Here, encontrar-se “aqui”
Sobre imigrantes e crise de pertencimento, na beleza do detalhe.
Bas Devos é um artista generoso. Quando os créditos descem, ele atribui sua realização a todos que fizeram o filme junto com ele. É assim mesmo, o cinema é muito coletivo, mas sua atitude é rara e ainda mais sua gratidão, se real. Acho que sim, pois sinto isso ao longo do filme.
Here (2023) transborda o afeto e o detalhe desse gesto nos créditos. Um filme lento. O protagonista precisa voltar para a terra natal, e fica contemplativo. O parque. A casa. A geladeira. Os legumes. O chão. A sopa. Bas Devos filma tudo nos mínimos detalhes.
A câmera vai ao chão encenar Stefan diante da geladeira, ajoelhado, colocando os legumes no chão — um gesto incomum, mise-en-scène idem. A cena parece um ritual. E é mesmo.
A razão de aspecto 1.33:1 realça essa ideia. Planos detalhes filmando os detalhes. O que não se sente? O invisível? Os silêncios e longos planos nos colocam nessa posição ativa durante o filme, que vai fazendo sentido aos poucos. Delicado. Singelo.
Stefan sente a melancolia de voltar para casa e a melancolia por aqui não ser sua casa. Um dia ele conhece Shunxiu, uma mulher de ascendência estrangeira. Eles se encontram. Se olham. Se interessam.
Ela é delicada. Ele é inquieto. Ele usa short. Ela é formal. Mas os dois são estrangeiros. E os dois amam a natureza — os dois amam aquele lugar. Com a ajuda do microscópio de Shunxiu, Stefan enxerga um universo invisível. Literalmente. E metaforicamente.
O tempo baixo e a narrativa sutil de Bas Devos nos obriga a perceber os detalhes. Durante a caminhada no parque, Stefan some do quadro, quadradinho. Shunxiu o procura, a câmera encontra Stefan. Isso acontece outra vez, e mais outra. Não é coincidência. Here narra o encontro de Shunxiu, uma estrangeira estabelecida, com Stefan, um estrangeiro em busca do seu lugar aqui.
Obras citadas:
Here (2023), de Bas Devos.
Texto originalmente escrito no dia 14 de outubro de 2023, em cobertura do Festival do Rio 2023.