Recomeço em um novo país

Todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade, diz o artigo 15. o filipino clemente não abre mão da sua, mas busca novas oportunidades no brasil

Diogo Zanella Prates
Direitos humanos para quem?
6 min readAug 4, 2016

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Clemente Lagrito Sison, 56 anos, desembarcou no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, no dia 4 de junho de 2014, vindo das Filipinas para morar no Brasil. Ele havia aceitado o convite de um empresário gaúcho em férias, que conheceu ao prestar serviço de motorista. Assim que o novo amigo retornou ao ocidente,o filipino arrumou dinheiro emprestado, juntou suas economias e embarcou na expectativa de melhores condições de trabalho, promessa feita pelo empresário.

Quando Clemente embarcou, estava certo de que começaria a trabalhar assim que chegasse, mas,ao ser recebido, teve uma surpresa. Ao perceber que Clemente recebeu visto de turista, válido por 30 dias, o empresário disse não poder empregá-lo e o recomendou retornar de imediato às Filipinas ou regularizar a documentação para depois procurá-lo. “Eu perguntei porque ele não tinha me avisado antes. Aleguei que não teria dinheiro para voltar”, conta. O empresário largou o estrangeiro no Centro de Porto Alegre e desapareceu, deixando Clemente assustado. “Eu fiquei com medo, ele sumiu”.

Clemente é casado e tem três filhos, dois homens adultos e um menino de cinco anos, que ficaram nas Filipinas. O mais novo ficou com os avós, pais de Clemente, para ele construir nova vida junto com a esposa, que chegou ao Brasil cerca de um mês antes para se encontrar com a prima de Clemente. Ela é refugiada e vive, há pouco mais de uma década, com o marido e o filho, em Viamão, região metropolitana da capital gaúcha.

Após ser deixado pelo brasileiro na região central, o filipino, que não falava português e não tinha telefone para entrar em contato com a prima ou a esposa, nem dinheiro para chegar ao endereço de Viamão, não soube o que fazer. Entrou na igreja do Rosário onde, por sorte, conheceu um casal de filipinos que mora em Alvorada, região metropolitana. Eles ouviram a história do recém-chegado e o aconselharam a ir ao Centro Ítalo-brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (CIBAI Migrações), onde Clemente conheceu compatriotas e descobriu que alguns sabiam quem eram seus familiares. Com ajuda, a prima e a mulher foram contatadas. O casal procurou o CIBAI para regularizar sua situação, e foram orientados a juntar os documentos e ir à Polícia Federal (PF) pedir refúgio, pois o visto dela já estava vencido e eles não tinham dinheiro para voltar às Filipinas, nem para quitar os empréstimos.

Para solicitar refúgio, o Departamento de Refugiados da PF encaminha o solicitante para entrevista no Comitê Nacional de Refugiados (Conare), órgão interministerial presidido pelo Ministério da Justiça (MJ), com sede em São Paulo. As entrevistas podem ser feitas por videoconferência, mas Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre possuem locais para atendimento presencial; na capital gaúcha, a sala fica no Instituto Federal de Educação do Estado.

O casal filipino recebeu protocolo provisório, válido por um ano, até o dia 31 de março de 2015 e, após nova audiência, o documento foi renovado até 12 de abril de 2017. “Não tenho ideia de quando receberemos o definitivo, nem sei quais são os critérios”, conta Clemente. Com o documento, eles emitiram carteira de trabalho. Hoje ambos estão empregados em casas de família, ele numa residência no bairro Moinhos de Vento, onde recebe R$1.100 mensais. “Moro no emprego e trabalho todos os dias”, conta. Ele aguarda situação definitiva para conseguir algo melhor, fazer cursos, juntar dinheiro para terminar de pagar as dívidas e realizar o desejo de trazer o filho caçula e os pais ao Brasil.

Há 8.600 refugiados reconhecidos e 20 mil solicitantes no Brasil, a maioria são sírios, angolanos, colombianos e libaneses, de acordo com o último levantamento do Conare.

“Os negros desses lugares conhecem o racismo quando chegam aqui, e precisam aprender a viver com isso.”

Laura scotte

O papel do Estado

O professor universitário aposentado e pesquisador Jurandir Zamberlam, em seu livro Imigrante — a fronteira da documentação e o difícil acesso às políticas públicas em Porto Alegre, questiona o papel do Estado. “O acolhimento existe apenas por iniciativas da sociedade civil. A prática mais frequente do poder público é abster-se de trazer para si o cumprimento desta responsabilidade”. Diferentes instituições assumem o papel que o Estado deveria cumprir, como o próprio CIBAI, que atende imigrantes, refugiados e vítimas de tráfico de pessoas que precisam de orientação jurídica, social e cultural.

Outro exemplo é o Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados (Gaire), ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que presta, gratuitamente, assessoria jurídica, psicológica, entre outros serviços. No CIBAI, o acolhimento é feito pelo voluntariado, composto por advogados, psicólogos, enfermeiros, médicos, pesquisadores, assistentes sociais, entre outros profissionais. “O Estado controla a entrada e regulariza a documentação do estrangeiro que chega, com protocolo no departamento de migrações da PF, sem dar suporte de inclusão”, comenta Zamberlam.

Clemente segue frequentando o CIBAI para fazer aulas de português para estrangeiros, ministradas por voluntários como a estudante de História Laura Scotte, 21 anos. Não há restrições para ajudar, ela se ofereceu para auxiliar no que fosse preciso, de refeições a serviços burocráticos e, desde setembro de 2015, ensina o nível básico da língua portuguesa para a turma de iniciantes. “Uma coisa que vi aqui é que haitianos e africanos têm um desafio maior que as demais etnias. Os negros desses lugares conhecem o racismo quando chegam aqui, e precisam aprender a viver com isso”, conta.

Racismo

As ações da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos (SJDH) do Rio Grande do Sul não se caracterizam como políticas públicas. “Temos várias ações, mas nenhuma é uma política do Estado, que se vale da lei do estrangeiro de 1980, criada na ditadura militar, quando o entendimento era de que todo mundo poderia ser subversivo”, diz o coordenador do Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas (COMIRAT) da SJDH, Sérgio Nunes.

A lei 6.815, conhecida como o Estatuto do Estrangeiro, é a regulamentação usada até hoje. De acordo com essa legislação, são privilegiados os imigrantes com capacidade profissional e com recursos financeiros, o que acaba marginalizando os vulneráveis.

A questão racial também interfere. “A Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado do Rio Grande do Sul nos procurou, após ver matéria no jornal Zero Hora sobre venda de óculos por haitianos no litoral norte, e nos cobrou ações para impedir que eles comercializassem as mercadorias. Desde sempre produtos são vendidos na beira da praia, mas, a partir do momento que o imigrante tem cor, começa o conflito”, diz Nunes.

Por causa do preconceito, imigrantes diplomados não conseguem exercer a profissão no Brasil. “Eu conheço uma engenheira que trabalha fazendo faxina em Porto Alegre. Para algumas etnias, a exigência de documentos e as etapas burocráticas são mais duras. Asiáticos, americanos e filipinos entram mais fácil e são mais aceitos”, conta. Os critérios para a concessão do visto não são claros, nem Clemente sabe por que ainda não tem o visto definitivo. A reportagem entrou em contato com o órgão responsável, que disse não poder conceder entrevista porque os trâmites são confidenciais. Enquanto isso, Clemente trabalha como doméstico e ainda sonha com o dia em que a promessa que o trouxe ao Brasil vá se concretizar.

Em Porto Alegre, o Cibai (51 3226–8800) e o Gaire (51 3308–3967) oferecem assessoria jurídica, psicológica e aperfeiçoamento do português. Na capital paulista, o Sebrae tem cursos gratuitos para refugiados.

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