A potência expressiva de Se a Rua Beale Falasse

Como Barry Jenkins traduz o olhar de James Baldwin.

Rodrigo Torres
Revista Cine Cafe
7 min readJun 15, 2019

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(Se a Rua Beale Falasse, 2018)

Comecei na crítica de cinema há 10 anos, movido por dois sentimentos: a paixão pela arte, claro; e um prazer equivalente de refletir, comentar e trocar sobre os filmes que via. Desde então, uma das minhas maiores felicidades é o feedback positivo do número crescente de amigos a que passei a fazer essas recomendações. Por isso, hoje eu acordei feliz.

“Oia, queria ter altura nas palavras pra tentar chegar perto da intensidade do meu choro. Obrigada”, foi a primeira mensagem que eu li nessa sexta-feira. Enviada no meio da madrugada, por uma amiga emocionada com o filme Se a Rua Beale Falasse (2018), escrito e dirigido por Barry Jenkins. O texto a seguir não tem a ambição de alcançar o vigor do choro da Lai (tem até foto dela arrasada, coitada). Mas tenta, sim, expressar em palavras como Barry Jenkins evoca essa emoção.

O autor original, James Baldwin. (Magnolia Pictures / Ringer)

E é de expressão mesmo que eu quero falar. É onde reside a grande força do filme. Se a Rua Beale Falasse adapta um romance homônimo, de autoria de James Baldwin, escritor e filósofo que foi um dos expoentes do movimento negro na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 60 e 70. Como vimos no recente documentário biográfico Eu Não Sou Seu Negro (2016) — se não viu, veja! — , um homem de olhar atento e melancólico, fala mansa porém firme, um erudito e um militante. Toda essa dualidade é um elemento pulsante de sua obra, marcada pela sensibilidade e pelo ativismo.

O olhar de James Baldwin

No romance Se a Rua Beale Falasse não é diferente, na medida em que o romance tanto retrata uma história de amor, como a violência social enfrentada por um jovem casal negro na década de 70. A obra narra a luta de Trish, uma jovem grávida aos 19 anos, para provar a inocência de seu namorado, Fonny, um escultor condenado injustamente por estupro. Contornando esse fio narrativo com todo o “barulho” que entoa a Rua Beale — ou seja, todos os elementos que compõem não um lugar físico, mas um lugar social e histórico.

Rua Beale: um lugar físico que representa o lugar imaginário, o legado do homem negro americano, segundo James Baldwin. (Marion Post Wolcott, 1939)

Esse contexto, descrito por James Baldwin como “nosso legado”, tanto não se resume a uma rua de Nova Orleans, como não se resume ao jazz e outras contribuições do afroamericano (embora lá estejam). O dramaturgo se empenha em humanizar o negro de fato: retratando seu cotidiano, suas interações com outros povos, credos e raças, a influência da religião protestante (por vezes nociva apesar de seu histórico de acolhimento), contradições inerentes ao lugar do desfavorecido (a inconsciência de classe, “o sonho do oprimido de se tornar opressor”), a imposição da masculinidade na sociedade etc. Dada a proposta, uma caracterização exatamente como deve ser: realista e complexa. Mais complexos, mais humanos.

É nesse cenário que vemos a própria Tish reproduzir uma visão de mundo essencialmente machista e Fonny ser acusado por um crime tão representativo da hegemonia masculina. A narrativa não anseia a utopia ou a caricatura, mas a representação. Para assim ser uma crítica social bem assentada na realidade, como o fruto de observação que é. O resultado disso, pela proximidade do leitor com as agruras do duo principal ou pelo detalhamento da prisão injusta de Daniel (condenado por roubar um carro que nem sabe dirigir), é a plena demonstração do estado psicológico e da existência de pessoas que erram, que acertam, que sentem, que amam, que sofrem e que são, sobretudo, seres humanos.

Em 1944, militantes enterram simbolicamente a figura de Jim Crow: um homem negro bestializado, desumanizado, pela visão do homem branco. (Corbis via Getty Images / Thomas D. Rice, 1832)

Toda essa observação pode soar ingênua e preconceituosa, de tão óbvia. Mas é preciso pensar em retrospectiva, no contexto em que o romance Se a Rua Beale Falasse foi publicado: 1974, período de forte tensão racial que sucede em apenas 9 anos a extinção das leis de Jim Crow— personagem cuja imagem é a literal desumanização do negro. E não somente: é muito comum tratarem o texto de James Baldwin como prova de misoginia do autor. Minha leitura é absolutamente outra: de representação de uma hierarquia social complexa. O homens negros são vítimas de preconceito racial e se portam de forma abusiva com suas esposas e filhas porque assim o são no mundo real. E é também conscientemente que Baldwin constrói as mulheres tão menos falhas, com tão mais virtudes. Narrativamente, elas exercem todos os tipos de personagem possíveis: sujeito, objeto, destinador, destinatário, adjujante, oponente. São protagonistas, são coadjuvantes, são maioria. É a narradora da história. O autor externa plena ciência do estado de coisas e desigualdades.

A expressão de Barry Jenkins

Se a Rua Beale Falasse, o filme, é uma leitura fiel dessa obra-prima. No que encena simplesmente e nas liberdades que toma para constituir cinematograficamente. Em um momento consecutivo ao #OscarSoWhite como o ano de 2017, Barry Jenkins não poderia ter feito algo mais potente. Que é, ao mesmo tempo, um lindo romance tradicional vivido por pessoas negras, numa incrível pulsação de representatividade por fotograma; e um drama racial que em um nenhum momento enseja trégua ou conciliação.

As cores de Se a Rua Beale Falasse: espetáculo semiótico. (Se a Rua Beale Falasse, 2018)

O rigor estético de Barry Jenkins funciona perfeitamente com a abordagem reverencial de James Baldwin à sua cultura. E é a primeira coisa que causa impacto em Se a Rua Beale Falasse. Desde a primeira cena, quando Fonny e Trish surgem trajados com a mesma paleta de cores que remonta a juventude, sob uma linda fotografia saturada que estoura na hora do beijo e evoca magia enquanto o teclado e o violino os emoldura em linda melodia, exprimem poesia e um amargo estranhamento: de que, em pleno século 21, talvez seja a primeira vez em que se assiste a um filme assim com pessoas negras.

A sequência imediatamente a seguir vem como uma pedrada — destrói toda aura de encantamento e nos acerta em cheio: Fonny, nos mesmos tons azul e amarelo, mas Trish veste verde (em um tom fechado que expressa bem sua sisudez de momento). Motivo: a distância entre eles. Separados por um vidro temperado. Trilha sonora: o sinal de fechamento das portas de uma cadeia. Barry Jenkins consome 2 ou 3 minutos para representar na tela, com intensa sofisticação, “a possibilidade e a impossibilidade” a que James Baldwin se refere na cartela de abertura de Se a Rua Beale Falasse.

Juntos e separados; as cores comunicando a narrativa; o sonho e o impossível. (Se a Rua Beale Falasse, 2018)

Meu palpite sobre o motivo do choro da Lai (enfim) recai sobre essa extrema capacidade de James Baldwin e Barry Jenkins contarem uma história. Ou de Jenkins interpretar e traduzir Baldwin. O que um pensou e escreveu, o outro transcreveu como poesia filmada. Com direito a todas interdisciplinaridades que o cinema permite. Com o jazz invadindo a trilha em uma das cenas de sexo mais singelas já feitas. Com recortes de jornal que ilustram o massacre de negros nos EUA. Com uma incrível capacidade de sensibilizar o espectador com o amor do jovem casal. Com um destino fadado à mais violenta injustiça (a cena final) encenado com a sutileza e a beleza de um esteta.

O cinema se habituou a retratar histórias de amor como contos de fadas. Isso é o possível e o impossível de Se a Rua Beale Falasse. Trish e Fonny são sumária e abominavelmente impedidos de viver seu conto de fadas. Para eles, um casal negro, é impossível. Mas, como nas artes não é o fim que define a história, Baldwin e Jenkins tornam o impossível possível, em cada cena dos deslumbrantes Fonny e Trish juntos no livro e no filme.

Fonny e Trish não têm a mesma sintonia física na prisão. O fruto do amor entre eles em traje branco (paz) e vermelho (paixão). (Se a Rua Beale Falasse, 2018)

Apesar da constatação aterradora sobre o impossível encarado pelo homem negro na sociedade norte-americana, James Baldwin foi confrontado com o fato de sua obra ser otimista. A esperança da superação e do triunfo é constante na trajetória de Trish e Fonny. O autor explica:

“Todo poeta é um otimista … Mas no caminho desse otimismo você precisa alcançar um certo nível de desespero para lidar com a vida.”

Se a Rua Beale Falasse é tão lindo porque Barry Jenkins entende e expressa as ideias de James Baldwin com perfeição.

Obras citadas:

Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 2018), de Barry Jenkins; Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 1974), de James Baldwin; Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro, 2016), de Raoul Peck.

Caro Diário é uma seção da Revista Cine Cafe na qual escrevemos nossas impressões sobre os filmes em poucas linhas.

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Rodrigo Torres
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Crítico de cinema, membro da Abraccine. Letrólogo e jornalista formado em Comunicação e UX. Amo artes, esportes, geopolítica e todo tipo de papo de bar.