Relatos de um não lugar

Dois dias e duas noites na rua: histórias sobre gênero, família e criminalidade

Lauren
Direitos humanos para quem?
6 min readDec 2, 2015

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Dada a pauta sobre passar alguns dias inserido em um ambiente para nós desconhecido, opto pelo não ambiente. Decido ir à rua e conversar com quem não mora, ocupa; com quem não existe, resiste. O objetivo era o de vivência.

Por mais fundo que eu tenha ido nessa experiência, vale lembrar que ela nunca poderá se tornar uma vivência; passar meu tempo com pessoas que moram na rua, e durante esses dias me privar dos privilégios que tenho (dinheiro, cama, celular…), foi uma escolha e a volta para casa era iminente. Optei por passar esse tempo com eles na busca de legitimidade, profundidade — e não protagonismo. E se os olhos veem de onde os pés pisam, passo esses dias tentando pisar junto com as pessoas aqui retratadas.

Em 1995, existiam 222 moradores de rua cadastrados em Porto Alegre. Esses cadastros contabilizam pessoas que, de alguma forma, usaram de algum recurso do Estado ou Município — como serviços de saúde. Em 2011, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) realizou nova contagem desse número, revelando 1.347 indivíduos. Baseado nesse critério de considerar apenas serviços do governo, pode-se supor que o número de pessoas em situação de rua é maior do que o apresentado. No primeiro semestre de 2015, o Projeto Universidade na Rua, da UFRGS, apresentou estimativas de que a população em situação de rua somava entre 3 mil e 5 mil pessoas — contabilizando também as pessoas não cadastradas.

Meninos perdidos

Durante o tempo em que passei na rua, conheci algumas crianças.

Daivid tem 16 anos. Conheci o garoto embaixo de um viaduto com mais quatro meninos menores de idade. Quando cheguei, eles estavam sentados sobre um colchão, conversando e rindo bastante. Apresento-me e eles, diferentemente dos adultos com quem falei, começam a me perguntar diversas coisas sobre o porquê de eu estar ali, onde eu moro, se fumo maconha, como fiz pra deixar o cabelo azul, se sou lésbica… Respondida a última pergunta, abre-se um interrogatório a respeito da minha sexualidade. Tento cortar o assunto, perguntando sobre eles. “Ih! A tia ficou com vergonha!”, dizem, às gargalhadas.

Ainda sem saber nada sobre eles, sou convidada para ir até a Praça da Alfândega. Durante o caminho, Daivid me conta que conheceu os meninos que andam com ele na vila, todos moravam perto. O irmão mais velho de Daivid é muito amigo do irmão mais velho de Pablo, que tem 11 anos e é o menor do grupo. Os irmãos mais velhos também moram na rua e foi assim que Daivid acabou saindo de casa, para ir junto com o irmão. “Ah, sabe como é, né? Irmão não é que nem pai, ele me deixa fumá cigarro, entrar nas briga. Mas também me chama na responsa, se eu quero brigar tenho que segurar o BO, né?”

Eles sentam em um banco e começam a discutir sobre quem vai entrar no mercado pra pegar chocolate. “Entra com a tia, ela tem cara de playboy!” Vou junto com o Pablo no mercado e ele me conta que carrega um caderno para que as pessoas pensem que ele estuda. “Daí não ficam azucrinando, falando que tenho que estudar pra ser gente. Ninguém nunca pergunta se o cara quer ser esse tipo de gente”.

Voltamos com os chocolates e um deles se despede falando que tem que voltar para o abrigo. Daivid pega os chocolates, divide entre nós e manda um dos outros meninos correr atrás do que foi embora para levar um pedaço pra ele. Continuamos conversando, eles me contam sobre suas vidas. Nenhum deles mora permanentemente na rua, alguns voltam para casa dos pais, dos tios, e um dorme na casa da avó quando o avô passa a noite trabalhando.

“Por mim, eu não saía daqui né? Mas, às vezes, a mãe passa aqui, me manda ir pra casa, fala que comprou até bolacha recheada… Ela não sabe que aqui nóis ganha muita comida, ainda mais os de menor, né? Sempre ganhamo doce, refri."

"Se tu ficar mais tempo aqui com nóis, não vai mais querer voltar pra casa."

Gênero na rua

De acordo com a FASC, 17% da população em situação de rua é composta por mulheres — contabilizando cerca de 230 mulheres nas ruas. Esses dados são de 2011 e também só dão conta de pessoas cadastradas no sistema.

De fato, o número de mulheres nas ruas é reduzido — durante os dias em que passei na rua, tive bem mais contato com homens. Carla*, a primeira mulher com quem conversei, comenta a questão de gênero comigo nos primeiros minutos de conversa. “Sempre vejo jornalista homem, uma vez até dei entrevista pra um…Legal tu aqui.” Aproveito e pergunto sobre ser mulher na rua. Ela conta que é tudo mais complicado, perigoso: “É que nem nos outros lugares, sempre fica mais ruim quando tu é mulher”.

Além de Carla, conversei com mais duas mulheres, uma delas, a Nega Lu, que já conhecia há mais tempo e, por isso, acabei dormindo no mesmo lugar que ela — um colchão na frente do Colégio Júlio de Castilhos. Durante essa noite conversamos muito, ela me contou sobre sua família, seus motivos, suas decisões e principalmente sobre as decisões que deveriam ser dela, mas não foram.

Ela me conta sobre quando levaram o filho embora, sobre quando foi internada sem pedir e sobre quando, mesmo pedindo, não pode entrar no hospital. Fala sobre todas as vezes em que foi estuprada (mesmo sem usar essa palavra).

“Eu moro na rua, os homem nunca vão te perguntar se tu quer transar com eles. Tu tá fumando uma pedra com o mano e, quando vê ele, já te arrastou pro barraco dele.”

“Bonde da Ladaia”

Durante os dias em que passei na rua, conheci ainda nove homens que, naqueles dias, estavam dormindo sob um viaduto. Pedi para conversar, um deles responde “não”, os outros começaram a rir. “Liga pra ele não, esse aí é Cara Cortada, é brabo só nas palavra, nunca vi dá soco”. Mais risadas. Eles se apresentam, todos com apelidos — me explicam que não podem ficar dando nome para qualquer um, ainda mais se eu quiser saber das histórias deles.

A história deles é que, durante a madrugada, saem pra “assaltar playboy, levar celular, rádio do carro e o que mais tiver dentro”. Eles têm entre 17 e 26 anos, são todos amigos e, aparentemente, fazem tudo juntos. Contam que, quando conseguem carona no ônibus, vão para a Restinga, na periferia da capital, porque três deles têm namorada lá. “Os outros vão procurar. Eu já tenho minha nega”, conta um dos homens.

Teteu, 21 anos, foi expulso de casa há mais de dois anos porque vendia coisas das pessoas que moravam com ele para trocar por droga. “Que nem hoje, tá frio né? Se tu vai dormir na rua, é bom tomar uma cachaça ou até fumar pedra que daí é só festa, nada dói”.

Durante a tarde, Baiano se aproxima várias vezes de mim, troca poucas palavras, me oferece água depois cachaça. Até que, quando começa a escurecer, me fala:

“O que eu queria te dizer é que nóis não somos ruim. Claro, às vezes, brigamo e já te contaram né? A gente rouba… Mas não é maldade querer ter coisa boa.”

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