Sob as lonas do circo

Bem-vindo aos bastidores do mundo mágico do circo. Fora do palco, a vida de quem faz o show acontecer

Vinícios Sparremberger
Direitos humanos para quem?
6 min readNov 23, 2015

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É por trás das cortinas do Tihany que, em meio à escuridão dos bastidores, entre risos contidos e conversas cochichadas, acrobatas, dançarinos, equilibristas, o palhaço, o mágico e assistentes aguardam o início de cada espetáculo. Entre um ato e outro, as histórias se revelam. Do iniciante Thiago ao experiente Javier. Da espontaneidade de Henry à seriedade e concentração de Ambra e Enkhbat. Um universo onde 60 artistas de 25 nacionalidades se encontram e fascinam pela técnica e precisão a cada movimento.

Javier Morales

Há quem chegou há apenas um ano e quem já está prestes a completar a maioridade sob as lonas. Com 35 anos, o cubano Javier Morales acumula mais de 20 dedicados à vida circense, 16 deles só no Tihany. Para o artista, a profissão surgiu como um percurso natural. Filho de acrobata, trilhou o mesmo caminho do pai e manteve a tradição familiar que está na terceira geração. “Nasci e cresci nesse ambiente, vivendo e respirando a magia do circo”, conta.

O brasileiro Thiago Camargo, por outro lado, é o primeiro da família a embarcar nesse mundo que encanta crianças e adultos. Aos 24 anos, ainda é um iniciante no ramo, mas não esconde que a escolha foi um acerto. “Não me vejo fazendo outra coisa tão cedo”.

Amante da ginástica olímpica, Thiago iniciou aos oito anos, por diversão. “Pra falar bem a verdade, eu comecei por causa da cama elástica. Eu gostava de ir só para brincar”, confessa, rindo. Dos saltos na infância até as acrobacias foram 15 anos. O suficiente para garantir uma vaga no maior circo da América Latina. Em 2014, durante a passagem do espetáculo pelo município paulista de Americana, sua cidade natal, Thiago decidiu trocar os treinos e competições pelas apresentações circenses.

Trajetórias

O ritmo no circo é acelerado. Em média são 40 apresentações mensais, além dos treinos técnicos durante a semana. “O nosso maior desafio é a idade. Os anos passam, as dores começam, a recuperação se torna mais lenta”, destaca Javier, que ainda não pensa em parar. Ele, Thiago e outros 13 acrobatas desafiam os limites do corpo em números que exigem rigoroso preparo físico, como a maca russa. Impulsionados por uma espécie de pêndulo, os artistas saltam cerca de nove metros e deslizam sobre tecidos sustentados por colegas. “É preciso muita concentração. Um erro pode ser fatal”, explica o brasileiro.

Javier e Thiago são reflexos da pluralidade que envolve o caminho até o circo. O primeiro é graduado pela Escola Nacional de Circo de Cuba, onde estudou durante quatro anos antes de encarar os palcos profissionalmente. Thiago, em contrapartida, encontrou no picadeiro uma forma de conciliar a paixão e as responsabilidades financeiras. “A ginástica olímpica é tudo para mim, mas não dá dinheiro e eu precisava trabalhar”, diz.

O circo também foi a melhor escolha para a dupla de ex-ginastas Ambra Yadamtsoo, 38 anos, e Enkhbat Jamyandorj, 39. Naturais da Mongólia, país localizado no continente asiático, eram ainda adolescentes quando o país entrou em crise com a queda da União Soviética, no início da década de 1990. De lá, foram para a França e, desde que conheceram o Tihany, o mundo é o seu lar.

Ambra Yadamtsoo e Enkhbat Jamyandorj

A dupla é vencedora do primeiro prêmio do Festival do Circo de Barcelona, na Espanha. Com a visibilidade, foram convidados a integrar a equipe do espetáculo, onde há 14 anos apresentam um número altamente técnico. Trata-se de uma demonstração de força, equilíbrio, resistência e concentração. No ápice da apresentação, seus corpos alcançam a elevação de 180 graus na vertical. “É preciso 100% de confiança no seu parceiro para fazer um número como esse. Se um não está bem, não dá simplesmente para substituir”, diz Enkhbat.

Príncipe dos Palhaços

Os shows apresentam, ainda, um personagem que sobreviveu às mudanças impostas pelo tempo. Com 35 anos, o venezuelano Henry Ayala Junior é o único palhaço do circo e tem o desafio de arrancar gargalhadas do público sem verbalizar sequer uma palavra. “É difícil fazer o trabalho. Não é algo engraçado, é muito sério. Você está sozinho no palco e tem que enfrentar um público diferente a cada dia, tem que buscar um estilo que faça todos se sentirem bem”, desabafa Henry, que está há seis anos na companhia.

Henry Ayala Junior

Conhecido como o “príncipe dos palhaços”, título conquistado em festivais da Inglaterra e de Moscou, Henry nasceu na Venezuela, mas é verdadeiramente um cidadão do mundo. No Tihany, tem a companhia do pai e do irmão Ângelo. “Meus filhos são a sexta geração de uma família tradicional de circo. A mãe deles também é artista, mas escolheram viver comigo”, conta o patriarca da família Ayala, hoje com 62 anos.

Poucos percebem, mas o palhaço inspirado em Charles Chaplin, interpretado por Henry (foto acima), é também uma das principais atrações em outra função, a de equilibrista. Com a luz baixa e trilha sonora de tensão, Ayala, junto com o pai e o irmão, atravessa de um lado ao outro em cima de cabo de aço, a nove metros de altura e sem rede de proteção. Ora com os olhos vendados, ora de marcha a ré, ora com uma barra de ferro nos braços, o número deixa o público paralisado, sem desgrudar os olhos do palco. “É complicado. Tem que confiar na pessoa com quem você está trabalhando. E quem melhor em que se confiar que o seu pai? Ele me dá segurança. Ele me pede algo e me faz acreditar que eu posso fazer”, explica Henry.

A vida no circo é peculiar. Enquanto o público está de folga, os artistas trabalham. Enquanto o público trabalha, eles estão de folga. Com raras exceções, suas casas dividem-se entre os palcos e um quarto de hotel. Para os artistas, as férias significam deixar de viajar. “É difícil, há a saudade da família que ficou em nossa terra, mas com internet, hoje a comunicação fica fácil e dá para aguentar”, conta o ex-ginasta Ambra, casado com uma das bailarinas do circo, com quem tem duas crianças. Ele confessa que, daqui um tempo, pretende parar de viajar para que as filhas de oito e cinco anos estudem regularmente. A ideia, porém, já foi adiada algumas vezes. “Tomar essa decisão significa encerrar um ciclo. É romper com tudo aquilo que você está acostumado”, explica o atleta.

O sentimento de Ambra é compartilhado por todos. O picadeiro é mais do que apenas o local de trabalho. O príncipe dos palhaços não tem dúvidas: o palco é a medicina para os seus problemas. “As pessoas vêm até o circo para se divertir, rir, esquecer dos problemas. Quando estou no palco, é isso que acontece comigo, eu me divirto, esqueço de tudo o que me preocupa”.

“As pessoas vêm até o circo para se divertir, rir, esquecer dos problemas. Quando estou no palco, é isso que acontece comigo, eu me divirto, esqueço de tudo o que me preocupa” — Henry

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