Sem casa e sem visão: um lar para vovôs especiais

3.549 é o número de asilos públicos e privados no Brasil. Apenas um possui atendimento especializado para a população que não enxerga. Fundada em 2000, em Porto Alegre, a Casa Lar do Cego Idoso é referência no segmento

Eric Raupp
Direitos humanos para quem?
10 min readDec 2, 2015

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Sem hesitar, Marlene saiu de casa. Precisava de um lugar onde pudesse dormir sem a sensação de culpa, sem as reclamações da irmã sobre como sua rotina era influenciada pela presença dela.

No antigo casebre de madeira, dois quartos e um banheiro, em Viamão, colecionava episódios de discriminação por não ter um dos olhos e apenas 20 por cento da visão no outro. Queria encontrar um espaço no qual pudesse viver sem julgamentos. “Me retirei da família. Pedi para um amigo arrumar um cantinho e, graças a Deus, ele conseguiu”, comenta, com um sorriso encabulado. Ela entrou no prédio terracota pela primeira vez há 12 anos. Era seu novo refúgio: a Casa Lar do Cego Idoso.

Marlene Aguiar da Silva, ou simplesmente Teteia, como foi rebatizada pelos 21 funcionários da instituição por causa da personalidade vaidosa, tem 72 anos e nasceu em um clã sem muito dinheiro. Tinha seis irmãos, incluindo uma gêmea; nasceram prematuras. Aos quatro meses, Teteia perdeu a visão, episódio recontado a ela pela mãe. “Por causa de uma corrente de ar frio, meu olho direito sofreu um espasmo e deu uma inflamação no nervo óptico. Tentaram salvar, mas não foi possível. No mesmo dia, a gêmea morreu porque tinha um coraçãozinho fraco”.

Na Casa Lar, Teteia é vizinha de outras 51 pessoas. O espaço oferece moradia para a população cega — no Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e 6 milhões com baixa visão, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “É um local especial porque é dirigido por pessoas que compartilham as mesmas dificuldades e sentimentos”, explica Odilon Fernandes de Souza, presidente da Associação de Cegos Louis Braille, mantenedora do local. A residência surgiu há 15 anos, com o objetivo de se tornar referência entre os 3.548 asilos públicos e privados do país, dos quais nenhum oferecia auxílio capacitado a idosos que não enxergam.

O portão preto, já enferrujado do número 480 da Rua Louis Braille, na zona norte de Porto Alegre, guarda os 2.500 metros quadrados divididos em duas construções, uma em frente à outra. A mais próxima à entrada tem a fachada verde e as paredes pintadas de branco; abriga uma recep- ção, um brechó e um fábrica de fraldas. Esta funciona em parceria com o Ministério da Justiça, o qual determina que condenados a trabalho comunitário cumpram o serviço na instituição. Três homens, em silêncio e cabisbaixos, produzem diariamente cerca de 140 fraldas.

Um pátio com chão cimentado separa a outra peça. Aos fundos, no segundo prédio, de três andares, estão os dormitórios e as áreas de convivência. No primeiro nível, a cozinha e o refeitório, as salas de administração, serviço social e visitas. Há também uma biblioteca com um acervo em braile e um estúdio de pintura.

No segundo andar, além de quartos e banheiros, existe uma sala para atendimento médico e fisioterapia e um espaço de convivência entre os moradores. O terceiro é composto somente por dormitórios — ao todo são 75, entre individuais, duplos ou triplos.

Uma moradia especial para cegos é equipada com corrimãos para que eles possam se orientar. Além disso, não existem escadas, mas rampas e um elevador. Antes do primeiro dia de serviço, os funcionários recebem orientações básicas de como interagir com pessoas cegas. “Não pode pegar pelas duas mãos como se fosse um deficiente mental e ir puxando. Uma vez eu tava no aeroporto e uma moça fez isso. Olhei para ela e disse: ‘como tu és linda, querida’”, relembra Odilon. “Eu não presto”, brinca.

Histórias cruzadas

O brechó é o lugar preferido de Teteia. Lá, ela passa a maior parte do dia ao lado de Terezinha Martins, 52 anos, que trabalha há 14 anos no local. Começou na cozinha e depois tornou-se “cuidadora”, como ela chama, tendo um contato direto com “os vôs e as vós”. “Tu aprende muita coisa com eles e cria uma relação de família. Eles te trazem paz”, diz, com a voz suave.

Marlene, Teteia, Dama da cabeça branca: a anciã da casa esbanja simpatia e se torna guia para os visitantes do local.

As roupas empilhadas em estantes são doações da comunidade para serem vendidas no brechó — o dinheiro é revertido para a instituição e gasto principalmente em alimentos. Enquanto dobra uma calça jeans, Terezinha recebe auxílio da “dama da cabeça branca”, outro apelido de Teteia, uma das poucas vovós da casa que não pinta o cabelo. Teteia procura por furos e rasgos nas peças, tateando os tecidos.

“Eu não gosto de ficar parada, então venho aqui papear e ajudar”, diz. Juntas, elas cantam e riem. “Eu sinto falta de estar diariamente com meus velhinhos. Mas é difícil estar lá todos os dias e ver as pessoas partindo”, afirma Terezinha, arregalando os olhos para esconder as lágrimas. Dar adeus faz parte da rotina da instituição. Quando não são as visitas atravessando o portão rumo ao “mundo de fora”, a morte força uma despedida permanente e muito mais dolorosa. As cadeiras do refeitório, com lugar marcado, não têm tempo de esfriar porque rapidamente recebem novos donos.

O corpo é efêmero, mas as lembranças daqueles que já partiram permanecem vivas na memória dos que ficam. “O seu Oswaldo… Não tem como esquecer. Ele sabia como eu me sentia só pela minha voz, mesmo que eu tentasse disfarçar”, recorda Terezinha.

Oswaldo era colega de quarto de Natanael, que também já faleceu. Durante dois anos, ele e Teteia tiveram um romance. Os homens sempre foram minoria na Casa Lar — hoje são 10 ante 42 mulheres — , mas nem por isso Natanael foi o único amor de Teteia. Antes dele, ela trocara sussurros apaixonados com João, outro que já “subiu pro céu”. “Os dois eram muito ciumentos, não dava pra conversar com ninguém, então eu não quis mais. Já dava pra casar, mas não aguentei os repuxos e mandei passear”.

Quem adora caminhar pelos corredores é a nova colega de quarto de Teteia, Catarina Alencar, 61 anos. Com a cuia na mão, ela, que é uma das 11 moradoras com visão perfeita, procura por um lugar na sala. Havia se mudado poucos dias antes, mas já estava integrada. “Eu amei aqui, todos me tratam super bem e eu tô feliz porque foi uma escolha minha, não queria incomodar minha família”, comenta, enquanto passa o mate para Severino Camargo, de 79 anos.

Nascido sem visão — “provavelmente porque a mãe fumava” — , ele vive na residência há um ano e meio. Foi largado em frente ao prédio pelo irmão, contra a própria vontade, carregando uma pequena mala com algumas roupas e um rádio de pilha. Nos primeiros dias, encurralou-se no quarto e não queria sair. Contou com a ajuda da coordenadora da área médica, Adriana Enzveiler, para superar o princípio de depressão. “Me senti traído pela família”, diz.

Aos poucos, aprendeu a gostar do lugar. “Hoje me sinto bem, as pessoas não me julgam. Aqui, posso ser eu mesmo, velho e com meus problemas”. Sem filhos, ele recebe a visita do sobrinho apenas uma vez ao mês, quando a médica da instituição assina as prescrições dos remédios.

Lugar para se reinventar

Viver fora da Casa Lar é difícil para os cegos. Em Porto Alegre, pegar um ônibus, depende da boa vontade de quem enxerga, e a lei que obriga restaurantes a disporem de cardápio em Braille, de 2010, ainda é ignorada. Mas a maior mágoa do deficiente visual costuma ser a negação da família e dos amigos.

“Eu me sentia desprezada. A força de um olhar de nojo é tão grande que não tem como não sentir. Um dos meus irmãos, que já perdi, tinha vergonha de mim por que eu era assim, e isso me deixa muito chateada” — Teteia

Teteia morou a vida inteira com a irmã caçula, Stella Maris, com quem mantém uma relação controversa. “Depois que eu vim pra cá as coisas mudaram. Acho que ela sente falta de mim”. Agora, Teteia é a moradora mais antiga da Casa Lar e conseguiu adicionar um novo capítulo à sua história.

A chefe de cozinha Cristina Prates, 49 anos, também reescreveu as páginas de sua biografia. Em 17 de fevereiro de 2014, “Controle”, como é chamada por Teteia por ser rigorosa nos cuidados com a alimentação, começou na fábrica de fraldas, prestando serviço comunitário. “Emprestei meu nome para uma pessoa, e ela comprou carro, casa e me arranjou muitos problemas”, recorda. Quando terminou de cumprir a pena, estipulada em seis meses, recebeu o convite para trabalhar no prédio principal.

O refeitório possui capacidade para aproximadamente 50 pessoas. Os moradores se revezam para utilizar as cadeiras e alguns comem nos quartos devido à debilidade física, com o auxílio das enfermeiras.

Hoje, ela e mais três cozinheiras ditam o tempo do local. Às 7h30min, servem o café da manhã, com chá ou café com leite e pão ou biscoito. Às 21h, a ceia, geralmente sopa, anuncia que as atividades estão encerradas. Nos pratos de cerâmica, a comida segue uma dieta que busca evitar problemas de saúde. No almoço, há salada, arroz, massa ou purê, feijão e carne — de frango ou gado, nada de porco. No jantar, o cardápio se repete. Os moradores só fogem de “Controle” aos domingos, quando comem maionese e carne assada, e nas festas mensais de aniversário, nas quais são liberados para desfrutar de bolo e refrigerante.

Após a ceia, Teteia vai para o quarto. Deitada na cama, segue sua rotina, da qual faz par te relembrar as dificuldades que sofria antes de ingressar no prédio cor terracota. O pensamento se esvai e ela adormece no silêncio daquele que é o seu lar com a certeza de que tomou a decisão correta de se mudar para a Casa Lar.

A epopeia de Elena

Assim como a anciã da residência, a vizinha Elena Rita Almeida, 62 anos, ingressou na moradia para reeditar sua trajetória. Há dois anos morando no local, ela se mudou de Xangri-lá após perder a mobilidade das pernas. Mas o prólogo da odisseia de superação da ex-massoterapeuta remonta 1987, quando ela sofreu um acidente de carro que resultou em sangramento interno nos dois olhos e consequente perda parcial da visão. “Eu me divorciei com 28 porque meu sonho era ter um diploma, mas meu ex-marido não deixava eu estudar. Então entrei na faculdade e quando faltava dois anos pra eu me formar, me acidentei”.

Elena lembra que, na época, seus olhos reconheciam apenas claridade e vultos, mas isso não a impediu de continuar a graduação. “Eu persisti. Toda vez que ia sair de casa eu dizia: ‘não, eu não posso desistir’”. As consultas médicas — foram oito profissionais — não resultavam em um diagnóstico que lhe devolvesse a capacidade de enxergar. Ficou um ano e seis meses refém da cegueira, até que uma cirurgia foi capaz de lhe fazer ver de novo. A alegria imperava em sua vida, mas foi interrompida pela angústia de não se reconhecer no espelho: estava envelhecida e com cicatrizes por toda face.

As amigas Elvira, à esquerda, e Elena, à direita, gostam de passar as tardes conversando na sala de convivência.

Lentamente, adaptou-se às rugas e marcas deixadas pelo acidente. Reencontrou a felicidade em cada cicatriz, mas o bem-estar voltou a cessar quando perdeu o movimento dos membros inferiores, num início de tarde do dia 8 de março de 2012. Ela fazia massagem nas candidatas à Garota Verão e, na décima quarta drenagem, sentiu-se cansada. Desmarcou, então, as sessões do dia seguinte e foi para casa. A pedido do neto, foi assar cuecas viradas. “Terminei de fazer e disse: ‘minha filha, eu tô com a perna dormente’. Ela tirou minhas botas e meus pés estavam torcendo. Em quinze minutos eu não conseguia caminhar”.

Foi imediatamente para o hospital, onde passou uma bateria de exames para verificar problemas na coluna. Voltou para casa sem nenhuma resposta ou tratamento, apenas uma indicação. “A enfermeira me mandou procurar ajuda em Porto Alegre, porque eles não tinham recursos para descobrir o que eu tinha”. Negou-se a se mudar para a casa dos irmãos na capital por “medo de fazer da vida deles um pesadelo” e começou a procurar por um espaço que a recebesse. A maioria dos asilos negava o pedido justamente por ela precisar de uma cadeira de rodas para se locomover.

Pelo Facebook, encontrou a Casa Lar. Entrou em contato com a assistente social da instituição, Tatiana Assoni Neu, quem explicou que ela precisava estar em situação de vulnerabilidade social para conseguir uma vaga. Determinada, alugou um casebre e fez contato com uma profissional da área para avaliar sua condição. Recebeu um aval e contou para a filha da decisão dois dias antes de se mudar. “Ela não gostou, nunca gostam, acham que porque são filhos têm que tomar decisões por nós quando estamos velhos. Disse que eu estava louca, que eu não podia ir para um asilo, porque isso aqui é um asilo, mas eu estava ciente da minha escolha”, esclarece.

Na residência, tem um bom convívio com seus companheiros e recebe auxílio médico. Atualmente, está na fila do Sistema Único de Saúde, à espera de uma triagem e de exames. A única queixa é em relação à comida, pois sente falta de almoçar na beira da praia. Não sabe quando vai voltar a fazer isso. Também não sabe porque não anda. A única certeza é que só sai da Casa Lar quando voltar a caminhar.

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