família fosse rica ou pobre. Ele seria trazido para cá para proteger as pessoas saudáveis”, conta a enfermeira.

Uma vez dentro dos portões de Itapuã era praticamente impossível sair. Além dos portões de ferro, existia uma grande cerca de arame farpado e seguranças da guarda municipal fazendo a vigilância 24 horas por dia. Do lado de dentro dos portões, também havia seguranças, papel desempenhado por pacientes. “Além de ser um doente igual aos outros, era imposto a este paciente que cobrasse dos companheiros atitudes que ele com certeza não gostaria pra ele”, relembra Rita.

Por ser considerada uma cidade independente, também existia um prefeito, escolhido dentre os moradores. Este acatava as ordens que vinham do prédio administrativo, onde representantes do Governo Estadual e irmãs franciscanas seguiam, por sua vez, instru- ções de Brasília. O prefeito nomeava um delegado que era responsável pela segurança e ordem do local. Se um paciente fugisse ou desacatasse alguma lei, iria para prisão; no primeiro delito, ficaria sete dias na solitária, no segundo, 14 dias e assim por diante, numa progressão geométrica. Muitas pessoas fugiam ou cometiam suicídio nos primeiros anos por sentirem saudade de suas famílias, de onde, muitas vezes, eram retirados à força. “Eles sentiam saudade de casa, queriam ver os seus, não aguentavam o isolamento compulsório, não aguentavam o mundo que lhes era oferecido aqui dentro”. Do outro lado, muitas famílias que tinham um parente levado pelo carro preto falavam para os vizinhos que o doente tinha ido trabalhar no exterior e, na calada da noite, mudavam-se para outro Estado para não serem alvo de preconceito.

Atualmente 27 ex-hansenianos residem no Hospital Colônia de Itapuã e recebem um salário mínimo do governo. Todos contam com o afeto e atenção da enfermeira Rita

No período da inauguração, duas igrejas foram construí- das no local, a evangélica luterana e a católica. Enquanto o pastor costumava celebrar o culto, a religião evangélica era respeitada; a partir do momento em que os cultos pararam, todos os evangélicos foram obrigados a frequentar a missa católica diariamente e comungarem — aquele que não comungasse não receberia o almoço.

A religião católica se tornou obrigatória para a sobrevivência no local. “Eu escutei de uma paciente uma vez: ‘sabe, dona Rita, eu nunca entendi o que foi que dizem da tal hóstia que eu tinha que todos os dias engolir, mas eu precisava engolir porque eu precisava de comida”, relembra Rita.

Nunca uma mãe tocou no seu filho

O casamento entre homens e mulheres era uma prática permitida na colônia e dava, aos recém casados, o direito de viverem juntos em uma das 28 casas geminadas do local. Não raro, mulheres engravidavam. O parto era feito por uma freira em uma cadeira ginecológica especial.

De outra sala e por meio de um vidro colocado na altura do joelho da mãe, o parto era feito pela irmã franciscana. Nascido o bebê, a freira mostrava a criança para a mãe pelo vidro e dizia para ela escolher um nome para batizar a criança. Logo após os primeiros cuidados, o bebê era encaminhado para o Amparo Santa Cruz, local criado para abrigar os filhos dos moradores do Hospital Colônia. Nunca uma mãe tocou o seu filho.

As visitas eram feitas mensalmente, quando um ônibus levava as freiras e as crianças até a frente do portão do hospital. De dentro do coletivo, as freiras mostravam os filhos a seus pais, que não saíam de trás dos muros. Ao todo, 153 crianças nasceram no hospital.

É o muro onde nós nos apoiávamos para olhar para os nossos filhos. Ele foi construído com cimento e lágrimas.

Rita conta que, em um determinado momento, a administração quis fazer uma reforma nos muros e foi impedida pelos pacientes. “Uma vez que a vida me pôs aqui dentro e que isto limitou-me de ter uma vida normal, ninguém agora vai quebrá-lo. Nós queremos este muro de volta, exatamente como ele estava porque, para vocês, ele tem um significado de um muro comum, para nós é o muro onde nós nos apoiávamos para olhar para os nossos filhos, ou para olhar pela possibilidade de um dia sairmos. Ele não foi construído como um muro comum, ele foi construído com cimento e lágrimas. Foram nossas lágrimas que consolidaram o cimento, não foi uma mera construção”, relembra a enfermeira.

Em 1949, uma luz foi acesa para os pacientes de Itapuã. A Sulfona chegou ao Brasil e começou a ser distribuída aos hansenianos. O remédio deixa a doença estagnada, cortando o contágio e os danos causados ao doente. A partir daí, os moradores da Colônia retomaram a possibilidade de vida além dos muros. Muitos tentaram construir uma vida “normal” na sociedade “limpa”, alguns até conseguiam, mas, a partir do momento que algum cidadão percebia traços de um ex-hanseniano, ele imediatamente se distanciava do antigo doente e afastava a todos que podia.

O preconceito com os pacientes era, e é, algo muito presente no dia a dia. “Doutora, esses dias eu estava no ônibus e um homem sentou do meu lado. Quando ele olhou as minhas mãos, saiu rapidinho de perto de mim. Eu fui e voltei de Porto Alegre sentado sozinho”, conta Osvaldo, um dos 27 pacientes ex-hansenianos que ainda vivem na Colônia Itapuã e tem nas mãos com manchas escuras e feridas as marcas da doença.

Em meados de 1970, o hospital colônia começou a esvaziar devido à cura da doença e a opção dos pacientes terem a oportunidade de retomarem suas vidas fora dali. O Hospital São Pedro, neste período, passava por um momento de superlotação, por isso, alguns pacientes homens com esquizofrenia crônica, foram enviados para a colônia para lá viver e trabalhar.

No meio de uma história tão marcada pelo sofrimento, é possível encontrar pessoas como a enfermeira Rita que dedica sua vida aos pacientes do Hospital Colônia de Itapuã. O amor com que exerce sua profissão, muitas vezes, é questionado por seus colegas que a chamam de “louca” por expressar, sempre que pode, o seu afeto por todos os pacientes. Nas palavras de Rita, é possível encontrar carinho, afeto e alívio ao contar histórias com a certeza de que os tempos escuros ficaram para trás e que hoje o que precisa ser feito é amenizar a dor que restou.

Atualmente todos os 69 moradores do Hospital Colônia são livres para ir e vir. Todos os que moram lá tem o direito de receber visitas, mas infelizmente não é uma realidade muito comum. Os pacientes que já morreram no hospital foram enterrados no cemitério do local e até hoje nenhuma família foi em busca do corpo de seu parente.

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