Lugar de mulher é onde ela quiser

Em uma profissão marcada pela presença masculina, o grupo Gaiola das Loucas levou às ruas de Porto Alegre o empoderamento feminino

Isabella Westphalen
Direitos humanos para quem?
6 min readDec 15, 2015

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Esq. para dir.: Andreia, Marisa e Rose. à frente: Bel e Celi

Era um sábado nublado de outubro quando encontrei Rosinara Vieira, a Rosi, 52 anos, taxista há uma década em Porto Alegre. Íamos almoçar na casa de uma de suas amigas, a colega Andreia Terres. “Vem pela Cristovão que tá tranquilo, a confusão é lá no meio”, avisa Andreia por mensagem de voz, sobre o protesto que acontecia na Vila Cruzeiro, bairro onde mora.

“Eu amo dirigir, sempre amei. Posso dizer com certeza que sou apaixonada pela minha profissão”, diz Rosi. Ao chegar, as amigas se abraçam e já começam contando piadas. “Finalmente chegou, não aguentei te esperar. E essa contigo quem é?”, questiona Celi Oliveira, taxista há um ano, sobre a minha presença. O clima é alegre. São inúmeras as histórias para contar e suas conversas come- çam a tomar conta da cozinha, revelando um pouco do universo ao qual pertencem.

Segundo a Empresa Pública Transporte e Circulação (EPTC), existem 400 taxistas mulheres cadastradas em Porto Alegre. Esse é um número que vem crescendo rapidamente, mas, por enquanto, não o suficiente para chegar perto da quantidade de homens, cerca de 10 mil. “É uma profissão supermachista. É muito bom, para nós mulheres, estarmos tomando conta desse meio”, opina Marisa Zacca, 61.

“Tenho colegas que são muito machistas, mas não sei se é minha postura que não deixa eles chegarem”, diz Andreia, que trabalha no ponto da rodoviária de Porto Alegre há oito anos. Todas começam a falar juntas, dando palpites no assunto, mas Andreia segue seu raciocínio, contando sobre quando teve que conviver com o machismo de um dos colegas de profissão, que lhe mandava “pilotar o fogão e o tanque” em vez de dirigir o táxi. “Teve um dia que ele me pegou de ovo virado e eu revidei. Disse ‘eu concordo contigo. Hoje eu já pilotei o tanque, fogão e mandei meus filhos pra escola. E mais um detalhe, o táxi que eu trabalho é meu, diferente de ti que é empregado de alguém e não deve saber nem fritar um ovo!’”, conta, interpretando a si mesma e completando dizendo que, a partir daquele dia, ele passou a chamá-la de “Dona Andreia”.

Arrancando aplausos das amigas, que elogiam sua postura, Andreia sorri orgulhosa de sua atitude.

Preconceito em casa

Não foi somente nas ruas da cidade que Andreia sofreu com a reprovação dos homens, mas também dentro de sua casa, quando o então marido comprou um táxi e não a deixava usá-lo. “Ele dizia que isso era coisa de quem queria vadiar, principalmente se fosse mulher”.

Diante da negativa do ex-companheiro, Andreia precisava pensar em uma solução, mas teria que agir em segredo. Com a demissão da faxineira que cuidava de sua casa, Andreia viu uma oportunidade e fez uma proposta ao marido. “Eu perguntei pra ele se, caso eu conseguisse dar conta do mercadinho que a gente tinha, dos filhos e da casa, ele me pagaria o valor que antes pagava para a faxineira”, explica.

Deu certo. E com o dinheiro que recebia do então marido, Andreia pagou as aulas da autoescola e concluiu o curso, tudo às escondidas.

Mesmo depois da separação, os incômodos continuaram. “Por motivos que prefiro não comentar, eu quis que ele ficasse com os dois táxis que a gente tinha. Mas a juíza que cuidava do nosso caso não deixou, exigiu que um ficasse para mim. Fiquei com um dos táxis, e ele continuou não aceitando”, explica. Andreia e o ex-marido trabalhavam no mesmo ponto de táxi, logo que ela começou seus serviços. “Nos primeiros meses, ele se retirava do ponto quando eu chegava. Hoje, depois de 10 anos, ele aceita um pouco melhor”, conta, sorrindo. Em meio a risadas, uma delas pergunta se ele já havia visto o carro novo de Andreia. “O sorriso dela diz tudo”, grita Celi, enquanto todas caem na gargalhada, comemorando a felicidade da amiga.

Com a inovação dos aplicativos de celular para chamar táxi, as coisas ficaram mais simples e seguras para as taxistas. “Eu me sinto mais segura trabalhando com aplicativo. Raramente pego passageiros na rua, só aqueles que eu tenho fixo e já conheço”, explica Rosi, que prefere trabalhar de dia. Isabel Machado, a Bel, também acha que os aplicativos facilitam a vida dos taxistas e a tornam mais segura, principalmente para quem trabalha à noite, como ela, Marisa e Andreia.

“Mulher minha não dirige táxi”

Colegas e vizinhas, Andreia e Bel são amigas de infância. “A gente se criou juntas, muitas vezes eu fui até mãe da Deia”, conta Bel, enquanto busca o abraço da amiga.

Bel tirou a carteira de motorista aos 25 anos, mas ainda não tinha acesso a nenhum carro. Foi quando o marido comprou um táxi que ela “reconheceu”, como ela mesma gosta de dizer, a profissão que a acompanharia por 16 anos de sua vida. “Ele não queria que eu trabalhasse no táxi. Eu disse que se ele não me deixasse, me separava dele e exigia meus 50% no negócio. Ele pensou que eu fosse dar umas voltas e desistir, mas não”, conta, sorrindo, orgulhosa de sua decisão de confrontar o parceiro, que hoje aceita e apoia sua escolha.

A história de Rosi também começou com implicância e olhares tortos do namorado na época, que também era taxista. “Tinha uma mulher que era colega de trabalho dele, e eu achava o máximo vê-la dirigindo, achava poderoso”, comenta. Mesmo com insistência, o namorado não lhe deixava dirigir; segundo Rosi, ele se justificava dizendo que “mulher dele não dirigia táxi”.

Com o passar dos anos, Rosi vendeu o carro que tinha na época e investiu na carreira para se tornar taxista até que passou a fazer parte de uma frota de táxis da capital, da qual o dono foi seu marido por 10 anos.

Para Marisa, que havia trabalhado a vida toda em áreas de administração e educação, a oportunidade de se tornar motorista de táxi a salvou da depressão, após perder muitas oportunidades de emprego. “Achei que nunca mais fosse trabalhar na vida. Comecei a ficar triste e não queria sair mais da cama, até que meu irmão, que é taxista, me mandou levantar, porque ele iria pagar um curso de taxista pra mim. Fiquei apavorada, mas aceitei”, diz sobre o começo de sua trajetória que já dura cinco anos.

Um mundo de histórias

Quando pergunto sobre os casos que ouvem dentro do táxi, as cinco concordam que todo taxista tem milhares de histórias para contar, boas e ruins. “Ah, minha filha, tem tantas histórias”, diz Marisa, entre um suspiro e outro.

Para Rosi, é muito difícil não se prender aos problemas das pessoas. No embalo da conversa, Andreia compartilha a história de uma passageira. “Estávamos conversando e a guria me contou que estava indo até o hospital para confirmar se estava com câncer ou não. Depois que ela saiu, eu tive um ataque de choro absurdo, tive que parar o carro”, conta, com os olhos já marejados.

Situações desconfortáveis com outros colegas de profissão também fazem parte do trabalho. “Eu já bati boca com muito taxista”, afirma Marisa. Às vezes, situações perigosas surgem, como quando Andreia teve que tirar uma menina de dentro de um táxi. “Ela estava bêbada e o taxista que a levaria disse que ‘iria faturar’ a guria. Falei que, se ele arrancasse, eu ia atrás dele chamando a polícia”, lembra Andreia, complementando que a passageira demorou semanas para lhe pagar a corrida e ainda lhe acusou de ter roubado seu celular.

As histórias das cinco amigas têm traços em comum. Revelam a dificuldade que existe para que mulheres possam se inserir no neste mercado. São trajetórias de superação, nas quais tiveram de traçar e planejar bem seus objetivos. Hoje, o grupo das “Luluzinhas”, rede de conversas pela qual Rosi, Marisa, Bel, Andreia e Celi se conheceram, tem 45 integrantes. “Essa é a parceria que a gente tem, de se apoiar sempre”, salienta Andreia. “Nós formamos uma família mesmo. Eu me sinto mais à vontade aqui na casa da Deia do que na casa de alguns parentes meus”, desabafa Rosi.

Sobre a inserção das mulheres nesse universo, as amigas concordam que o preconceito ainda é grande. Mas Marisa tem uma resposta na ponta da língua: “O machismo existe, e ainda vai existir por muito tempo. Só que a gente não pode ficar parada diante disso, tem que ir em frente”.

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