A Doce Vida — a explosão de Fellini

O cineasta que superou o Neorrealismo para conciliar sua visão crítica da sociedade ao seu olhar artístico.

Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe
4 min readJun 18, 2019

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(A Doce Vida, 1960)

Popularizado na obra de grandes expoentes italianos, como Roberto Rosselini (Roma, Cidade Aberta, 1945) e Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948), o Neorrealismo italiano caracterizou-se por seu papel social e denunciativo, enfocando as camadas mais humildes da sociedade e suas provações de maneira crua e direta. Nesse contexto, delimitado por curto período de grave crise econômica da Itália pós-guerra, um jovem colaborador molda sua personalidade artística e desponta no cinema italiano: Federico Fellini.

Após codirigir Mulheres e Luzes (Luci Del Varietà, 1950), Fellini estreia solo na direção em Abismo de um Sonho (Lo Sceico Bianco, 1952), sendo imediatamente questionado por se distanciar do movimento cultural vigente. Criando uma obra não somente crítica, como alegórica, extravagante e, em muitos momentos, particular, surge o estilo “felliniano”, cujo marco é identificado em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960).

A trama gira em torno de Marcello Rubini (Marcello Matroianni), um repórter sensacionalista mulherengo e frustrado cujo verdadeiro desejo é se tornar escritor. Responsável pela cobertura dos mais variados eventos, Marcello apresenta a capital italiana e seus costumes num período de aparente glamour e prosperidade.

(A Doce Vida, 1960)

A narrativa confeccionada por Fellini pode ser descrita, metaforicamente, como uma colcha em que os retalhos são situações quase sempre independentes, cujo único ponto congruente é o protagonista do longa-metragem. Essas histórias, tão heterogêneas e aparentemente dispersas, logo formam um mosaico bem delineado e coeso, retratando a sociedade romana da virada dos anos 50 sob a plenitude de sua decadência moral, com uma abordagem plena de simbolismos.

Mesmo quando o cenário é a alta sociedade, tomada por personalidades e artistas estrangeiros, conforme as situações se desenvolvem, o espectador questiona a veracidade daquela onda de euforia e otimismo à qual fora previamente apresentado. Desmascarando pessoas essencialmente hedonistas, os diálogos deflagram notável grau de tristeza nas pessoas e em suas relações, em geral bastante frágeis e superficiais. Eis o fruto de uma cidade que produz e consome o fútil, como visto na idolatria à unidimensional (e linda) estrela de cinema Sylvia (Anita Ekberg) ou quando uma suposta aparição religiosa, dessa vez no subúrbio de Roma, se transforma em um show de fim trágico.

(A Doce Vida, 1960)

Componente importante desse cenário é a ação absurda dos paparazzi — termo cuja conotação atual tem origem aqui. Esses “profissionais” onipresentes, sem escrúpulos ou limites, chegam ao ponto de instigar brigas e se aventurar em perigosas perseguições automobilísticas — fato que, por trágica coincidência, se tornaria manchete quase 40 anos depois, quando repórteres fotográficos foram acusados de perseguir a Princesa Diana pouco antes do acidente que provocou a sua morte, em 1997.

No entanto, a peça-chave para compreensão da história reside na interpretação de seu protagonista. Interpretado como um sujeito cínico, haja vista sua postura demasiadamente blasé diante de situações diversas e adversas, Marcello tem o olhar tão desencantado quanto sóbrio, de quem entende a insignificância da sofisticação à sua volta. Ironicamente, Rubini consome o vazio do meio como forma de suprir o vazio em si, em jogo tão irônico e ambíguo quanto o título do filme. Não é à toa que o personagem seja apontado como alterego de Federico Fellini.

(A Doce Vida, 1960)

O diretor, ao conferir maior complexidade ao personagem, não somente revela o lado afetivo de Marcello Rubini, como justifica sua resignação e entrega ao hedonismo. Em dado momento, o jornalista alterna momentos de alegria, ao encontrar seu pai, de admiração, manifestada para um amigo inteligente e bem-sucedido, culminando em surpreendente romantismo, declarando-se à mulher que tanto o deseja. Em todos esses episódios, porém, Marcello torna a experimentar o paladar amargo de uma vida tão doce quanto plena. Ou seja, rigorosamente vazia.

Essa indiscutível atemporalidade temática é o que faz de A Doce Vida um clássico definitivo, que surpreende em ser mais facilmente compreendido nos dias de hoje do que em seu tempo, quando as alegorias e simbolismos com que seu realizador construiu a narrativa foram confundidas como ode a tudo aquilo que condenava. E ainda que os neorrealistas condenassem — e considerassem como desvio de foco — o estilo inovador e ousado implementado pelo jovem cineasta, a crítica social na obra felliniana é tão pungente quanto em seus antecessores — e não fosse sua singularidade artística, hoje o nome de Federico Fellini dificilmente se encontraria no rol dos maiores diretores de todos os tempos.

Obras citadas:

A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), Abismo de um Sonho (Lo Sceico Bianco, 1952) e Mulheres e Luzes (Luci Del Varietà, 1950), de Federico Fellini; Roma, Cidade Aberta (Roma città aperta, 1945), de Roberto Rosselini; Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica.

Texto originalmente publicado no dia 25 de agosto de 2011, no site Cineplayers. Mas escrito em 2008, para uma aula de Italiano na Faculdade de Letras da UFRJ, aos 21 ou 22 anos.

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Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe

Crítico de cinema, membro da Abraccine. Letrólogo e jornalista formado em Comunicação e UX. Amo artes, esportes, geopolítica e todo tipo de papo de bar.